quinta-feira, 8 de março de 2018

A passagem estreita

Um homem foi ao encontro de Sócrates para levar a ele uma informação. Julgando ser de interesse do filósofo, disse:

- Mestre, quero contar ao Senhor uma coisa a respeito de um amigo seu.

- Espere um momento, disse Sócrates. Antes de me contar, quero saber se você passou esta informação através das três peneiras.

- Três peneiras? O que o Mestre quer dizer com “três peneiras”?

imagem tirada da internet

- Quero dizer que vamos peneirar tudo aquilo que você vai dizer. E para isto, devemos, sempre, utilizar as três peneiras. Se não as conhece, preste bem atenção. A primeira delas, é a peneira da Verdade. Você tem certeza de que isto que vai me dizer é verdadeiro?

- Bem, disse o homem, foi o que eu ouvi os outros contarem. Não sei, exatamente, se é verdade.

Sócrates olhou para o homem de maneira desconcertante.

- A segunda peneira, continuou Sócrates, é a da Bondade. Acredito que você tenha passado esta informação através desta peneira. Ou não?

Envergonhado, o homem respondeu:

-Devo confessar que não.

Sócrates, pensativo, continua:

- E a terceira peneira é a da Utilidade. Você pensou se esta informação é útil?

- Útil? Na verdade, não. O homem respondeu, baixando a cabeça.

- Então, disse o Mestre, se o que você quer me contar não é verdadeiro, nem bom e nem útil, esqueça a informação.

Certamente, se seguíssemos estes conselhos de Sócrates o mundo seria mais feliz, justo, ético e silencioso.

Feliz porque o mundo ficaria mais leve sem tantas falas, sem tantos comentários. Falamos muito e sobre tudo. O fazer, muitas vezes, é obrigado a ceder espaço para o falar sem parar. Quando falamos muito não temos tempo de construir a nossa felicidade que, passa, obrigatoriamente, pela reflexão interna, pelo autoconhecimento, pela contemplação. A felicidade é plena e leve. Digna daqueles que mais observam do que falam. Felicidade é ausência de necessidades. Como ser feliz falando muito e com desequilíbrio?

É preciso dar espaço para as ausências porque elas nos constroem. O caminho da construção interior leva à felicidade.

Justo porque utilizaríamos medidas honestas na nossa convivência, e não tendenciosas. Três pra mim e meio para você. Nosso próximo não seria utilizado, por nós, como escada e vice-versa. Sentar-se na primeira fila deixaria de ser sinônimo de observar, com atenção, o erro do outro. Quando erramos, queremos compreensão, paciência e, de preferência, que esqueçam logo o nosso erro. Quando o outro erra, vestimos a nossa torga e julgamos. Enquanto o prazer em ver o erro do outro existir e a curiosidade e a fofoca ocuparem mais espaços do que a ajuda, como falar em justiça?

É preciso calçar as sandálias do outro, como diz o provérbio, para, de verdade, começarmos a entender o conceito de justiça.

Ético porque as mesmas regras que servem para nós devem servir para o outro. As três peneiras de Sócrates são um exemplo disto. Como ser ético sem ser bom, verdadeiro e útil? Como ser ético se os nossos espelhos estão cobertos? Como ser ético se estes mesmos espelhos, agora descobertos, estão virados para o outro? O espelho mostra quem somos. Por que temos tanta capacidade de falarmos sobre o que não importa? Por que o supérfluo nos representa tanto? Por que nossos espaços não são ocupados pelo sentido?

É preciso revisitar os nossos excessos, facilidades, privilégios e comodidades para, então, iniciarmos a fala sobre ética. Todos eles são indicativos de falta. E falta de algo maior.

Silencioso porque muitas coisas deixariam de ser ditas. Os excessos se retirariam, envergonhados. O silêncio teria sua vez. Os sábios são silenciosos. Falam pouco porque o exemplo deles fala por si. Ouvem muito porque são humildes. Aquele que sabe ouvir e que silencia vai à frente, bem à frente. Somos barulhentos, ansiosos, espaçosos porque, ainda, não aprendemos a valorizar e a perceber o silêncio. Nele podemos, verdadeiramente, nos expressar. Mas perdemos esta oportunidade. “Fala demais por não ter nada a dizer”, diz a música. Um valioso exercício de reflexão. Falar é imprescindível, mas desde que haja o que dizer. Desde que a fala construa algo verdadeiro e digno.

Fabricamos falas improdutivas, mais do mesmo. Falamos sobre as rugas, olheiras e comportamento de todos. Julgamos, criticamos e sempre temos uma solução. Somos assíduos consumidores de fofocas em todos os formatos (reality, revistas, tv). Falamos o tempo todo sobre tudo e sobre todos porque não dedicamos tempo a nós e à construção de nós mesmos. E quando o silêncio se aproxima, tratamos de preenchê-lo e o desprezamos.

Nossos espelhos estão envelhecendo por falta de uso. Nossas imagens distorcidas não chamam mais a nossa atenção. Queremos o palco para termos atenção porque há tempos não sabemos o que é isto, não nos damos atenção. Falamos dos outros indefinidamente e sem pudores porque falar da gente nos fará nos conhecer. A fofoca nos alivia porque, assim, colocamos o outro na cena do julgamento. E assim vamos passando despercebido na vida.

Aquele que ouve os próprios silêncios, silencia. Cala-se. Não tem tempo de falar do outro, de se ocupar, indevidamente, da vida do outro. Aquele que utiliza a verdade, a utilidade e a bondade como forças há muito já entendeu o sentido da vida e o que fazer dela.

Utilizar as peneiras trazidas por Sócrates é sentir o aperto da responsabilidade. É sentir o estreitamento da vida. É uma advertência para a renúncia do que não serve. Uma advertência e um convite, ao mesmo tempo. É um desvencilhar das inutilidades para, finalmente, conhecermos a utilidade. É conhecer o mal para que possamos diferenciá-lo do bem. É conviver com mentirosos para que saibamos valorizar a verdade.

Uma peneira é estreita e apertada. Somente passará o importante e o necessário.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento do próprio Sócrates, que diz:

“O início da sabedoria é a admissão da própria ignorância. Todo o meu saber consiste em saber que nada sei.”

Que nossa bondade não seja seletiva e que nossas falas não tenham mais dificuldades absurdas para reconhecerem o valor do outro, se quisermos que o nosso valor seja igualmente reconhecido. Que o silêncio seja mais vivenciado para que a nossa fala seja cada vez mais eficiente e significativa. Que a admissão da ignorância não seja uma vergonha para nós, mas sim, o princípio da sabedoria, como trouxe Sócrates.

É preciso valorizar os passos dados, que já foram muitos. É preciso valorizar o bem que há em nós, porque há. Mas é preciso, também, abastecer nossas vidas com mais peneiras porque elas nos levarão a um melhor patamar de consciência e, consequentemente, a um melhor patamar de ser. Um ser conciso, estreito, no melhor sentido da palavra, e peneirado.

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