domingo, 22 de março de 2015

Apertem os cintos...a água sumiu...

...e com ela os valores, a vergonha, a decência, o respeito, a dignidade.

Mas uma coisa não sumiu, pelo menos ainda: a nossa capacidade de indignação. Ainda vejo, e muito, pessoas indignadas. E isto é bom, desde que aliado à ação. Indignação sem ação é só um discurso vazio. E eu acho que é este poder de indignação que ainda nos sustenta, que ainda nos faz acreditar em algo. Quando perdermos isto, certamente o respeito, a vergonha, a decência e os valores já terão ficado para trás há muito tempo.

O fato é que estamos sentindo falta de muitas coisas, de coisas boas, decentes, honestas. E fartos de tantas outras coisas fúteis, indecentes, desonestas. Sentimos falta e estamos fartos. Falta e farta. Falta do que é certo, farta do que está demais. A brincadeira com as palavras mostra que brincar deveria ser algo saudável e verdadeiro, mas brincar com a gente deveria ser proibido.

Uma vez perguntaram para Ferreira Gullar, Poeta, qual era o principal gatilho para a sua inspiração. E ele disse: “um dos principais gatilhos para mim é a indignação ou algo sobre o qual eu não tenha gostado. Isto desperta em mim um sentimento de indignação que se transforma, muitas vezes, em textos”. E eu acho que foi este o meu gatilho para escrever este texto: indignação. Não há como não se indignar com a capacidade alheia de nos subestimar.

Subestimar significa não nos respeitar, não nos aceitar, não confiar em nós. E é disto o que estou farta. Farta desta falta de respeito, deste descaso que fazem conosco. Somos desrespeitados a todo o momento, somos postos à prova diariamente. Nosso estoque de paciência e de tolerância se esgota mais rapidamente do que a Cantareira. E isto não é bom.

Estamos mais arredios, sem paciência uns com os outros. Estamos grosseiros, mal educados. Um pedido de passagem no trânsito é motivo para sinais obscenos e para palavrões. Estamos ultrapassando os limites da decência e do respeito.

Enquanto um de nossos bens mais preciosos está dando sinais de revolta e reivindicando os seus direitos, ameaçando a nos deixar e a nos faltar, a fartura de outras coisas está a nossa disposição. É só escolher. O que vai ser hoje? Corrupção, ganância, enganação, roubo, abuso de poder, guerras? Oras, é só escolher...

A falta de água me faz pensar no que não pensamos e no que não fizemos. No enfoque da relação do homem com o mundo. Não este mundo que aí está, bem à frente de nossos narizes, mas o mundo que vai se destacando e aos poucos mostrando sua face, que até então, era obscura, abstrata e desconhecida. E que medo de saber o que há por trás desta face. Medo porque não fizemos a nossa lição direito, e agora a conta está chegando. Mas quem vai pagar esta conta? Todos nós, pelo menos assim deveria ser. Fizemos. Pagamos. As contas dos débitos morais e financeiros deveriam ser pagas por todos nós. Só que já disseram que haverá mais um aumento nas contas elétricas para cobrirem o rombo que há no setor. Rombo de quem? Como o governo não repassará o valor ao setor em função de “cortes de gastos”, quem o leitor acha que pagará esta conta? Será que é a gente? Bingo! E a conta moral? Quem paga? Quem paga a vergonha de assistir ao jornal e só ver descaso com a população? Com a gente?

O setor elétrico alegou que vai precisar de R$ 23 MM para cobrir as despesas, e entre elas há o custeamento de programas sociais, como tarifas sociais, etc. E isto é só uma das coisas que me deixa farta.  

A crise da água faz-nos perceber nossas limitações. Isto é ruim porque não aprendemos pelo amor, mas sim pela dor, no caso a dor da privação, da corrupção, do roubo escancarado. De toda forma, se isto nos levar a compreender e a usar melhor o nosso poder de superação já será um bom começo...

Antigamente o conhecimento era intuitivo, não havia muitas técnicas e ferramentas para fazermos as coisas. Mas elas aconteciam e eram feitas, de uma forma ou de outra. E hoje, mesmo com tantas ferramentas e técnicas a nossa disposição, não fomos capazes de intuir que a água, um dia iria dar o ar da graça de seu cansaço com o descaso que fizemos com ela. Alguém lá atrás disse que parece que alguém, não sei quem, avisou alguém sobre o problema, e este alguém levantou uma bandeira dizendo que seriam necessárias obras de curto e longo prazos para que este problema com a água não acontecesse. Se esta pessoa falou isto ou não, pouco importa agora. Quem é esta pessoa, também não importa. Um alguém desconhecido, conturbado e confuso, talvez. O que importa é que o problema está aí, e sem uma solução aparente, apenas paliativa.

Temos uma desatenção generalizada para com aquilo que realmente importa. Damos muito mais importância àquilo que dá estatus e fama. Mas o que realmente fará a diferença, seja pra nós quanto para o nosso próximo, não dá ibope. Então pra que nos importar?

