segunda-feira, 3 de outubro de 2016

A nossa estrada para Damasco

Independentemente da religião e crença de cada um, a história sobre a transformação do judeu Saulo, um terrível perseguidor dos cristãos, para o Apóstolo Paulo, um dos homens mais fortes e íntegros do Cristianismo primitivo, é bastante conhecida por todos nós.

A caminho de Damasco, capital da Síria, o então Saulo tinha, como principal objetivo, matar os seguidores de Jesus. Porém, na estrada que o levava à Damasco, Saulo é cercado por uma forte luz. A confusão dos sentidos de Saulo o faz tombar de seu animal. É nesta hora que vê a figura de um homem com a fisionomia iluminada. Sob forte emoção e espanto, se dá um dos diálogos mais conhecidos do Cristianismo:

- Saulo!...Saulo!... por que me persegues? disse o homem.

E Saulo responde:

- Quem sois Vós, Senhor?

E o homem responde:

- Eu sou Jesus.

E a partir daí, Saulo se transforma num dos homens mais fiéis aos ensinamentos de Jesus, além de tomar para si a responsabilidade de levar o amor a Jesus a todos os cantos do mundo. Mais adiante, adota seu outro nome, Paulo, sendo reconhecido como o Apóstolo dos Gentios.

Esta história, mais que resumidamente contada aqui, nos traz muitas reflexões. Se nos deixarmos guiar por ela e atentarmos para as sutilezas que a simbologia “desta estrada que leva à Damasco” nos oferece, acredito que seremos surpreendidos para o bem. Se abrirmos mão dos preconceitos, por se tratar de um fato religioso, e abrirmos mão de modelos mentais ultrapassados, muito poderemos aprender. É uma questão de escolha.

Um Historiador disse, certa vez, que não acreditava que Paulo havia caído do cavalo, e que este encontro com Jesus era uma fantasia daquele que tinha fé. Para aliviar o discurso, disse que era ateu e por isso, não acreditava. Mas que gostaria de ter uma fé, “isto facilitaria bastante as coisas”, ele disse.

Apesar de acompanhar e de gostar do trabalho deste Historiador, achei sua fala muito pequena para todo o cenário apresentado. De verdade: o que importa se o Apóstolo Paulo caiu ou não do cavalo? Isto é apenas um detalhe.

Enquanto nos prendemos no que não importa deixamos de fazer o que importa.

As opiniões devem ser respeitadas, mas penso que podemos ir além. É preciso refletir sobre a nossa estrada que nos leva à Damasco. Sobre o momento da nossa transformação, em que finalmente entendemos o que está sendo pedido para nós. Deixamos de brigar com a vida, de lutar contra nós mesmos, e fazemos a pergunta:

“Senhor, o que queres que eu faça? ” Porque foi esta a pergunta que o Apóstolo fez ao ter o encontro com Jesus.

Fazer esta pergunta não significa submissão, passividade, ociosidade ou ficar de braços cruzados esperando que digam a você o que fazer: pelo contrário: significa prontidão diante à vida. Shakespeare, na peça Hamlet, traz: “estar pronto é tudo”.

Esta prontidão significa aquele incômodo que nos acomete quando sabemos que precisamos organizar algo. Significa certa dor ou frustração. E a mudança de postura é a única saída. Para tanto, é preciso estarmos prontos. Só está pronto quem já entendeu que a vida nos pede posturas e reorganizações de rota o tempo todo. Reorganizações, inclusive, para se ter a certeza de ter tomado o caminho certo. Permanecer no caminho escolhido é manter a prontidão diante à vida.

É preciso coragem para percorrermos esta estrada. Mais que isto: atenção ao que será dito lá. Atenção e prontidão. Com isto, pouco importa, de verdade, se estamos caídos ou sobre o nosso cavalo. É preciso prestar atenção ao que realmente importa.

Esta estrada faz, acima de tudo, um convite para abandonarmos o que nos impede de sermos felizes. Faz um convite para a renovação, para a mudança de patamar. Ela traz uma oportunidade para refletirmos sobre nossas escolhas e se estamos dando a melhor versão de nós mesmos, para a vida.

Ter a coragem de perseguir a nossa estrada é, acima de tudo, ter uma atitude de mudança. O convite é para todos.

É preciso renunciar ao que colabora para que sejamos piores. Acreditar naquilo que nos faz melhores. E trilhar esta estrada nos fará pessoas melhores.

Imprescindível nos colocar na condição de aprendizes, que é o que somos. Quando nos colocamos nesta condição, todos vão querer ouvir o que teremos para contar.

Deixar a vida nos conduzir. Abrirmos mão do comando e do controle que achamos que temos. Numa Empresa, por exemplo, muito raro a pessoa que não quer assumir papel de comando, devido à arrogância e à vaidade. Mas o que ela talvez não saiba é que não há comando, de verdade, sem humildade.

Comando sem humildade é presunção. Para estes, se deixar conduzir pela vida é quase uma blasfêmia. Por isto, a estrada que conduz à Damasco, para muitos de nós, ainda está longe.

Deixar-se conduzir pela estrada que nos levará à Damasco é ser reconhecido pela vida. É o verdadeiro comando. É se reconhecer diariamente. É se olhar no espelho e sentir orgulho do que vê. É acreditar na sua capacidade de resolver.

Esta estrada não é algo físico, é uma transformação interna. Ela nos obriga a rever conceitos e paradigmas. Temos nossos princípios questionados neste caminho. E por conta, muitas vezes, de nossas fragilidades e medos construídos por nós e por aqueles que ganham às custas de nossos medos, deixamos o convite da estrada para depois. É conveniente que não o aceitemos. Assim, seremos presas fáceis dos manipuladores que nem de longe sabem o que significa a estrada que leva para Damasco.

Quando estamos na estrada, nos decompomos, encontramos coisas não elaboradas, perdemos o controle. Mas como estamos prontos, conseguimos enxergar caminhos menos dolorosos para andarmos, nela, de forma mais leve. Esta estrada nos apresenta aquilo que, até então, não estava disponível para nós. E agora está! Mas para isto, é preciso estarmos prontos e aceitarmos o convite. Abrir mão do falso controle para buscar o verdadeiro caminho.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Paulo Freire, um dos grandes nomes da nossa Educação:

“É preciso partir das nossas possibilidades para sermos nós mesmos”.

A estrada que nos levará à Damasco é uma destas possibilidades que a vida nos oferece todos os dias, com ou sem cavalo. Se ousarmos aceitar o convite, certamente conheceremos a felicidade de sermos nós mesmos.

E sermos nós mesmos é bastante ousado para um mundo que privilegia, muitas vezes, que “sejamos o que o outro quer que sejamos”.

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