segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Dentes desnecessários

Geralmente, o final do ano e o começo dele são épocas nas quais fazemos balanços: não apenas um, mas vários. Dividimo-nos entre as conclusões que queremos dar a alguns assuntos, influenciados pela energia do final do ano, e iniciações que mais uma vez prometemos fazer, influenciados, agora, pela energia do início do ano. São tantas providências a tomar, negócios a resolver, pendências a absorver e promessas a fazer que nos esquecemos de algo muito importante: o fato de estarmos aqui, vivos. Existir já é algo e tanto. Simples assim.

O avançar do calendário, que bate à porta nos chamando para o próximo ano, não nos cobra promessas não cumpridas. Tampouco traça uma régua dos nossos débitos e créditos baseado no que entregamos ou deixamos de concluir, para, desta forma, nos punir ou nos premiar. O avançar do tempo não faz isso, definitivamente. Apenas colabora para que um novo e outro sol nasça, e assim, nos diga carinhosamente: “levante-se, ainda há muito o que fazer. Por isso, te dou um novo ano.” Sem cobranças. Só uma pitada de assertividade. Nada além disto.

Sentimo-nos muito cobrados pelo tempo porque deixamos coisas para a última hora, literalmente, sejam elas conclusões ou iniciações. Quando conseguimos escapar do janeiro e do dezembro, sempre reencontramos o nosso bom e velho álibi: o mês seguinte, a semana seguinte. Mas janeiro e dezembro são as pontas extremadas e implacáveis. Estão ali, alimentadas pelo calendário que avança e nos diz: “mais um ano se passou e você ainda não fez isto?” Chegamos a ouvi-lo com seus ácidos termos que nos rebaixa à condição de devedores e perdedores.

Como injustiça sempre foi, e me parece que ainda por longo tempo será, o nosso forte, somos injustos com o calendário. Ele apenas faz o seu papel que é o de avançar e o de seguir. Apenas isso. Talvez sua grande culpa seja a de nos convidar a acompanhá-lo. Ofendemo-nos com isso e, como consequência, nos sentimos culpados e cobrados.

Esta pressão que sentimos e que verbalizamos por meio das nossas ações como correrias, afazeres, iniciações, pendências e conclusões indicam a nossa ausência em nós, a falta de tempo que dedicamos para nós mesmos. Somos a visita faltante em nós. Devemos isto a nós. E por que não a fazemos? Talvez porque o tempo que deveria ser dedicado para nos visitar (ou para nos revisitar?) está sendo alocado para outros pormenores, como corre-corres inúteis.

Estamos sempre no tempo futuro, ansiosos. Angustiados pelo avançar das horas e por ainda tanto a ser feito. Estamos sempre, ou quase, num lugar que nos colocaram, muitas vezes. Porque muitos acham que sabem qual é o melhor lugar para nós. Mesmo que eles não saibam o melhor lugar para eles. Mas isto é só um detalhe. São muitos os afazeres desnecessários que acabam escondendo ou menosprezando os afazeres necessários, infelizmente.

Corremos porque o final do ano chegou. Mas se o planejamento, organização e visitas constantes a nós forem recorrentes durante o ano todo, por que a correria? Será que precisamos estar presentes em tudo? O que resultaria se fizéssemos um pente fino em nossos compromissos? Um funil firme no que chamamos “urgente”? Acho que descobriríamos tempos e horas perdidos, isolados ao fundo, apenas aguardando serem úteis.

As visitas que devemos a nós teriam servido para descobrirmos recursos de tempo e de condição para fazermos muito, mas muito mesmo. Mas como estamos sempre correndo para darmos conta de nossas iniciações e conclusões, não nos sobra tempo para visitas, muito menos para mais explicações.

Cobramos o tempo por ele passar rápido. Sentimo-nos cobrados por ele. Mas não estamos sendo justos. O que nos cobra não é o tempo, mas sim a nossa postura de crença neste modelo de atuação. A nossa atitude de perpetuar modelos que não se justificam.

Nesta reflexão, duas palavras se sobressaem: sensibilidade e gratidão. Sensibilidade para observarmos que não há cobranças e nem débitos. Não podemos ser injustos com o tempo. O avançar do calendário não nos cobra. Apenas nos pede sensibilidade para percebermos que ele passa. Portanto, é preciso vivê-lo melhor, com referências e responsabilidades. Ele nos lembra do que ficamos de responder, de fazer, de concluir e de, pelo menos iniciar. Não como cobrança, mas como um convite para o caminhar. Se aceitássemos o convite, perceberíamos a trajetória do tempo e, consequentemente, a nossa. E nesse novo patamar de pensar, as correrias e os tantos afazeres dariam espaços para o sentido e para o real.

A sensibilidade, se presente em nossas vidas, nos ajuda a reequilibrar ações e a direcionar melhor as nossas posições e escolhas diante a vida. O sensível apura os ouvidos para saber o que a vida quer que seja. As conclusões e as iniciações verdadeiras começam a reivindicar seus espaços antes ocupados pelos desavisados, os desatentos de plantão.

Gratidão para não perdermos a noção e o senso do caminho e da valorização do que, verdadeiramente importa. É preciso gratidão e sensibilidade para não nos deixarmos influenciar e, acima de tudo, não nos deixarmos perder a nós mesmos de vista.

