O que tem pra
hoje?
Várias podem ser
as leituras acerca desta frase, deste pensamento popular. Mas o sentido que
busco desta frase, por meio de uma reflexão que quero produzir aqui, é o de
passagem obrigatória pelo presente para conquistarmos e construirmos os degraus
para o futuro.
Somos
andarilhos. Andamos tortos, ora à margem, ora sobre a via. O choro e o riso
consomem a mesma energia que gastamos para os disfarces. Choramos. Rimos.
Fingimos. Achamos. Fazemos de conta. Acreditamos. Desconfiamos. Respondemos.
Desconfiamos de novo. Mudamos o canal. Identificamos como amigo com uma
facilidade assustadora. Rompemos. Anotamos. Validamos. Atendemos. Dizemos.
Esquecemos. Resgatamos. Preenchemos vazios. Criamos. Cansamos. Dormimos.
Acordamos. O verbo nos representa. Não me refiro ao Verbo explicado no
primeiro capítulo do Evangelho segundo João, o apóstolo do Cristo, para aqueles
que nele creem. Mas, refiro-me ao verbo como única resposta que temos
dado à vida: fazer, fazer, fazer, um fazer esvaziado de sentido.
O que tem pra
hoje? Por ora, este verbo, esta lotação apertada de coisas feitas
que não nos lembramos dos motivos da realização. São tantos os verbos
realizados, que temos nos perdido nas conjugações: choramos. Mas choraríamos?
Esquecemos. Mas teríamos nos esquecido? Anotamos, mas anotaremos? Dizemos, mas
dissemos? Se choraríamos, por que há aqueles que choram choros invisíveis? Se
acordamos, por que nossos olhos ainda não enxergam?
Quem está
disposto a debruçar sobre este volume de verbos que fazemos, mas que tem
deixado de caminhar conosco? Rotas tortas têm sido o nosso norte em nossas
agendas mancas. Utilizamos lápis para marcarmos os nossos passos e para sabermos
que passamos, aqui. Mas alguém tem utilizado borrachas que fortalecem o vínculo
com o esquecimento. Laços firmes, fortemente tratados e contratados.
O que tem pra
hoje? Os degraus são feitos pelos nossos pés, estejam eles nus, descalços ou
calçados. O futuro é algo inatingível, mas possível nos é pensar sobre ele.
Como chegar até ele se o que temos pra hoje não nos serve? Não nos tem
servido? Quando falo “o que tem pra hoje” não me refiro à acomodação da
mesmice, da inércia, da aceitação do medíocre e do nosso hóspede “fazer o quê?”,
mas sim este avançar de que necessitamos e de que precisamos, no entanto,
atropelamos e buscamos atalhos doentes que nos reconhecem.
O que tem pra
hoje é o mapa que está nas nossas mãos. Aceitar este mapa significa aceitar
que estamos perdidos, mas também significa um trajeto, um lugar de rotas, de
caminhos e de ondes. Quando temos, que seja, um respingado de humildade para
concordarmos que estar perdido não é uma condição vitalícia, mas provisória, o
mapa começa a ficar mais amigável, e o que tem pra hoje começa a nos
servir.
Somos
andarilhos, ainda. Uma inconstância nos acomoda num ar fresco que temos
dificuldades de sair. Queremos sair? Somos nômades em busca de
estruturas sólidas. Penso que um dos passos que inicia o abandono do estado de
andarilho é o reconhecimento do que se tem pra hoje.
Sofremos de um
amadorismo quando desprezamos o feito, o construído. Queremos o do próximo sem
querermos dar os passos que o próximo deu. Queremos o amanhã sem esperarmos o
nascer do Sol. Apressamos a Lua. Ela, irritada, se demora a sair. Brigamos com
a Natureza quando apressamos o nascimento. Somos Deuses, uma santidade vã que
menospreza o ritmo pequeno, os passos miúdos, o cantar de um pássaro, o calçado
sem marca e a blusa da moda passada. O que tem pra hoje pode ser pouco,
pequeno e barato, mas é o que tem pra hoje. Imprescindível é aceitarmos
que o amanhã virá a partir do que tem pra hoje. Não há rotas de fuga,
tampouco atalhos inteligentes, neste caso. Não há. Sabemos. Mas por qual motivo
ainda insistimos? Talvez por falta de memória de dores intensas. Aqueles que as
possuem, certamente, possuem outra relação com o que tem pra hoje.
