imagem tirada da internet
A Literatura é um destes lugares
infinitos cujo aprendizado não se esgota. E ler este pensamento de Fernando
Pessoa me faz pensar desta forma. Sempre há algo a dizer. Nunca o tudo já foi
dito. Sempre há algo a falar, a pensar, a construir.
Duas palavras chamam a minha atenção
neste pensamento: ousarmos e margem.
Ousar é ir além. É acreditar em algo. É
arriscar.
Estar à margem é exatamente o oposto: é o
não ousar, é o não acreditar, é o não arriscar.
Sem ousadia a vida não passa das
arquibancadas. O viver dá lugar ao vazio, dá lugar para as margens da vida.
Colocar algo às margens é esquecê-lo.
Eu estava numa reunião de trabalho, e uma
pessoa, me vendo fazer anotações no meu velho e bom caderno, disse:
“que bom que você trouxe seu caderninho para fazer anotações, porque
eu esqueci o meu tablet. Você, pode,
por favor, anotar no cantinho da margem
este dado para depois, quando der, eu verificar melhor? ”
...caderninho, cantinho, depois, quando
der... mesmo sem perceber, aquilo que ela havia me pedido para anotar
certamente ficaria para segundo plano. Tudo aquilo que colocamos às margens é
porque não damos a importância que deveríamos. Aquilo que pode ficar para
depois. Mas no fundo, não pode, mas colocamos às margens. São tantas as
anotações que envelhecem às margens...e ficam só a nossa espera.
Num mundo repleto de tecnologia, escrever
à mão, ainda, parece ultrapassado. Mas de posse de um tablet, tenho dúvidas se perceberíamos as margens da tela e, pior,
se perceberíamos o que estamos colocando às margens da tela.
Fernando Pessoa nos chama a atenção para
estas margens esquecidas, com anotações e lembretes para nós mesmos, mas que
não lemos. Não lemos porque o caderno acabou e o jogamos, porque o dia se
encerrou, porque o telefone tocou, porque alguém nos chamou em alguma das redes
sociais, porque nos esquecemos de ler as anotações, porque, porque, porque, e
quando nos damos conta, estamos às margens de nós mesmos.
Realizar a travessia é uma das formas de
se ter atenção ao que se está às margens e trazer para o centro. Quem está às
margens assiste; quem está no centro participa.
Quem está às margens não tem direito de
questionar porque ninguém o deixa falar. E quando consegue um raro momento para
falar, todos foram embora.
Quem está no centro constrói a própria
história e vive a própria história.
Às margens, alguém que não existe, que
vive das sobras dos que não o enxergam.
No centro, alguém que faz a sua
existência ter valor. Que cria valor para si e para o outro.
Às margens, sem direito à travessia.
No centro, na travessia.
Não é preciso grandes planejamentos para
realizar a travessia, apenas aceitar
o convite da vida. E aceitá-lo significa, algumas vezes, dizer sim para ela e
não para nós. Está aí um excelente exercício de desprendimento...
Aceitar o convite da vida significa
aceitar que a travessia é necessária e urgente. Um processo complexo de se
realizar, porém transformador e prazeroso.
Significa, também, deixar de travar
embates com a vida. Aceite o convite. Pronto. Ela saberá ouvi-lo no momento
certo. De nada adianta brigar com a vida. Ela sempre ganha, mesmo!
Mais inteligente é aceitar o convite,
amansar a vida. Assim ela sossega. E depois, quando ela der um leve cochilo,
vamos contornando a travessia, vamos colocando nossas regras e limites também.
Afinal, a travessia é nossa, não? Portanto, ela deverá ter a nossa cara...
Ficar à margem de nós mesmos é ficar
teimando em realizar a travessia que não é a nossa. Mas é a que gostariam que fizéssemos.
Ficar à margem de nós mesmos é como se fôssemos expectadores de nós mesmos só
que o controle remoto está nas mãos do outro.
Realizar a travessia significa parar um
pouco para descansar, tomar uma água, mas ver que muitos já estão lá na frente.
Tudo bem. Uma hora chegamos. E que seja na nossa hora e não na hora do outro.
Quanto mais olharmos para onde o outro está, mais tropeçamos nas nossas
próprias pernas e o caminho, certamente, ficará mais longo e árduo.
Realizar a travessia significa encontrar
ventos fortes contrários à navegação. E como navegar? Navegando...
O nosso passado dirá como faremos a nossa
travessia. E o nosso futuro foi o resultado da travessia que escolhemos. Sem erros
de concordância aqui...
A travessia nos obriga a fazermos paradas
obrigatórias. O caminhar é a vida. A vida se dá na travessia. A travessia
revela as nossas escolhas, nossas decisões, e também nos dá pistas das nossas
próximas esquinas.
Quem não nos conhece não nos estranha. O
estranhamento se dá quando iniciamos o processo do conhecimento. E nas esquinas
somos todos desconhecidos mesmo tendo as mesmas questões.
A travessia nunca está concluída. Quem
acha que concluiu, o que faz aqui, ainda?
Fazer a travessia nos concede o direito
de desejarmos a liberdade. Mas antes será preciso passarmos pelos buracos e
sujeiras da pista. Travessia é essencialmente falar sobre busca.
O que significa buscar? Significa
particularizar os nossos caminhos. Individualizá-los.
Sair das margens de si mesmo é ter a
coragem de arrancar os sapatos e pisar sobre pedras e trilhos lisos.
A travessia se constrói sem apelos de
imagens e de informações prontas. Aprovamos o excesso de informações porque
isto nos torna ocupados demais com o desnecessário. Não queremos saber se o
excesso nos cegará. O que importa isto? Quanto mais informação melhor.
O relatório extenso sobre a mesa do diretor.
Nunca conheci um Diretor que lesse todo aquele relatório. Nem um gerente e
também algum supervisor. Para que ele é feito, então? Apenas para aparecer
sobre a mesa. Apenas para aparecer, mesmo que às custas de alguém.
Queremos informações prontas. Mas só isto
não basta para a travessia. É preciso mais.
Vontade. Tempo. Conhecimento. É disto que
precisamos.
Disposição. Mansidão. Humildade. É disto
que carecemos.
“Precisamos alargar a nossa consciência”,
disse Hannah Arendt, Filósofa Alemã. Quanta sabedoria numa frase tão curta.
Conseguiremos fazer a travessia quando
descobrirmos de onde estamos partindo. Quando aprendermos a migrar dentro de
nós mesmos, caminharmos dentro de nós. E assim, compreendermos o mundo do
próximo e convivermos no mundo dele sem sermos do mundo dele. E para isto, é
preciso estar no centro e não às margens de nós mesmos...
A travessia é isto: transição. É o ir
para.
É o chegar lá. É o começar e não saber se
vai chegar.
É o arriscar sem garantias. É o sair de.
É o atravessar. É o recomeço.
É o orgulho de ter aceitado o convite
para realizar a travessia.
É o transitar entre estrutura e risco,
sem a menor garantia.
É o seguir pistas falsas e descobrir, só
lá na frente, que o caminho estava errado.
Quero encerrar o texto, mas não a reflexão,
com um pensamento de Guimarães Rosa, que diz:
“Quem elegeu a busca não pode recusar a travessia.
”
Um ensinamento sem rodeios. E eleger a
busca como meta de vida é arriscar-se a se reencontrar.
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