domingo, 22 de maio de 2016

O espelho traduzido

“Quem me detesta tanto assim, para me atacar até em sonho? Quis saber. E neste instante, vi minha imagem refletida no espelho. ”

imagem tirada da internet

A autoria deste pensamento é de Lygia Fagundes Telles, uma das mais importantes escritoras brasileiras. Por meio de sua obra vasta, rica e profunda, ela aborda, sem rodeios, os vários e complexos mundos do humano. Sem meias palavras. Sem demora.

Lygia Fagundes Telles, no meu entendimento, é uma destas autoras e escritoras que nos tira do lugar comum. Que nos convida a nos levantar.

A reflexão proposta por ela é real e imprescindível, se quisermos nos conhecer e buscar sermos a melhor versão de nós mesmos. Porém, é preciso nos levantar e caminharmos até o espelho para conhecermos o que nele há refletido.

O que vamos enxergar no espelho? Só a gente poderá saber. Ninguém mais.

Vivemos num mundo construído por nós. Vivemos o que criamos. Tanto por nós quanto pelo outro. E a nossa criação nem sempre é merecedora de aplausos. Assim como a criação do outro também. Muitas vezes nos envergonhamos de nossas atitudes, de nossas criações. E em outros momentos, nos sentimos orgulhosos do que fizemos, do que causamos, do que criamos.

A nossa boa criação afeta o outro. A nossa má conduta afeta o outro. E a nós também.

A boa criação do outro nos afeta. A má conduta do outro nos afeta. E a ele também.

E em meio a este caos de todas as ordens, vamos nos equilibrando numa fina corda invisível que vai se ajustando e se moldando frente às questões que se abrem. Enquanto esta nossa fina corda vai nos sustentando, nossos diversos e diferentes papéis, na condição de humanos, vão sendo mantidos e vividos. Porém, quando esta fina corda se rompe por inúmeras razões, a nossa sustentação fica à deriva. Ficamos desequilibrados. Caímos.

É como se esta fina corda rompesse o silêncio e rompesse com o silêncio. Um silêncio vazio, cheio de perguntas e com poucas respostas. E mesmo as que há, são questionáveis. E é nessa hora que vamos ao espelho. E para a nossa surpresa, nos enxergamos lá. Estamos do lado de lá do espelho.

Deveríamos ficar felizes ao nos reencontrarmos no espelho. Deveríamos nos enxergar lá e nos ver de verdade. Deveríamos nos cumprimentar e nos interessar por nós. Deveríamos querer investigar o motivo pelo qual aquela fina corda nos derrubou.

Deveríamos...deveríamos...deveríamos...são tantos os deveríamos que o que deveríamos, acabamos deixando para depois. Só que o depois não nos espera. Não importa o seu motivo, nem o meu e nem o nosso. Muito menos não importa o motivo do outro...

E neste esquecer de fazermos o que deveríamos, o nosso espelho se torna o nosso inimigo. Torna-se uma ferramenta poderosa para perseguirmos a nós mesmos. Olhamo-nos no espelho e simplesmente não gostamos do que há lá. Mas por quê?

É preciso buscar estas respostas. E os caminhos para esta busca somente nós sabemos.

Atacamos a nossa imagem porque assim fica mais fácil. Quando atacamos e agredimos algo é porque estamos desistindo da luta. A agressão é uma forma mais rápida de não precisar lidar com as nossas questões. Sou agressiva para dizer que tenho medo. Sou agressiva para afastar o inimigo. Sou agressiva para me fazer de forte e não precisar explicar.

Toda pessoa agressiva é carente de ferramentas para lidar com o mundo, e consequentemente com as suas questões. A agressividade não deveria nos representar. Mas como nos atacamos até em sonho, como disse Lygia Fagundes Telles, como dizer que a agressividade não nos representa?

Rejeitamos, muitas vezes, a nossa imagem refletida no espelho e a atacamos para que nossas fraquezas sejam justificáveis.

O outro pode não gostar da gente. Podemos ser ridicularizados pelo outro. A sociedade pode nos rechaçar, pode nos forçar a saída. Mas isto não poderia ser o estopim para nos atacarmos frente ao espelho e nos colocarmos no fim da fila.

