Há uma semana do que aconteceu em
Brumadinho, mais um caso que nos relembra a nossa pequenez, vejo, pela tevê, candidatos
ao Senado e os famigerados apoiadores distribuindo santinhos nos corredores.
Mudo de canal porque o meu estômago, às
vezes, pede um refresco. A minha capacidade de digestão, e acho que a sua
também, têm limites. Por isso, mudo de canal mesmo que isto me custe pagar o
preço da alienação. Volto para o computador e ouço, pertinho de mim, o silêncio
da rua que me permitiu perceber o som de um pássaro cantando na árvore do
jardim, aqui do prédio. Um canto firme e persistente do pássaro que, sem o
silêncio que se impunha, não seria percebido.
“Vocês, Ocidentais, são muito
barulhentos. Precisam aprender a arte de silenciar”, disse, certa vez, um líder
indiano. Infelizmente, abrimos mão de aprendizados valiosos como este. Mas a
vida espera pela nossa boa vontade. Só não sei quanto a boa vontade dela.
Lembrei-me deste ensinamento ao
ouvir aquele pássaro que tanto me ensinava naquele momento: um recolher de asas
aqui, um canto lá, uma passada leve e devagar, um olhar para a natureza, um
sacudir de penas logo ali. Fiquei me dando ao luxo de reparar aquele pássaro
por alguns segundos, e era isso o que ele fazia: com calma e em silêncio, seguia seu rumo sem se impor para a vida. O
contrário: via-se a própria vida se manifestando através dele. Um caminhar leve
e silencioso que, de tão distante de nós, desaprendemos como fazê-lo. Mas o
pássaro sabia. Aquele silêncio que eu ouvia e que me permitia ouvir o pássaro,
me ensinava.
Fiquei refletindo sobre o
silêncio e a utopia da presença dele em nossas vidas. É preciso silenciar para
ouvir. Ouvir os pássaros e o que a vida, há tempos, insiste em nos dizer. Se em
silêncio estivéssemos, talvez a barragem, em Brumadinho, não tivesse se
rompido. Não sei. Era uma possibilidade. Mas o barulho construído por nós, por
meio da nossa vaidade, ganância e egoísmo, impediu esta esperança. O silêncio desprezado.
Aqueles políticos famintos, distribuindo os santinhos, me enojaram,
confesso, frente ao que aconteceu com Brumadinho, com as pessoas, com a
Natureza, com os animais. Cito Brumadinho porque é o crime atual de uma lista
que não se esgota, infelizmente. O crime
atual desta semana vigente, e destas horas que falo. Porque sempre há um
crime fresco, novinho em folha saindo de um forno que não desliga os seus
botões da ineficiência, do retardo, do descaso com uma Nação que, de longe, é.
Uma Nação pressupõe união. União?
Desnecessário discorrer sobre os
detalhes deste crime. Os noticiários nos abasteceram o suficiente. Por isso, o
estômago se enfurece. Apenas tomo a liberdade de propor uma reflexão sobre o
silêncio. É preciso silenciar para saber o que vai em nós. Não um silêncio
passivo, inaudível e ativista de sofá, mas um silêncio que revela o mal que vai
em nós. Que revela a vergonha que deveríamos sentir ao naturalizarmos as coisas
cruéis e inescrupulosas. Um silêncio constrangedor que nos expõe e nos rebaixa
à condição do subsolo. Um silêncio de mãos firmes que nos exige, no mínimo, que
a gente abra mão de vivermos apartados.
Somos engolidos pela confusão
interna e externa e por apelos que nos dispersam, num mundo barulhento. É
preciso interromper este automatismo e desativar os dispersadores dos nossos
sentidos adoecidos e perdidos. Enquanto uns morrem sem o menor escrúpulo,
enquanto animais lutam para conseguirem tirar suas patas da lama, outros
distribuem santinhos pelos corredores bem aprumados. Lama lá, há muita. Mas
estão submersas nos tapetes azuis do Senado como metáforas de uma construção
inacabada, que é o que somos.
O mundo sempre foi um lugar
conflituoso. A questão hoje é a exaustão. Falimos. Nossos conflitos não são
explicitados. Passamos por cima deles porque somos muito barulhentos, ruidosos.
Não nos ouvimos. Daqui a pouco nem falaremos mais sobre Brumadinho. Ou se
falarmos, será como uma página triste de nossas histórias.
O tempo é silencioso e sábio. Há
tempos que o tempo nos encaminha nossas contas. Mas estão todas nos esperando
sobre o capacho de nossas portas.
O silêncio vem da sabedoria do tempo. O ruído e o barulho vêm da gente.
O silêncio e o barulho são incompatíveis. É preciso fazer uma escolha.
