sábado, 6 de março de 2021

Agendas mancas

Para este texto, parto de uma fala popular que diz: “é o que tem pra hoje”.

O que tem pra hoje?

Várias podem ser as leituras acerca desta frase, deste pensamento popular. Mas o sentido que busco desta frase, por meio de uma reflexão que quero produzir aqui, é o de passagem obrigatória pelo presente para conquistarmos e construirmos os degraus para o futuro.

Somos andarilhos. Andamos tortos, ora à margem, ora sobre a via. O choro e o riso consomem a mesma energia que gastamos para os disfarces. Choramos. Rimos. Fingimos. Achamos. Fazemos de conta. Acreditamos. Desconfiamos. Respondemos. Desconfiamos de novo. Mudamos o canal. Identificamos como amigo com uma facilidade assustadora. Rompemos. Anotamos. Validamos. Atendemos. Dizemos. Esquecemos. Resgatamos. Preenchemos vazios. Criamos. Cansamos. Dormimos. Acordamos. O verbo nos representa. Não me refiro ao Verbo explicado no primeiro capítulo do Evangelho segundo João, o apóstolo do Cristo, para aqueles que nele creem. Mas, refiro-me ao verbo como única resposta que temos dado à vida: fazer, fazer, fazer, um fazer esvaziado de sentido.

O que tem pra hoje? Por ora, este verbo, esta lotação apertada de coisas feitas que não nos lembramos dos motivos da realização. São tantos os verbos realizados, que temos nos perdido nas conjugações: choramos. Mas choraríamos? Esquecemos. Mas teríamos nos esquecido? Anotamos, mas anotaremos? Dizemos, mas dissemos? Se choraríamos, por que há aqueles que choram choros invisíveis? Se acordamos, por que nossos olhos ainda não enxergam?

Quem está disposto a debruçar sobre este volume de verbos que fazemos, mas que tem deixado de caminhar conosco? Rotas tortas têm sido o nosso norte em nossas agendas mancas. Utilizamos lápis para marcarmos os nossos passos e para sabermos que passamos, aqui. Mas alguém tem utilizado borrachas que fortalecem o vínculo com o esquecimento. Laços firmes, fortemente tratados e contratados.

O que tem pra hoje? Os degraus são feitos pelos nossos pés, estejam eles nus, descalços ou calçados. O futuro é algo inatingível, mas possível nos é pensar sobre ele. Como chegar até ele se o que temos pra hoje não nos serve? Não nos tem servido? Quando falo “o que tem pra hoje” não me refiro à acomodação da mesmice, da inércia, da aceitação do medíocre e do nosso hóspede “fazer o quê?”, mas sim este avançar de que necessitamos e de que precisamos, no entanto, atropelamos e buscamos atalhos doentes que nos reconhecem.

O que tem pra hoje é o mapa que está nas nossas mãos. Aceitar este mapa significa aceitar que estamos perdidos, mas também significa um trajeto, um lugar de rotas, de caminhos e de ondes. Quando temos, que seja, um respingado de humildade para concordarmos que estar perdido não é uma condição vitalícia, mas provisória, o mapa começa a ficar mais amigável, e o que tem pra hoje começa a nos servir.

Somos andarilhos, ainda. Uma inconstância nos acomoda num ar fresco que temos dificuldades de sair. Queremos sair? Somos nômades em busca de estruturas sólidas. Penso que um dos passos que inicia o abandono do estado de andarilho é o reconhecimento do que se tem pra hoje.