Precisamos aprofundar as nossas questões morais e íntimas. Somente desta forma, acredito, poderemos entender os motivos de recusarmos a nós mesmos. Precisamos perseguir as nossas questões. São elas que nos estimulam a irmos para o espelho.

Adélia Prado, outra escritora imprescindível, dizia que “a mulher é desdobrável”, no sentido de multiplicidade. Roubo esta frase para dizer que “somos todos desdobráveis”. É preciso enxergar todas estas nossas multiplicidades e investirmos tempo para conhecê-las. E o espelho é um excelente começo.

É preciso sair da horizontalidade do pensamento e partirmos para a verticalidade. A linearidade do horizontal não nos representa. Somos por demais complexos para nos contentarmos com o reto, sem curvas. O vertical sim, nos representa. No mínimo, no trajeto vertical, teremos de lidar com as inconstâncias.

Precisamos nos reconhecer nos papéis que assumimos na vida. E um deles deveria ser o de ter maturidade para se olhar no espelho sem se atacar. Somos dotados de histórias e é preciso respeitá-las porque elas nos constroem.

O que se vê no espelho não é um espaço construído, mas em construção. E uma construção sólida somente se dá quando aprendemos a andar pelas estradas esburacadas da vida.

São muitas as hipóteses que podem explicar os motivos que nos levam a nos atacar. E creio que uma delas seja o desejo de sermos sempre o protagonista na vida. Não o protagonismo que assume para si a responsabilidade e segue. Refiro-me àquele protagonismo criado por esta sociedade (no caso, todos nós) que acredita nas falsas ilusões, nos velhos chavões e tem, nas luzes e no palco, suas referências de vida. Então, quando não somos estes protagonistas criados, a nossa imagem fica distorcida, para nós, no espelho. Não nos reconhecemos.

Ser sempre o protagonista não significa ser vitorioso. Só significa que você é o centro das atenções da vez, está no palco e alguém acendeu as luzes para você. Somente isto. Mas daí a ser um vitorioso há larga distância. Buscar ser sempre o protagonista é muito diferente de buscar sempre conquistas na vida.

Querer sempre ser o protagonista nos levará para um caminho sem volta. Um caminho solitário e triste de competições, angústias e aparências. Não há como sempre ser o protagonista.

Querer sempre conquistas na vida nos levará para um caminho de redescobrimento de nós mesmos. Conquistas. Simples assim.

Quando perseguimos o caminho de conquistas, competimos com nós mesmos, e não com o outro. Querer conquistas é genuíno, legítimo, nos traz um movimento que produz e que cria.

O caminho do protagonista nem sempre tem conquistas.

O contrário do protagonista é o estar ofuscado e ausente. Anônimo. E quem diz que os anônimos não têm conquistas? A conquista se dá pelo percorrer, pelo avançar. E não pelo aparecer, pelo se mostrar, pelo ser reconhecido, pelo ego. E o protagonismo criado ocorre porque alguém colocou você no palco. E você acreditou que ali era o seu lugar.

Olharmo-nos no espelho não deveria nos fazer mal. Mas em algumas vezes faz, e muito. Precisamos mergulhar em nossas subjetividades para buscarmos estas respostas. E isto é um exercício individual. Difícil, porém prazeroso. Redescobrir-se é caminhar por caminhos construídos pelos seus pés e não pelos pés dos outros. Isto já valerá a pena.

Enfim, são tantas as reflexões, porém único é o caminho: o espelho. Que tanto pode ser concreto e visível, como interno e subjetivo. Ou os dois juntos. Não importa. O que importa é passarmos a nos enxergar neste espelho, seja ele interno ou externo. Quando nos enxergarmos, inevitavelmente enxergaremos o outro. E enxergar o outro é uma forma de se enxergar e de trilhar um caminho de conquistas.

O convite está feito. Mas é preciso se levantar e caminhar. Caminhando aumentamos de tamanho.

Para encerrar o texto, mas não a reflexão, quero compartilhar um pensamento de Carlos Drummond de Andrade, que diz:

“Porque eu sou do tamanho daquilo que sinto, que vejo e que faço, não do tamanho que as pessoas me enxergam. ”

Sábias palavras. Somente quem se respeita e persegue conquistas e não protagonismo, sabe o seu tamanho. E pode olhar corajosa e respeitosamente a sua imagem no espelho e reconhecer-se nela.

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