Não estamos sendo capazes de
viver conosco. Por isso o barulho ensurdecedor das buzinas que buzinam a todo o
tempo. O barulho tornou-se um hábito para esconder os nossos vazios. “Fala
demais por não ter nada a dizer”, diz Renato Russo. Falamos muito, dizemos
muito. Enquanto isso, a ação morre e a lama cobre sonhos, vidas e pessoas.
O hiato em nós nos torna barulhentos.
Assim não pensamos e não agimos. Seguimos os passos já pisados e trilhados.
Isto explica porque as coisas se repetem, infelizmente. O que foi Brumadinho
senão a repetição agravada, se é que é possível dizer isto, de Mariana?
No barulho, o silêncio perde
espaço. Nada se constrói no barulho. Nossas amizades são fortalecidas não pelas
falas constantes, mas pelos silêncios concedidos nos momentos críticos. O
silêncio é a construção. O barulho é a destruição e a alienação. No barulho,
não temos condições de enxergar o que se passa. Ele favorece o aflorar do nosso
oportunismo e do nosso egoísmo. Este sufixo “ismo” que diz que optamos pelo
adoecimento.
Quando o silêncio nos preenche,
fazemos menos barulho. O que aconteceu com Brumadinho é a representação do
barulho e da lama que vão em nós. Não a lama da terra, que abraçou Brumadinho,
mas uma lama moral, presente em cada um de nós.
A Natureza chorou nesta semana,
em Brumadinho. Um choro triste e ressentido. A Natureza não se vingou, como
muitos disseram, mas apenas foi vítima da nossa indignidade. Se eu pudesse,
retiraria nosso título de humanos. Acho que não o merecemos. A barbárie talvez
fosse um melhor encaixe para nós.
Shakespeare dizia: “Não há arauto mais perfeito da alegria do que o
silêncio”. Há muito o que fazer. Se ainda não silenciamos e não o valorizamos
como instrumento de construção, a alegria é um degrau distante de nós. Somos, quase todos, rejeitadores do silêncio.
Mais importante que relembrar a importância do silêncio, será
reaprendermos a silenciar.
Dizem que Beethoven, durante um ensaio da Filarmônica de Berlim, interrompeu
os trabalhos para dizer, a uma violonista: “neste intervalo, não há nota a ser
tocada. Isso é o sagrado desta sinfonia.” Se isto é verdade ou lenda, não sei.
Mas que Beethoven era um gênio que já valorizava o silêncio e suas pausas, não
há dúvidas. Por que a violonista quis preencher um espaço com outra nota? Por que
o silêncio deveria soar incômodo, intimidador. Mas Beethoven trouxe que “o
sagrado daquela sinfonia era aquele intervalo sem notas”. Ou seja, o silêncio.
Este intervalo que a vida precisa para se manifestar. Brilhante. O convite está
feito.
Os ruídos alimentam os nossos
vazios. Impomos a nossa presença ao outro por meio de barulhos. As pausas fazem
toda a diferença. São elas e os silêncios que nos permitem discutir as nossas
fragmentações.
Viver o silêncio é resgatar a nossa
dignidade perdida. Dignidade é a condição de nos carregar, com nossos temores,
horrores e pequenezas. Mas há um descompasso nisto. Por isso, a todo o momento
precisamos nos explicar. Sempre estamos devendo.
Explicar-se é um contato medonho
que temos na vida. Ainda isto é preciso por estarmos nesta condição de
imprecisos, inconclusos e devedores que somos.
Penso que se ficássemos quietos e
evitássemos ruídos, nossos resultados seriam melhores. No momento em que
escrevo esta frase, uma moto barulhenta passa na minha rua, impondo o seu
barulho a mim. Ironia. Um barulho cafona e brega que me obriga a percebê-lo.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com uma provocação do próprio Beethoven, o gênio compositor alemão, que diz:
“Nunca quebre o silêncio se não
for para o melhorar.”
Se fôssemos seguir o conselho de Beethoven, nosso tempo seria vivido mais
em silêncio do que em palavras. Porque, de verdade, desconfio se queremos
melhorar sem esforço. Somente os corajosos ouvem o silêncio e o encaram como
aquele que os tirará da paralisia ética e moral. Beethoven
tinha toda a razão. A genialidade dele foi capaz de ser traduzida em
maravilhosas obras porque ele valorizou o silêncio. Certamente porque não ficou
em corredores nem distribuindo e nem, muito menos, recebendo santinhos, uma
metáfora daquele que constrói ruídos por não ter a competência de ouvir e de
perceber o silêncio, o único instrumento que possibilita retomar a nossa
autonomia e a nossa obrigação como humanos.
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