Quem dera a porta se abrisse ao
tocarmos a campainha, ao soprarmos a sineta. Mas a porta tem seus caprichos.
Outros compromissos. É preciso esperar. Aguardar. Silenciar. A porta permanece
fechada não porque nos ignora, mas porque não nos olha.
Não nos olha. Ou não queremos
ser vistos?
Não sermos vistos é uma forma
de viver. Não sermos vistos nos isenta de possíveis convocações de prestações
de conta. Mais fácil viver apenas admirando os trens que passam na estação. Mas
também aqueles que apenas os admiram, não vivem. E como não vivem, longe estão
de desfrutarem o balanço dos trens sobre os trilhos, o cheiro do mato passando
ao lado, o tilintar dos bancos, o ouvir do som das vozes dos outros e a
experiência de ser um dos motivos de andar daqueles trens. Alguém pode dizer,
“prefiro ficar na estação”, mas este será sempre alguém defronte de si próprio
a procura de um lugar para ser seu. Um ambulante sem estrada, que migra tentando
transportar a si. Um possível itinerante, um “talvez existido ou aquele que
sempre vai ser o que não nasceu para isso”, como disse o genial Fernando
Pessoa.
A porta continua fechada. Mas
agora observamos que há uma maçaneta lá. E se a virássemos discretamente e
abríssemos a porta? Talvez a distração de quem está dentro impediu o ouvir da
campainha quando a tocamos. Então, para disfarçar, tocamos a campainha mais uma
vez somente por educação, caso alguém esteja nos observando, da vizinhança.
Indelicado já ir se apossando da maçaneta. Como sempre somos aquele quem
deve esperar, a porta, absoluta, se nega outra vez para nós, e nos afronta com
o limite imposto. Disfarçadamente, viramos a maçaneta para abri-la forçosamente,
porque assim queremos, porque assim fazemos. Queremos e fazemos. Mas e o
querer e o fazer da porta?
Que pena dá da gente algumas
vezes. A porta nos humilha e dança na nossa frente nos dizendo: “você ainda não
é bem-vindo aqui”. Eu te ouvi, mas parece que você não ouviu o que eu dizia:
“volte depois, talvez amanhã, quiçá depois de amanhã.”
Acostumar-se às ordens de uma
porta é trabalhar arduamente a nossa vaidade. Viramos a maçaneta porque não
admitimos não sermos ouvidos pela campainha e nem atendidos pela porta.
Queremos entrar, e de preferência, passar rapidamente pela cozinha e avançar
para os cômodos mais nobres. A resposta nítida da porta não nos convence.
Precisamos forçar a entrada. Forçamos. E aí somos despejados. Um despejo sem
traquejo. Estamos vestidos e prontos e vivos. E
despejados. A autossuficiência que pensamos possuir sempre conversa com abismos
que nos rondam. É preciso atenção no caminhar.
Tudo o que nos consola também nos
viola. Fomos vistos. A porta nos viu. Mas não abriu.
Ela nos viu. Por que não fomos
convidados a entrar? Ela nos ouviu. Onde já se viu tamanho desencontrar? “Você
sabe com quem está falando?”, dizemos à porta. Ela nos diz: “sim, sei sim, mais
alguma informação?”. Humilhados, recuamos. De vez em quando, é importante conhecer
o lugar ao qual temos direito. Costumamos pedir sempre um extra, mas a vida não
pode ser sempre tão generosa.
Do lado de fora, gentilmente
colocados, somos convidados a encontrar caminhos do nosso presente que nos
conduzam para dentro da casa. É preciso entrar. Mas é preciso, também, pararmos
de emitir comandos e exigências do topo, aonde sempre nos colocamos. Quando
descemos do topo, a nossa visão recupera verdades e conquistamos o nosso
direito de nos levantar para abrirmos as janelas que fechamos, cuidadosamente,
porque alguém disse que viria uma chuva forte.
Ainda do lado de fora, nos damos
conta da importância de cultivarmos a modéstia, tão ultrapassada e fora de
moda. Disfarçamos modéstia e prosseguimos. Mas os fatos mostram o nosso
disfarce. Por isso, agora, do lado de fora da porta, percebemos. Do lado de
fora, percebemos nossa ansiedade porque forçamos a maçaneta. E a ansiedade nos coloca
em lugares que ainda não chegaram. Ela te faz querer horas que o dia não tem,
te faz chamar de lentos o sol e a lua, que juntos, fazem um imenso trabalho de
acolher a todos, que somos nós. Ansiosos, sempre estamos lá e nunca no aqui.