Recentemente, assistindo a um programa de televisão, um professor disse que, obviamente, a questão da falta de chuva foi determinante para a falta de água. Porém, o que agravou esta crise foi a arrogância e a sede pelo poder e pelo estatus, por parte dos nossos governantes. E aí ele explicou: uma obra deste porte demoraria cerca de doze anos para ser realizada ou até um pouco mais. E como a sede pelo poder e pelo estatus sempre falaram mais alto, as obras mais longas e que correriam o risco de não levarem o seu nome, devido à extensão do prazo, não foram priorizadas. E como o governo quer deixar sua marca, seu famigerado legado, se fizesse esta obra longa, quem se lembraria dele? Quem ficaria com o bônus da obra? Certamente o governo que a inaugurasse. Então fica a certeza de que ele vai fazer o que for bom pra ele e não para o País. Estou farta disto.

Acho que estamos passando por tantas questões críticas porque descuidamos, seriamente, do que realmente importa. Outro dia uma pessoa sofreu um acidente de carro. Felizmente não se feriu gravemente, mas foi um acidente. Em meio aquilo, esta pessoa pegou o seu celular e fez uma selfie (socorro!) e a colocou nas redes sociais. (!)

Enfim, críticas à parte, afinal quem sofreu o acidente foi ela e ela tem todo o direito de fazer o que quiser com ele, vale uma reflexão se estamos dando muito mais importância para aquilo que é perecível do que para aquilo que deveríamos estar cuidando, no caso do exemplo, a nossa integridade física.

Estamos sendo vítimas de nossas próprias ações. Ou alguém tem dúvidas sobre isto? O governo tem a sua participação? Claro que tem, mas a gente elegeu o Collor novamente! Vamos reclamar do quê? Ele foi o segundo senador empossado em fevereiro deste ano, há bem pouco tempo. Uso o Collor porque acho que é uma figura emblemática para representar todos os demais. Pessoas morreram na época do seu governo, pessoas enfartaram porque foram impedidas de sacarem seus valores nos Bancos, empresas faliram, aulas foram interrompidas, as pessoas saíram para as ruas, pintaram as suas caras e pediram o impeachment. Para que tudo isto? Para colocá-lo lá novamente, agora como Senador! A única coisa leve que ele fez foi chamar os nossos carros de “carroças”, proporcionando assim, a retomada de um setor, até então, longe de nossos domínios. A discussão sobre a importação foi retomada o que forçou uma mudança e ruptura comportamental de nossas indústrias. E foi só.

A corrupção está nas entranhas, grudada. Coisa difícil de sair...Sabe aquela coisa encardida que não sai nem com o melhor dos produtos químicos? Pois é, a nossa política, com raríssimas exceções (se é que tem) está assim. A corrupção está entranhada porque está lá há muito tempo. A gente permitiu que isto acontecesse, temos a nossa parcela. E aí fico pensando nas nossas corrupções pequenas e inocentes do dia a dia:

- molhar a mão do guarda no trânsito;

- furar fila;

- andar pelo acostamento;

- molhar a mão do guarda para olhar o seu estabelecimento comercial;

- fraudar a carteirinha de estudante (esta é clássica);

- passar a nota falsa recebida pra frente (afinal, a culpa não foi sua);

- grudar adesivos na placa do carro para furar o rodízio;

- não devolver o troco recebido a mais;

- pedir para o seu filho passar por baixo da catraca do metrô e se alguém perguntar, mentir a idade;

- fraudar e roubar o sistema hídrico (somente em São Paulo, uma média de 40 fraudes por dia);

- fazer gato com a NET, com a água do vizinho (afinal, ele paga pra você);

- não se importar com a quantidade de água gasta porque você está na lista da tarifa social do governo;

-  pegar o dinheiro do “bolsa moradia” do governo (uma das milhões de bolsas que existem) e pedir para o caixa do Banco depositar na sua caderneta de poupança;  

- fazer de conta que estamos dormindo, no metrô, só para não cedermos o lugar (que achamos que é nosso) a quem mais precisa;

- colocar o pé no banco do ônibus, do metrô (afinal eu já me sentei, o próximo que se vire).

Enfim, eu ficaria aqui listando nossas pequenas fraudes do nosso pequeno universo.

Estamos fartos de tudo isto. Fartos nos dois sentidos: fartos de fartura, ou seja, temos muito disto e fartos de cansaço, chega, não aguentamos mais.

Na escola sempre ouvi dizer que o Brasil é o País do futuro. E lá isto é verdade: precisa saber só que futuro é este e quando ele vai chegar. Alguém me avisa, por favor, para eu ir lá também?

Agora a crise da água e as demais crises estão aí, impostas, sem dó nem piedade. E será a hora de duramente aprendermos a lidar com tudo isto. Aliás, já passou da hora. Ou será que já perdemos a hora? Sinto como se usássemos o “soneca” do rádio-relógio em excesso. Agora é chegar atrasado e encontrar uma boa explicação pra isto tudo.