A gratidão e a sensibilidade, se juntas estiverem em nós, ainda assim as correrias e os tantos afazeres continuarão a existir. Mas o sentido destas tantas coisas, a forma como as realizaremos, o aproveitamento e a razão de tantas ocupações se tornarão aliados nossos, e não inimigos. Tendo a gratidão e a sensibilidade como guias, nosso tempo será melhor aproveitado. Conseguiremos ouvir mais os sons dos pássaros que ecoam em meio às buzinas estridentes. Saborearemos mais os pores do sol porque teremos tempo de levantarmos as nossas cabeças para encontrá-los. A gratidão e a sensibilidade nos farão utilizar os nossos filtros e funis com objetividade e, desconfio, que sobrarão horas em nosso vasto calendário que avança, sim, mas que não nos ofende e afronta mais, como achávamos que ele fazia.

De posse de mais tempo, porque retomamos contato com a sensibilidade e a gratidão perdidas em algum canto da gente, os meses ficarão mais longos, os dias passarão normalmente, e as horas poderão até tirar um esquecido cochilo. Nada disso comprometerá as nossas entregas se elas forem úteis, necessárias, com sentido e verdadeiras.

Sensibilidade e gratidão nos levam para outro patamar de viver. Mesmo com tantos afazeres. E foi o que comprovei ao ver aquela senhora, de pouquíssimos dentes, sorrir ao receber uma pequena doação: um pacote de maçãs, um pacote de pão, peras frescas, bisnaguinhas e alguns doces para as crianças que convivem com ela e outros adultos, sob um viaduto, na zona sul de São Paulo. Pensei que aquele sorriso vazio de dentes e repleto de sensibilidade e de gratidão fosse a minha grande lição do dia. Engano meu. Já de costas, ela nos chama e diz:

“Muito obrigada. Deus abençoe.” “Por nada, respondemos.”

“Ah, por favor...” “Sim, respondemos.”

“Vocês têm horas?” nos perguntou num tom baixo e educado.

“Claro, são dez para as dez”, respondemos. “Muito obrigada”. E um outro largo sorriso, vazio de dentes, se escancarou para nós. Estava uma linda manhã.

A voz limpa e baixa daquela mulher se misturou ao som dos carros que passavam apressados. A curiosa pergunta daquela mulher “vocês têm horas?” me fez recobrar uns dos grandes ensinamentos que recebi, na vida, do professor de Filosofia, na Faculdade, que dizia: “a vida sempre escolherá ensinar o imprescindível pelos caminhos simples dela. Mas será preciso limpar a vista e os ouvidos para aprendê-lo.”

Nunca mais me esqueci do ensinamento daquele professor. Sob um viaduto, barulhento e sujo, aquela mulher trazia o imprescindível pelos caminhos simples da vida: a gratidão e sensibilidade. Gratidão por ter tido a grandeza de nos doar um largo sorriso que sobrepunha a ausência dos dentes, e por ter recebido algumas maçãs, tão pouco frente àquilo que ela necessitava, e ainda assim nos doar um sorriso que iluminou a escuridão do viaduto. E sensibilidade por ter, mesmo com dores na alma, valorizado mais o tempo do que o lugar sujo aonde ela se encontrava.

A sensibilidade em nos perguntar as horas talvez por acreditar neste tempo que avança para construir algo melhor, e não no avanço aleatório. A correria pela correria porque chegou o final do ano. As promessas porque chegou o início do ano. Não. Um perguntar de horas porque as valoriza e porque é sensível ao avançar delas. É preciso respeitar o tempo. E para tal, é preciso se enxergar inserido nele, grato e atuante. Respeitar o tempo é vivê-lo em consonância com ele e não à parte dele. Aquela mulher nos perguntou as horas não porque tivesse muitas coisas a fazer e, por isso, estava apressada. O contrário. Justamente por estar ciente de onde estava, de onde vivia, e da completa ausência de perspectiva, expectativa e até de afazeres, ela crê no tempo e o percebe. O avançar dele é uma esperança para aqueles que sofrem.

Aquela mulher era totalmente desprovida de excessos. Por isso percebia o tempo e nos perguntou as horas, mesmo sabendo que não havia tantas coisas assim a serem feitas. O querer saber das horas e do tempo deveria estar além do ato material de preenchê-lo com coisas e afazeres, induzidos por nossa vaidade e pelo pseudo saber dos outros.

O saber das horas é fundamental para sermos mais, e não para fazermos mais. E isto aquela mulher já sabia esbanjando aquele largo sorriso vazio de dentes. Dentes? Desnecessários quando se tem o mais importante: grandeza de atitude. Nossas conclusões (conclusas ou inconclusas) e nossas iniciações (sem finalizações) darão as medidas e as respostas que buscamos na vida.

O nosso estar no mundo é o produto que resulta no espelho: vivo, incontestável e imperfeito. Os dentes, portanto, se tornam desnecessários quando nos tornamos grandes.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma frase de Cora Coralina, uma das mais importantes poetisas e escritoras brasileiras, que diz:

“estamos todos matriculados na escola da vida, onde o mestre é o tempo.”

É preciso nos debruçar sobre nós mesmos. O tempo para isso existe. Mas a vida precisa que nossas mãos ajam e façam. Este papel é nosso. O papel dela, e do próprio tempo, que aqui são a mesma coisa, é o de apenas nos lembrar de que o calendário caminha, mas se vamos acompanhá-lo, será outra conversa.

O deslocamento de nossas visões deturpadas nos impede de criar vínculos com quem poderíamos ser. Se quiséssemos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário