segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Saia do script

Há algumas semanas, o controle remoto da televisão parou de funcionar. Simples assim. Com pouco mais de 05 anos de utilização, muito bem conservado e utilizado, ele resolveu se aposentar. É preciso respeitar.

Após tentativas de fazê-lo funcionar (troca de pilha e demais opções que estavam ao alcance), não tive sucesso. Como a televisão é nova, liguei para a assistência técnica para encomendar outro controle remoto. Original. Ao ligar para lá, apesar do bom atendimento, me informaram que o controle que eu buscava não estava disponível no site da Empresa, estava em falta no mercado. Mas a assistência não sabia me dizer se era uma falta de produto, apenas, ou se o controle havia saído de linha. Eu tinha, então, duas opções: fazer o pedido, mesmo assim, e aguardar uma resposta do fabricante, ou ligar diretamente para ele e ter mais informações. E foi o que fiz.

Ao ligar para lá, após ouvir todo o script automático e obrigatório (disque 1, disque 2, disque 3...), fui para a sexta opção que era o meu caso (disque 6 para falar com um dos nossos atendentes). Ao ser atendida, pediram meu nome completo e o meu CPF?!

Qual o motivo para alguém pedir o nome completo e numeração de CPF para uma simples pergunta sobre um controle remoto? Não é mais ético deixar o cliente falar antes? Há casos em que o CPF é necessário (uma compra, por exemplo). Mas este não era o meu caso.

Não forneci o meu CPF e nem o meu nome completo. Para o que eu precisava saber, o meu primeiro nome bastava. E percebi que a atendente não gostou da minha atitude. Disse: “preciso do número, senhora, é norma da empresa. ”

Norma?

Continuei não fornecendo os dados. Disse a ela o motivo da minha ligação. Que apenas gostaria de saber se o controle remoto modelo X ainda era fabricado. Se sim, quando ele estaria disponível para compra. Caso contrário, eu compraria o outro oferecido pela assistência técnica.

E aí, o diálogo abaixo se desenrolou:

- Mas eu não tenho esta informação, senhora. Aqui não é logística para eu saber sobre aparelhos. Sou uma Central de Atendimento. A senhora precisa falar diretamente na assistência técnica. Mais alguma informação?

- Mas eu já falei com eles. E eles me pediram para falar diretamente com vocês, os fabricantes. Sei que você é uma Central de Atendimento (!) e é por isso mesmo que estou ligando. Preciso saber se este acessório continuará sendo fabricado.

- Só um minuto... (aqui entrou a música).

após um intervalo de quase dois minutos...

- Obrigada por aguardar...então, eu vi com o meu supervisor, e é isto mesmo: aqui não é logística. Não temos como saber isto. Mais alguma informação, senhora?

- Meu Deus, não há uma área aí com quem eu possa ter esta informação? Não é possível que eu esteja ligando para o Fabricante e não consiga esta informação. Se não é com você, com quem eu posso falar, então?

- Não sei informar, senhora. Aqui é só uma Central de Atendimento ao cliente. Mais alguma informação?

- Eu sei que aí é a Central, meu Deus, e que eu sou o cliente. Quero falar, então, com o seu supervisor. Você, me passa, por favor?

- Senhora, não estou autorizada. Mas já informei a senhora que não temos este tipo de informação. Posso ajudá-la em algo mais?

(Ajudá-la? Ela não me ajudou…)

- Sim, claro, você pode me ajudar, sim. Vocês possuem um canal de reclamação e uma Ouvidoria, eu acredito.

- Ah, sim, senhora, temos sim.

- Ah, que ótimo. Você pode me falar, então, se posso registrar a reclamação pela internet ou se preciso ligar?

- Pois não, senhora, a senhora poderá estar fazendo a reclamação pela internet, mesmo. Posso ajudá-la com algo mais?

- Não, obrigada.

- A LG agradece a sua ligação. Por favor, fique na linha para avaliar o nosso atendimento...

imagem tirada da internet

É no mínimo irônico. Depois disto ainda me pedem para aguardar para avaliar o atendimento? Confesso que ri ao desligar o telefone. Impossível não rir. Como assim pedir para eu ficar “na linha” para avaliar o atendimento? De qual atendimento ela se referia? Não houve atendimento, simplesmente. E quando eu disse que registraria uma reclamação, ela, prontamente, me falou, “pois não”?

A alienação é um preço muito alto que pagamos pela nossa completa ausência de bom senso. Ela atrofia a nossa inteligência e nos embrutece. Diminuímos de tamanho quando, ao lado dela, nos colocamos.

Ao passar por isso, a palavra script veio fortemente à minha mente. O mau atendimento ficou evidenciado, e cheguei a sentir dó da atendente pela completa falta de autonomia e discernimento dela. Ela tinha outras opções. Mas acho que ela não sabia. Ou se sabia, não quis fazer uso disto.

Lançar mão de outras opções na vida, que não o script, é sempre mais trabalhoso.

Seguir o que já foi escrito e roteirizado, com falas frias e sem sentido, nos transformam em anônimos e despercebidos na multidão de iguais. Ela tinha opções. Mas não teve alcance para ir além da fala pronta, para ler a situação e entender que, ali, era preciso um pouco mais que roteiros previamente construídos por pessoas despreparadas.

Padrão de atendimento não deve ser confundido com mecanização e robotização. Estar e atuar dentro do script é necessário. Mas o mais importante é saber o momento de atuar além dele.

Num mundo onde há muito de tudo, estabelecer regras e instruções é necessário para que se tenha uma certa ordem, controle e padrão. Caso contrário, cada um de nós sairá fazendo o que bem entender, o que achar o certo. Portanto, um pouco de ordem é imprescindível para que possamos conviver com a nossa desordem. Porém com equilíbrio e sem exageros.

Sair do script requer tempo de estrada percorrido, disposição e vontade. A vida não segue um script. Por que, então, insistimos em transformar tudo num padrão? Estamos ficando sem espaço para o improviso, para o autônomo, para a criação.

Executar algo requer um conjunto de instruções. Mas é preciso criar uma gordura de atuação para os momentos que este conjunto de instruções não funcionar.

Trabalhei numa empresa que dizia sempre: “errem dentro da circular, mas não acertem fora dela”. Um conceito retrógrado e ultrapassado. Os erros realmente lá eram poucos do ponto de vista técnico. Mas a opressão, a falta de criatividade e a completa falta de autonomia eram evidentes. Muito se perde com este tipo de gestão pobre, que só fazem ganhar dinheiro e estatus. E só. Mas tudo é uma escolha.

Criamos scripts e roteiros para ficarmos no comando e no controle. É isto o que precisa ser dito. Ponto. Um simples controle remoto é um instrumento que comanda a distância. E o que é o script senão a crença infundada do comando de algo ou de alguém, a distância? O script nos treina para o óbvio, mas não para o mais difícil que é identificar as perguntas que não estão sendo feitas e buscar resolvê-las.

O roteiro nos impõe um limite, nos leva a uma subordinação, ao imobilismo. Mas é preciso saber a razão deste limite e avançar.

Aonde está o nosso senso crítico? Não encontraremos a resposta no script.

Enfim, quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Ingmar Bergman, dramaturgo e cineasta sueco, falecido em 2007, que diz:

“Eu escrevo scripts para servir como esqueletos aguardando a carne e o tendão de imagens. ”

Que saibamos seguir os scripts quando forem necessários. Mas que saibamos o mais importante: que eles são, realmente, apenas estruturas e esqueletos. Portanto, que o nosso discernimento e a nossa razão sejam a base, a carne e a imagem. Somos e sempre seremos os condutores e os responsáveis pela decisão de usarmos ou não um script.

Scripts são domesticadores. E não incentivadores de um novo patamar de pensamento.

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