Tudo isto me faz pensar numa palavra só, que acho que resume as demais: falta de se apropriar. Não nos sentimos donos do nosso País, estes problemas não são nossos. É como se isto tudo fosse desconhecido para nós. Desconhecido não porque não tivéssemos condições de aprender ou porque não nos era falado; desconhecido porque a gente não quis saber, simples assim. Não é de hoje que os problemas insistem em se apresentarem para nós. O que de efetivo a gente faz?

Sabemos do problema da água, mas enquanto a água não acaba na minha casa e no meu chuveiro …vou levando enquanto o tempo me deixar, já dizia a música.

Não estou falando só das leis, das regras e de tudo errado que há aqui, de injusto, estou falando sobre o nosso estar no mundo, sobre o nosso compromisso de fazermos algo melhor e mais justo. O que nos orienta? Se continuar a ser o egoísmo e o poder, difícil será cada vez mais trilhar este caminho. Para que roubamos tanto dinheiro, meu Deus? Que poder é este que nos corrompe? Talvez este dinheiro todo roubado seja para comprar milhares de caminhões-pipa, porque a água vai acabar!

Acho que estamos nos perdendo de vista, por isto a água está indo embora. Setenta por cento do nosso corpo é composto por água: estamos indo embora então?

Percebo uma indiferença no olhar de alguns, como se aquilo não pertencesse a eles. Acho que é uma forma de se protegerem daquilo sobre o qual eles não conseguirão se defender.

Precisamos perceber, nos envolver, nos desenvolver. A propósito, a origem da palavra “desenvolver” que é o ato de desenrolar, permitir a saída e/ou o aparecimento de algo que estava tolhido”. Quem sabe se sairmos um pouco do nosso eu, das nossas selfies e não se preocupar tanto com as curtidas do facebook conseguiremos nos desenvolver, ou seja, deixar aparecerem os nossos valores, aquilo que estava tolhido?

É uma indiferença que se origina do distanciamento que colocamos nas questões. Eles e eu. Não, somos uma coisa só. Esta indiferença está atrofiando nossas emoções, nossos sentimentos.

Nosso mundo é tão belo, mas está doente, sente dor. Isto me faz ficar nostálgica: vejo uma criança correndo pela calçada correndo atrás de uma pomba, e dando muitas gargalhadas. Lembrei da minha infância e de como foi bom ser criança e de ter podido ter uma infância saudável: a minha preocupação era ir para a escola e querer que o sol aparecesse a tarde para brincar na rua, pular corda e sujar bem os pés, sentindo a vida pulsando e valendo a pena. Estávamos, até então, numa zona de conforto e de falso controle. Mas era bom, bom demais! Ser adulto é bom também, muito bom, traz inúmeras satisfações, alegrias e compensações. Mas o problema de ser adulto é que às vezes (ainda bem que poucas!) a pomba vai passar na sua frente e você não vai sentir vontade de correr e de sorrir. Mas fazendo força a gente consegue e vence!

Estamos em conflito não pela coisa em si, mas porque não nos entendemos. Queremos nossas verdades absolutas, a verdade do outro é sempre uma mentira.

Penso que estas contradições nas quais vivemos reflete um profundo esquecimento dos verdadeiros conceitos.

Às vezes, sinto que nos comportamos como se fôssemos uma visita indesejada, aquela que veio sem avisar e que, para piorar, não trouxe algo para contribuir para as despesas. Chegamos sem avisar, usufruímos do mundo e ainda levamos um “pratinho” para mais tarde. Não nos apropriamos dos problemas. É como se estes problemas que aí estão não fossem nossos, não nos pertencessem. É uma alienação generalizada.

Numa cidade do interior de Minas, o carnaval foi cancelado por conta da questão da água. Em uma entrevista, ouvi a seguinte frase: “o governo gasta mal o dinheiro e agora EU fico sem carnaval?” Concordo com a parte do “gastar mal o dinheiro”, acho até que este problema não acontece só na cidade dela (risos), mas um pouquinho de senso de prioridade e de urgência não fazem mal a nós.

Ouvi também, na Globonews, que os impostos subiram para o equilíbrio da máquina pública e para (eles) poderem colocar as contas em ordem. O Ministro falou que as contas estão “desarrumadas”. Contas de quem? Eles desarrumam e a gente arruma. As contas não estão “desarrumadas”, mas sim fomos e somos descaradamente roubados. Se “desarrumar” agora virou sinônimo de “roubar”, o meu diploma de Letras precisa ser revisto.

Acho que se a natureza tivesse este poder ela nos interditaria, e, de verdade, acho que ela ganharia em primeira instância. O livre-arbítrio nos foi concedido, mas de verdade, questiono se Deus não se equivocou. Acho que ele acreditou demais em nós.

E a crise da água nisto tudo? Pois é, enquanto estivermos mais preocupados em postarmos selfies, em poder, estatus, dinheiro e em nos afligirmos em quantas “curtidas” tivemos, a água, realmente, não será um item de primeira grandeza pra nós, porque se assim o fosse, certamente não estaríamos nesta situação. Se estamos, é porque fizemos por onde.

Um comentário:

  1. Texto forte, mas muito pertinente. Parabéns, amiga, pela qualidade dos textos e pelo blog. Estou adorando!!!!

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