Sofremos de um amadorismo quando desprezamos o feito, o construído. Queremos o do próximo sem querermos dar os passos que o próximo deu. Queremos o amanhã sem esperarmos o nascer do Sol. Apressamos a Lua. Ela, irritada, se demora a sair. Brigamos com a Natureza quando apressamos o nascimento. Somos Deuses, uma santidade vã que menospreza o ritmo pequeno, os passos miúdos, o cantar de um pássaro, o calçado sem marca e a blusa da moda passada. O que tem pra hoje pode ser pouco, pequeno e barato, mas é o que tem pra hoje. Imprescindível é aceitarmos que o amanhã virá a partir do que tem pra hoje. Não há rotas de fuga, tampouco atalhos inteligentes, neste caso. Não há. Sabemos. Mas por qual motivo ainda insistimos? Talvez por falta de memória de dores intensas. Aqueles que as possuem, certamente, possuem outra relação com o que tem pra hoje.

Sofremos de uma pressa crônica para chegarmos onde? Insistimos nas perguntas vazias, na ociosidade e na espuma que vende. Aquele que corta a fita não será o mesmo, provavelmente, a resolver o problema que acontecerá depois. Por isso, talvez, a pressa. O que tem pra hoje?

Numa reunião de trabalho, certa vez, o facilitador apresentou todo o trabalho, e nos trouxe as vulnerabilidades e problemas de uma determinada situação que estávamos passando. No momento de as pessoas se pronunciarem, fizeram apenas elogios à apresentação, sem discussão e possível solução alguma para o que se apresentou. O problema que o facilitador trouxe ficou em segundo plano, esquecido frente aos elogios para os slides. Somos andarilhos e agora, também alheios. Isto dificulta, muitíssimo, a aceitação do que se tem pra hoje. A falta de humildade para aceitarmos que somos falíveis, incompletos, mesquinhos, imprecisos nos atrasa. Poderíamos estar mais altos na nossa escada, mas ela possui inúmeros degraus sem pisadas, sem marcas. Nossos pés os desconhecem porque aqueles se esmeram no adormecimento.

O futuro é um lugar preenchido de presentes, de passados e de atualidades. Preciso é, portanto, valorizar o que se tem pra hoje. Não uma valorização vendida pela autoajuda que acredita num mundo mágico sem problemas, sem conflitos e que basta querermos que conseguiremos. Não um discurso barato de ode ao vitimismo, à pobreza e à perseguição do pouco, do fraco. Sabemos que a complexidade da vida não nos permite acreditar em tamanha leviandade. Mas uma valorização de um a partir de, de uma construção, de um gosto pelas etapas, de um esforço insistente porque traz sentido e valor. A obra poderá demorar, mas ela somente terá vida mediante a aceitação do que tem pra hoje.

Que o nosso tempo descontinue conversas inúteis, insossas, grosseiras e arrogantes. Que possamos, cada vez mais, enxergar valor nas pequenas contribuições, nas obras dos anônimos, no cumprimento daquele que vende limão na feira, no bolo quente sem cobertura, no arroz sem frescura, na Faculdade sem renome (um nome somente não bastaria?), no lixeiro e no peixeiro, assim como no empregado e no sorriso daquele Senhor, cuja moradia nobre é a rua. Sem hipocrisias nestas aceitações, porque o mínimo é relevante, o desprovido somente o é de dinheiro. Sem hipocrisias nestas aceitações, porque o que tem pra hoje é condição para avançarmos. Sem esta condição, certamente, vamos precisar reaprender a lavarmos o arroz e a cozinharmos o feijão.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um incômodo pensamento de Guimarães Rosa, escritor brasileiro dos mais importantes, que diz:

“Viver é etecetera...”

No fundo, somos este caminhar, este ir, esta etecetera. Por isso, o que tem pra hoje não pode ser desprezado, nem abreviado. Como avançaremos sem as nossas eteceteras? Sem as nossas sequências? Nossas eteceteras, como nos trouxe Guimarães Rosa, é o dever do nosso cuidar. E todo aquele que cuida cria compromissos. E todo aquele que tem compromisso cria uma relação. Uma relação de amor conosco, com o outro, com aquilo que vai, que foi e que irá em nós e no outro. Nossa maleta vai cheia de eteceteras que, certamente, está conversando com o que tem pra hoje.

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