Sofremos de uma
pressa crônica para chegarmos onde? Insistimos nas perguntas vazias, na
ociosidade e na espuma que vende. Aquele que corta a fita não será o mesmo,
provavelmente, a resolver o problema que acontecerá depois. Por isso, talvez, a
pressa. O que tem pra hoje?
Numa reunião de
trabalho, certa vez, o facilitador apresentou todo o trabalho, e nos trouxe as
vulnerabilidades e problemas de uma determinada situação que estávamos
passando. No momento de as pessoas se pronunciarem, fizeram apenas elogios à
apresentação, sem discussão e possível solução alguma para o que se apresentou.
O problema que o facilitador trouxe ficou em segundo plano, esquecido frente
aos elogios para os slides. Somos andarilhos e agora, também alheios.
Isto dificulta, muitíssimo, a aceitação do que se tem pra hoje. A falta
de humildade para aceitarmos que somos falíveis, incompletos, mesquinhos,
imprecisos nos atrasa. Poderíamos estar mais altos na nossa escada, mas ela possui
inúmeros degraus sem pisadas, sem marcas. Nossos pés os desconhecem porque aqueles
se esmeram no adormecimento.
O futuro é um
lugar preenchido de presentes, de passados e de atualidades. Preciso é,
portanto, valorizar o que se tem pra hoje. Não uma valorização vendida
pela autoajuda que acredita num mundo mágico sem problemas, sem conflitos e que
basta querermos que conseguiremos. Não um discurso barato de ode ao vitimismo,
à pobreza e à perseguição do pouco, do fraco. Sabemos que a complexidade da
vida não nos permite acreditar em tamanha leviandade. Mas uma valorização de um
a partir de, de uma construção, de um gosto pelas etapas, de um esforço
insistente porque traz sentido e valor. A obra poderá demorar, mas ela somente
terá vida mediante a aceitação do que tem pra hoje.
Que o nosso
tempo descontinue conversas inúteis, insossas, grosseiras e arrogantes. Que possamos,
cada vez mais, enxergar valor nas pequenas contribuições, nas obras dos
anônimos, no cumprimento daquele que vende limão na feira, no bolo quente sem
cobertura, no arroz sem frescura, na Faculdade sem renome (um nome somente não
bastaria?), no lixeiro e no peixeiro, assim como no empregado e no sorriso
daquele Senhor, cuja moradia nobre é a rua. Sem hipocrisias nestas aceitações,
porque o mínimo é relevante, o desprovido somente o é de dinheiro. Sem
hipocrisias nestas aceitações, porque o que tem pra hoje é condição para
avançarmos. Sem esta condição, certamente, vamos precisar reaprender a lavarmos
o arroz e a cozinharmos o feijão.
Quero encerrar
este texto, mas não a reflexão, com um incômodo pensamento de Guimarães Rosa,
escritor brasileiro dos mais importantes, que diz:
“Viver é
etecetera...”
No fundo, somos
este caminhar, este ir, esta etecetera. Por isso, o que tem pra hoje não
pode ser desprezado, nem abreviado. Como avançaremos sem as nossas eteceteras?
Sem as nossas sequências? Nossas eteceteras, como nos trouxe Guimarães Rosa, é
o dever do nosso cuidar. E todo aquele que cuida cria compromissos. E todo
aquele que tem compromisso cria uma relação. Uma relação de amor conosco, com o
outro, com aquilo que vai, que foi e que irá em nós e no outro. Nossa maleta
vai cheia de eteceteras que, certamente, está conversando com o que tem pra
hoje.
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