domingo, 5 de junho de 2016

Na travessia ou às margens?

imagem tirada da internet

A Literatura é um destes lugares infinitos cujo aprendizado não se esgota. E ler este pensamento de Fernando Pessoa me faz pensar desta forma. Sempre há algo a dizer. Nunca o tudo já foi dito. Sempre há algo a falar, a pensar, a construir.

Duas palavras chamam a minha atenção neste pensamento: ousarmos e margem.

Ousar é ir além. É acreditar em algo. É arriscar.

Estar à margem é exatamente o oposto: é o não ousar, é o não acreditar, é o não arriscar.

Sem ousadia a vida não passa das arquibancadas. O viver dá lugar ao vazio, dá lugar para as margens da vida. Colocar algo às margens é esquecê-lo.

Eu estava numa reunião de trabalho, e uma pessoa, me vendo fazer anotações no meu velho e bom caderno, disse:

“que bom que você trouxe seu caderninho para fazer anotações, porque eu esqueci o meu tablet. Você, pode, por favor, anotar no cantinho da margem este dado para depois, quando der, eu verificar melhor? ”

...caderninho, cantinho, depois, quando der... mesmo sem perceber, aquilo que ela havia me pedido para anotar certamente ficaria para segundo plano. Tudo aquilo que colocamos às margens é porque não damos a importância que deveríamos. Aquilo que pode ficar para depois. Mas no fundo, não pode, mas colocamos às margens. São tantas as anotações que envelhecem às margens...e ficam só a nossa espera.

Num mundo repleto de tecnologia, escrever à mão, ainda, parece ultrapassado. Mas de posse de um tablet, tenho dúvidas se perceberíamos as margens da tela e, pior, se perceberíamos o que estamos colocando às margens da tela.

Fernando Pessoa nos chama a atenção para estas margens esquecidas, com anotações e lembretes para nós mesmos, mas que não lemos. Não lemos porque o caderno acabou e o jogamos, porque o dia se encerrou, porque o telefone tocou, porque alguém nos chamou em alguma das redes sociais, porque nos esquecemos de ler as anotações, porque, porque, porque, e quando nos damos conta, estamos às margens de nós mesmos.

Realizar a travessia é uma das formas de se ter atenção ao que se está às margens e trazer para o centro. Quem está às margens assiste; quem está no centro participa.

Quem está às margens não tem direito de questionar porque ninguém o deixa falar. E quando consegue um raro momento para falar, todos foram embora.

Quem está no centro constrói a própria história e vive a própria história.

Às margens, alguém que não existe, que vive das sobras dos que não o enxergam.

No centro, alguém que faz a sua existência ter valor. Que cria valor para si e para o outro.

Às margens, sem direito à travessia.

No centro, na travessia.

Não é preciso grandes planejamentos para realizar a travessia, apenas aceitar o convite da vida. E aceitá-lo significa, algumas vezes, dizer sim para ela e não para nós. Está aí um excelente exercício de desprendimento...

Aceitar o convite da vida significa aceitar que a travessia é necessária e urgente. Um processo complexo de se realizar, porém transformador e prazeroso.

Significa, também, deixar de travar embates com a vida. Aceite o convite. Pronto. Ela saberá ouvi-lo no momento certo. De nada adianta brigar com a vida. Ela sempre ganha, mesmo!

Mais inteligente é aceitar o convite, amansar a vida. Assim ela sossega. E depois, quando ela der um leve cochilo, vamos contornando a travessia, vamos colocando nossas regras e limites também. Afinal, a travessia é nossa, não? Portanto, ela deverá ter a nossa cara...

Ficar à margem de nós mesmos é ficar teimando em realizar a travessia que não é a nossa. Mas é a que gostariam que fizéssemos. Ficar à margem de nós mesmos é como se fôssemos expectadores de nós mesmos só que o controle remoto está nas mãos do outro.

Realizar a travessia significa parar um pouco para descansar, tomar uma água, mas ver que muitos já estão lá na frente. Tudo bem. Uma hora chegamos. E que seja na nossa hora e não na hora do outro. Quanto mais olharmos para onde o outro está, mais tropeçamos nas nossas próprias pernas e o caminho, certamente, ficará mais longo e árduo.

Realizar a travessia significa encontrar ventos fortes contrários à navegação. E como navegar? Navegando...

O nosso passado dirá como faremos a nossa travessia. E o nosso futuro foi o resultado da travessia que escolhemos. Sem erros de concordância aqui...

A travessia nos obriga a fazermos paradas obrigatórias. O caminhar é a vida. A vida se dá na travessia. A travessia revela as nossas escolhas, nossas decisões, e também nos dá pistas das nossas próximas esquinas.

Quem não nos conhece não nos estranha. O estranhamento se dá quando iniciamos o processo do conhecimento. E nas esquinas somos todos desconhecidos mesmo tendo as mesmas questões.

A travessia nunca está concluída. Quem acha que concluiu, o que faz aqui, ainda?

Fazer a travessia nos concede o direito de desejarmos a liberdade. Mas antes será preciso passarmos pelos buracos e sujeiras da pista. Travessia é essencialmente falar sobre busca.

O que significa buscar? Significa particularizar os nossos caminhos. Individualizá-los.

Sair das margens de si mesmo é ter a coragem de arrancar os sapatos e pisar sobre pedras e trilhos lisos.

A travessia se constrói sem apelos de imagens e de informações prontas. Aprovamos o excesso de informações porque isto nos torna ocupados demais com o desnecessário. Não queremos saber se o excesso nos cegará. O que importa isto? Quanto mais informação melhor.

O relatório extenso sobre a mesa do diretor. Nunca conheci um Diretor que lesse todo aquele relatório. Nem um gerente e também algum supervisor. Para que ele é feito, então? Apenas para aparecer sobre a mesa. Apenas para aparecer, mesmo que às custas de alguém.

Queremos informações prontas. Mas só isto não basta para a travessia. É preciso mais.

Vontade. Tempo. Conhecimento. É disto que precisamos.

Disposição. Mansidão. Humildade. É disto que carecemos.

“Precisamos alargar a nossa consciência”, disse Hannah Arendt, Filósofa Alemã. Quanta sabedoria numa frase tão curta.

Conseguiremos fazer a travessia quando descobrirmos de onde estamos partindo. Quando aprendermos a migrar dentro de nós mesmos, caminharmos dentro de nós. E assim, compreendermos o mundo do próximo e convivermos no mundo dele sem sermos do mundo dele. E para isto, é preciso estar no centro e não às margens de nós mesmos...

A travessia é isto: transição. É o ir para.

É o chegar lá. É o começar e não saber se vai chegar.

É o arriscar sem garantias. É o sair de. É o atravessar. É o recomeço.

É o orgulho de ter aceitado o convite para realizar a travessia.

É o transitar entre estrutura e risco, sem a menor garantia.

É o seguir pistas falsas e descobrir, só lá na frente, que o caminho estava errado.

Quero encerrar o texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Guimarães Rosa, que diz:

“Quem elegeu a busca não pode recusar a travessia. ”

Um ensinamento sem rodeios. E eleger a busca como meta de vida é arriscar-se a se reencontrar.

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