O aqui nos levará ao lá.
Por que não percebemos? Ansiosos, consertamos coisas que não precisariam ser
consertadas. E outras, empoeiram e alimentam traças. Ansiosos, tiramos
conclusões incríveis que envergonhariam aqueles que já abandonaram o caminho da
ignorância. Ansiosos, discordamos do tempo. Pobres que somos!
Quando batemos, é preciso
esperar. A maçaneta continua ali, parada. Mas agora, somos estranhos a ela. Não
queremos mais forçá-la. A solidão nos fez bem. Solitários que somos, mas não
nulos. O texto é sempre menos que o contexto. Mas sem texto, não há contexto.
Sem o contexto, o texto é só, manco, viajante e solto pelo mundo. Sem o texto,
o contexto perde o sentido. Texto somos nós, pequenas peças que se encaixam no
todo; contexto, uma porta chamada vida. A solidão e a humilhação nos fizeram
bem. Fomos despejados para lotes distantes das estradas, mas experimentar isso
foi o que nos fez chegar a estas respostas.
Sem experiências não há
respostas. Sem texto não há contexto. Seria desonesto varrer tudo isto para
debaixo do tapete.
Esticamos as nossas pernas e nos
levantamos. Passou-se muito tempo. É preciso nos acostumar a fazer longos
percursos. Um caminho verdadeiro e de valor requer tempo. E tempo foi tudo o
que mais tivemos. Tocamos a campainha mais uma vez. O som agora saiu um pouco
mais fraco, talvez porque tenhamos colocado menos força. O tempo também nos
ensina que a força raramente será a melhor saída. A melhor saída sempre será
possuir a ferramenta certa para cada luta necessária. Nada mais humilhante do
que saber que algo precisa ser feito e não termos a ferramenta adequada. Por
isso fomos despejados e postos, delicadamente, para fora. Quisemos acelerar a
nossa escalada, mas fomos obrigados a recuar.
Fomos ouvidos. A porta se abriu.
Por completo. Ficamos felizes. Receosos se podemos entrar ou não, ouvimos:
“entre, você é bem-vindo aqui. Se quiser, pode tirar os seus sapatos para ficar
mais à vontade.” Como estranhos que somos, como estrangeiros que somos, como
disse Clarice Lispector, aceitamos o convite e entramos. Esquecemos a sala e o
escritório. Queremos, primeiro, conhecer os banheiros e a cozinha. Parece que
agora percebemos que muito se aprende nestes lugares. Pedimos licença para
entrar e para avançar. Aprendemos. Ouvimos um som forte. Olhamos para trás e
observamos que a porta se fechou, mas agora, conosco dentro. Conquistamos o
direito de ficar e ainda ganhamos cópia das chaves.
Encerramos o expediente.
Descalços. Vestidos. Acordados. Na cozinha. Somos bem-vindos aos outros
cômodos, também. Mas para ter acesso ao escritório, antes é preciso estagiar na
cozinha e no banheiro. Apreender o que de lá vier. Pedir licença. Aguardar.
Esperar. O tempo somente valoriza aquilo que foi construído com a ajuda dele,
disse um grande Mestre. E caminhar pela casa leva tempo, muito tempo. Há um
lugar de partida e é daí que se deve começar, sob pena de sermos, novamente, despejados.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com uma passagem de um poema de Fernando Pessoa, poeta
atemporal e necessário, que diz:
“...como um ruído de chocalhos,
para além da curva da estrada, os meus pensamentos são contentes...”
Penso que nossos chocalhos chiam
porque nos chamam. Querem o nosso avanço. Querem nos mostrar o que há além da
curva da estrada. Mas para tal, é preciso respeitar a casa, os cômodos, o
atender de porta. E, acima de tudo, respeitar o silêncio da porta em não se abrir
para nós. Somente de posse deste respeito, seremos convidados a entrar,
novamente.
Saídos que fomos, despejados fomos
também. Recompusemo-nos. De posse da chave, agora estamos dentro de casa,
novamente. Se um dia fomos saídos e despejados foi porque gastamos por conta
sem levarmos em conta que não podíamos fazer num faz de conta.
À espera que estávamos de a porta
se abrir, ela se abriu. Entramos. E começamos a nos reconhecer na nossa casa,
novamente. E começamos a reconhecer a nossa casa, novamente.
Estranhos que somos. Estrangeiros
que somos todos e que sempre seremos. Mas agora estrangeiros reconhecidos na
própria casa. Na nossa casa.
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