imagem tirada da internet
Todas as danças são belas. Não
vejo exceção. Mesmo aquelas cuja sintonia não bate com a nossa, ainda assim são
belas. Têm a forma, o ritmo, a beleza, a história, o esforço, o trabalho.
Acredito que a beleza da dança
também se reflita, além da questão coreográfica, por conta do amor à profissão,
que é visível nos artistas. Aquela vontade de estar lá. Aquela presença da alma
em tudo o que é feito.
Quando a nossa alma está presente, tudo o mais se realiza.
Dançar, para estas pessoas, passa
a ser mais que passos e posturas: passa a ser uma forma de expressar
felicidade, portanto. E isto é para tudo na nossa vida, não somente na dança. Quando
conseguimos, de fato, nos enxergar de corpo e alma naquilo que fazemos, o
trabalho, a dor e o cansaço ficam, de verdade, para segundo plano. E um segundo
plano raramente visitado, frequentemente esquecido.
E o ballet é uma destas maravilhosas danças. Assistir a uma
apresentação desta é se deixar conduzir pela leveza, ter certeza sobre o
próximo passo e seguir adiante, de preferência sem errar...a perfeição é a
ordem. O equilíbrio uma necessidade.
Toda aquela elegância e postura
sob os pés dos bailarinos caem por terra caso não sejam respeitadas. E o que
seria belo se torna desequilibrado e desarmônico. O ballet é uma das danças cujo erro é mais notado, mais visto. Em
outras danças também. Mas aqui, os passos são tão calculados que não há espaços
para tentativas, desvios e disfarces.
O ballet exige uma perfeição que a própria vida ainda
não aprendeu.
Estudei com uma colega, no ensino
fundamental, chamada Denise. Menina calada, muito inteligente, discreta e de
movimentos controlados. Esguia, magra e alta, a pergunta a ela era inevitável:
“você dança ballet”? “Sim, estudo, no Teatro Municipal”. Esta era a
resposta da Denise, apenas isto. Nenhum sorriso, nenhuma pista. Respostas
curtas talvez sinalizando a nós, crianças curiosas, que não caberiam mais
perguntas.
Ainda bem que, como crianças,
muitas vezes não entendemos os sinais que nos dão. Assim nossas buscas podem
continuar. Como continuaram.
A Denise não falava que “dançava ballet”, mas sim que “estudava ballet”. Este já era um forte sinal.
Aquele que sente prazer no que faz se deixa conduzir pela dança, pela emoção.
O tempo foi passando e a Denise
foi se ambientando mais conosco, foi gostando da nossa companhia, foi se
aproximando mais da gente. Foi quando começou a dizer que não gostava de fazer ballet, mas que tinha que fazer porque seus pais assim queriam. Dizia que era uma
tortura ir para o Teatro Municipal e que seus pés doíam muito. Que até achava
bonito aquilo, mas que não era para ela. E quando a questionávamos sobre dizer
isto a seus pais, ela era categórica: “não adianta. Eles não vão aceitar que eu
pare. Eles querem que eu seja uma bailarina. ”
Como crianças, não tínhamos muito
como ajudar a Denise. Mas entendíamos a sua tristeza que agora, de forma mais
próxima, ela compartilhava conosco. O sonho da Denise? Ser Psicóloga. Sempre
dizia isto para nós. Mas seus pais diziam que “esta” profissão não dava futuro
para ninguém.
A Denise chegou a se formar pelo
Teatro Municipal. Foram sete anos de estudo e de dedicação forçados. Mas sem o
principal: propósito. A professora dela chegou a conversar com os pais dizendo
que a Denise não tinha prazer pela dança. E os pais disseram: “sabemos o que é
melhor para ela. No futuro, ela vai nos agradecer por esta bela profissão.
Quantos chegam a um Teatro Municipal? ” O propósito era dos pais, e não da
Denise.
Sem propósito, tudo o que é feito é em vão.
Querer que o outro seja o que ele
não quer é uma agressividade silenciosa. Há agressões morais mais duras que
agressões físicas. Talvez este seja um exemplo.
O tempo passou. Adulta, a Denise
ingressou numa segunda faculdade: a que sempre quis. Psicóloga formada, recuperou
o seu “diploma” de bailarina, empoeirado na gaveta e o entregou a seus pais
como uma forma de se acertar com os seus fantasmas.
Quando lembro desta história,
penso que a Denise era só uma criança tentando se encontrar no mundo. Buscava
equilibrar-se nas imposições que não compreendia. Buscava reconhecer-se e
conhecer suas vontades e habilidades.
Mas não teve chances.
Orientação é completamente
diferente de imposição. A orientação é necessária àquele que inicia o caminho,
como a criança. Mas a imposição é uma tirania disfarçada de educação.
É preciso respeitar o espaço do outro para que ele possa se encontrar.
A coordenação, a simetria, a postura,
as regras e a rotina do ballet
somente são válidas quando fazem sentido para aquele que faz. A perfeição do ballet só é perfeita para a dança. Para
a vida, é preciso mais que passos, regras e rotinas. É preciso sentido.
Por que insistimos em desviar as
rotas dos outros? Por que achamos que sabemos o que é melhor para o outro? Por
que calamos a voz do outro para que somente a nossa seja ouvida? Por que a
opinião do outro nos agride? Por que a escolha do outro é ridicularizada? Por
que nossos talentos são questionáveis aos olhos do outro? Por que precisamos
trilhar rotas que não quisemos construir?
Perguntas sem respostas. Talvez
não haja respostas. Talvez as perguntas sejam mais que suficientes. Ou talvez a
resposta esteja dentro da pergunta...
A Denise venceu seus medos e
transgrediu. Disse-nos que foi “libertador” não precisar mais “dançar” aquela
dança. Ela, finalmente, compreendeu, que o verdadeiro prazer pela dança não
estava naquele caminho que ela trilhava. Que o verdadeiro sentido de tudo é fazer
aquilo que vai ao encontro da essência de cada um. E neste novo caminho não
cabem imposições.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, trazendo um pensamento da Companhia Cisne Negro, uma das mais
respeitadas escolas de dança do mundo, inclusive, de ballet, ironicamente...
“A única coisa que está em seu caminho para a perfeição é você mesmo."
Trilhar o nosso caminho, aquele
que faz sentido para nós, é a verdadeira essência, é o que nos levará à
verdadeira perfeição. Nós somos o caminho que nos levará a ela. Neste nosso
caminho haverá pedras, percalços, buracos. Mas ainda assim será o nosso caminho,
verdadeiro e único.
Aquele que faz sentido.
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