Geralmente, o final do ano e o
começo dele são épocas nas quais fazemos balanços: não apenas um, mas vários.
Dividimo-nos entre as conclusões que
queremos dar a alguns assuntos, influenciados pela energia do final do ano, e iniciações que mais uma vez prometemos
fazer, influenciados, agora, pela energia do início do ano. São tantas
providências a tomar, negócios a resolver, pendências a absorver e promessas a
fazer que nos esquecemos de algo muito importante: o fato de estarmos aqui,
vivos. Existir já é algo e tanto. Simples assim.
O avançar do calendário, que bate
à porta nos chamando para o próximo ano, não nos cobra promessas não cumpridas.
Tampouco traça uma régua dos nossos débitos e créditos baseado no que
entregamos ou deixamos de concluir, para, desta forma, nos punir ou nos
premiar. O avançar do tempo não faz isso, definitivamente. Apenas colabora para
que um novo e outro sol nasça, e assim, nos diga carinhosamente:
“levante-se, ainda há muito o que fazer. Por isso, te dou um novo ano.” Sem
cobranças. Só uma pitada de assertividade. Nada além disto.
Sentimo-nos muito cobrados pelo
tempo porque deixamos coisas para a última hora, literalmente, sejam elas conclusões ou iniciações. Quando
conseguimos escapar do janeiro e do dezembro, sempre reencontramos o nosso bom
e velho álibi: o mês seguinte, a semana seguinte. Mas janeiro e dezembro são as
pontas extremadas e implacáveis. Estão ali, alimentadas pelo calendário que
avança e nos diz: “mais um ano se passou e você ainda não fez isto?” Chegamos a
ouvi-lo com seus ácidos termos que nos rebaixa à condição de devedores e
perdedores.
Como injustiça sempre foi, e me parece que ainda por longo tempo será,
o nosso forte, somos injustos com o calendário. Ele apenas faz o seu papel que
é o de avançar e o de seguir. Apenas isso. Talvez sua grande culpa seja a de
nos convidar a acompanhá-lo. Ofendemo-nos com isso e, como consequência, nos
sentimos culpados e cobrados.
Esta pressão que sentimos e que
verbalizamos por meio das nossas ações como correrias, afazeres, iniciações,
pendências e conclusões indicam a nossa ausência em nós, a falta de tempo que
dedicamos para nós mesmos. Somos a visita
faltante em nós. Devemos isto a nós. E por que não a fazemos? Talvez porque
o tempo que deveria ser dedicado para nos visitar (ou para nos revisitar?) está
sendo alocado para outros pormenores, como corre-corres inúteis.
Estamos sempre no tempo futuro, ansiosos.
Angustiados pelo avançar das horas e por ainda tanto a ser feito. Estamos
sempre, ou quase, num lugar que nos
colocaram, muitas vezes. Porque muitos acham
que sabem qual é o melhor lugar para nós. Mesmo que eles não saibam o
melhor lugar para eles. Mas isto é só um detalhe. São muitos os afazeres
desnecessários que acabam escondendo ou menosprezando os afazeres necessários,
infelizmente.
Corremos porque o final do ano
chegou. Mas se o planejamento, organização e visitas constantes a nós forem recorrentes
durante o ano todo, por que a correria? Será que precisamos estar presentes em
tudo? O que resultaria se fizéssemos um pente fino em nossos compromissos? Um
funil firme no que chamamos “urgente”? Acho que descobriríamos tempos e horas
perdidos, isolados ao fundo, apenas aguardando serem úteis.
As visitas que devemos a nós
teriam servido para descobrirmos recursos de tempo e de condição para fazermos
muito, mas muito mesmo. Mas como estamos sempre correndo para darmos conta de
nossas iniciações e conclusões, não nos sobra tempo para visitas, muito menos
para mais explicações.
Cobramos o tempo por ele passar
rápido. Sentimo-nos cobrados por ele. Mas não estamos sendo justos. O que nos
cobra não é o tempo, mas sim a nossa postura de crença neste modelo de atuação.
A nossa atitude de perpetuar modelos que não se justificam.
Nesta reflexão, duas palavras se
sobressaem: sensibilidade e gratidão. Sensibilidade para observarmos que não há
cobranças e nem débitos. Não podemos ser injustos com o tempo. O avançar do
calendário não nos cobra. Apenas nos pede sensibilidade para percebermos que
ele passa. Portanto, é preciso vivê-lo melhor, com referências e responsabilidades.
Ele nos lembra do que ficamos de responder, de fazer, de concluir e de, pelo
menos iniciar. Não como cobrança, mas como um convite para o caminhar. Se
aceitássemos o convite, perceberíamos a trajetória do tempo e,
consequentemente, a nossa. E nesse novo patamar de pensar, as correrias e os
tantos afazeres dariam espaços para o sentido e para o real.
A sensibilidade, se presente em
nossas vidas, nos ajuda a reequilibrar ações e a direcionar melhor as nossas
posições e escolhas diante a vida. O sensível apura os ouvidos para saber o que
a vida quer que seja. As conclusões e as iniciações verdadeiras começam a
reivindicar seus espaços antes ocupados pelos desavisados, os desatentos de
plantão.
Gratidão para não perdermos a
noção e o senso do caminho e da valorização do que, verdadeiramente importa. É
preciso gratidão e sensibilidade para não nos deixarmos influenciar e, acima de
tudo, não nos deixarmos perder a nós mesmos de vista.
A gratidão e a sensibilidade, se
juntas estiverem em nós, ainda assim as correrias e os tantos afazeres
continuarão a existir. Mas o sentido destas tantas coisas, a forma como as
realizaremos, o aproveitamento e a razão de tantas ocupações se tornarão
aliados nossos, e não inimigos. Tendo a gratidão e a sensibilidade como guias,
nosso tempo será melhor aproveitado. Conseguiremos ouvir mais os sons dos pássaros
que ecoam em meio às buzinas estridentes. Saborearemos mais os pores do sol
porque teremos tempo de levantarmos as nossas cabeças para encontrá-los. A
gratidão e a sensibilidade nos farão utilizar os nossos filtros e funis com
objetividade e, desconfio, que sobrarão horas em nosso vasto calendário que
avança, sim, mas que não nos ofende e afronta mais, como achávamos que ele
fazia.
De posse de mais tempo, porque retomamos
contato com a sensibilidade e a gratidão perdidas em algum canto da gente, os
meses ficarão mais longos, os dias passarão normalmente, e as horas poderão até
tirar um esquecido cochilo. Nada disso
comprometerá as nossas entregas se elas forem úteis, necessárias, com sentido e
verdadeiras.
Sensibilidade e gratidão nos
levam para outro patamar de viver. Mesmo com tantos afazeres. E foi o que
comprovei ao ver aquela senhora, de
pouquíssimos dentes, sorrir ao receber uma pequena doação: um pacote de
maçãs, um pacote de pão, peras frescas, bisnaguinhas e alguns doces para as
crianças que convivem com ela e outros adultos, sob um viaduto, na zona sul de
São Paulo. Pensei que aquele sorriso vazio
de dentes e repleto de sensibilidade e de gratidão fosse a minha grande
lição do dia. Engano meu. Já de costas, ela nos chama e diz:
“Muito obrigada. Deus abençoe.” “Por
nada, respondemos.”
“Ah, por favor...” “Sim,
respondemos.”
“Vocês têm horas?” nos perguntou
num tom baixo e educado.
“Claro, são dez para as dez”,
respondemos. “Muito obrigada”. E um outro largo sorriso, vazio de dentes, se escancarou para nós. Estava uma linda manhã.
A voz limpa e baixa daquela
mulher se misturou ao som dos carros que passavam apressados. A curiosa
pergunta daquela mulher “vocês têm horas?” me fez recobrar uns dos grandes
ensinamentos que recebi, na vida, do professor de Filosofia, na Faculdade, que
dizia: “a vida sempre escolherá ensinar o imprescindível pelos caminhos simples
dela. Mas será preciso limpar a vista e os ouvidos para aprendê-lo.”
Nunca mais me esqueci do
ensinamento daquele professor. Sob um viaduto, barulhento e sujo, aquela mulher
trazia o imprescindível pelos caminhos simples da vida: a gratidão e
sensibilidade. Gratidão por ter tido a grandeza de nos doar um largo sorriso
que sobrepunha a ausência dos dentes, e por ter recebido algumas maçãs, tão
pouco frente àquilo que ela necessitava, e ainda assim nos doar um sorriso que
iluminou a escuridão do viaduto. E sensibilidade por ter, mesmo com dores na
alma, valorizado mais o tempo do que o lugar sujo aonde ela se encontrava.
A sensibilidade em nos perguntar
as horas talvez por acreditar neste tempo que avança para construir algo
melhor, e não no avanço aleatório. A correria pela correria porque chegou o
final do ano. As promessas porque chegou o início do ano. Não. Um perguntar de
horas porque as valoriza e porque é sensível ao avançar delas. É preciso
respeitar o tempo. E para tal, é preciso se enxergar inserido nele, grato e
atuante. Respeitar o tempo é vivê-lo em consonância com ele e não à parte dele.
Aquela mulher nos perguntou as horas não porque tivesse muitas coisas a fazer
e, por isso, estava apressada. O contrário. Justamente por estar ciente de onde
estava, de onde vivia, e da completa ausência de perspectiva, expectativa e até
de afazeres, ela crê no tempo e o
percebe. O avançar dele é uma esperança
para aqueles que sofrem.
Aquela mulher era totalmente
desprovida de excessos. Por isso percebia o tempo e nos perguntou as horas, mesmo sabendo que não havia tantas coisas
assim a serem feitas. O querer saber das horas e do tempo deveria estar
além do ato material de preenchê-lo com coisas e afazeres, induzidos por nossa
vaidade e pelo pseudo saber dos outros.
O saber das horas é fundamental
para sermos mais, e não para fazermos mais. E isto aquela mulher já
sabia esbanjando aquele largo sorriso vazio
de dentes. Dentes? Desnecessários quando se tem o mais importante: grandeza
de atitude. Nossas conclusões (conclusas ou inconclusas) e nossas iniciações
(sem finalizações) darão as medidas e as respostas que buscamos na vida.
O nosso estar no mundo é o
produto que resulta no espelho: vivo, incontestável e imperfeito. Os dentes,
portanto, se tornam desnecessários quando nos tornamos grandes.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com uma frase de Cora Coralina, uma das mais importantes
poetisas e escritoras brasileiras, que diz:
“estamos todos matriculados na
escola da vida, onde o mestre é o tempo.”
É preciso nos debruçar sobre nós
mesmos. O tempo para isso existe. Mas a vida precisa que nossas mãos ajam e
façam. Este papel é nosso. O papel dela, e do próprio tempo, que aqui são a
mesma coisa, é o de apenas nos lembrar de que o calendário caminha, mas se
vamos acompanhá-lo, será outra conversa.
O deslocamento de nossas visões
deturpadas nos impede de criar vínculos com quem poderíamos ser. Se quiséssemos.
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