quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

A máscara que mostra

Há um poema de Fernando Pessoa, poeta português do século XIX, chamado Tabacaria, que traz um verso belíssimo:

...”e quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.

Quando a tirei e me vi ao espelho,

Já tinha envelhecido.

Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. ”

Fernando Pessoa é um destes essenciais escritores que dizem coisas para nos tirar do lugar comum no qual, muitas vezes, nos colocamos. Por meio deste verso, que nada há de ingênuo, ele revela a angústia de sermos humanos, principalmente quando o nosso mundo interior oscila com o mundo exterior. A realidade, muitas vezes decadente, confronta com o que há dentro de nós e pede respostas. Não há como ficarmos indiferentes.

Este poema fala disto: das angústias inerentes ao ser humano. Do confronto da realidade versus aquilo que se quer. Muitas respostas serão encontradas; muitas não. E lidar com as respostas encontradas, mesmo que não tenhamos gostado, ainda assim será mais fácil do que lidar com respostas não encontradas. A angústia nasce disto. Desta resposta que não veio, do sonho não realizado, das experiências vividas no isolamento e no anonimato, dos saberes não aplicados.

Carl Jung, psiquiatra suíço, falecido em 1961, nos ensina que as máscaras são, na linguagem trazida por ele, uma forma de conformidade, uma maneira de cessarmos a nossa guerra com a vida e aceitarmos as suas condições. Baixarmos a guarda. Quando nos conformamos, por pior que pareça este conceito, nos acalmamos. Parece que a vida nos deu uma trégua. Por isso Jung nos diz que a máscara não possui, portanto, somente aspectos negativos. E a ironia está exatamente nisto. Ver o lado bom delas.

Tirar as máscaras é aceitar a nossa condição de inacabados e, portanto, imperfeitos. Quando abrirmos mão da necessidade neurótica que temos de poder e de estatus, as máscaras entrarão em desuso. Mas talvez como ainda não estejamos prontos para enfrentarmos esta nossa condição de inacabados, vestimos máscaras para fazermos de conta que estamos. Afinal, quem irá nos questionar se nossas máscaras são perfeitas?

As máscaras, na época grega, eram utilizadas pelos atores, no palco. A ideia era mostrar, ao público, o distanciamento entre o personagem versus o ator. Era deixar claro que aquela encenação no palco era alheia à vida do ator. Uma coisa era o personagem; outra coisa era o ator. Duas realidades distintas, portanto.

A máscara, em si, nada mais é do que um adereço. Simples assim. Um objeto inanimado. O perigo está justamente na função dada a ela, que é construída por nós. A máscara será o resultado dos nossos desejos e das nossas intenções. Ela pode servir para trabalhar o nosso lado lúdico (brincadeiras de crianças), para participar de uma festa (carnaval), disfarçar o que eu não quero mostrar e outros exemplos.

Por que usamos máscaras se não somos atores encenando uma peça? Podemos não ser atores de teatro, mas somos atores da vida e na vida. Não há como negarmos esta realidade. Por isso, adaptar-se às vezes é necessário. Usar máscaras é necessário. Elas são uma espécie de ferramenta de convívio social. Ou será que podemos ser quem somos o tempo todo e dizer o que queremos o tempo todo? Não. Portanto, as máscaras nos ajudam a conduzir melhor esta dinâmica chamada Vida.

O ideal seria vivermos livres, educados para dizermos a verdade, sempre, e não para sermos aceitos, cordatos e agradáveis. Mas e o limite disto? Quando saber o momento de retirar a máscara antes que ela se confunda com o nosso rosto? Vejo dois caminhos: o primeiro é se observar sem máscaras ou, pelo menos, com menos máscaras. Assim, a visão ficará mais limpa do que há atrás das cortinas. E um segundo caminho: revisitando, frequentemente, conceitos que podem, hoje, não fazer mais sentido. Deveríamos aprender a descontruir máscaras e não incentivados a vesti-las e, assim, perpetuarmos um modelo falido. Acusamos os mascarados. Mas fazemos parte deste mesmo grupo.

É preciso questionar o poder que damos a quem nos obrigada a colocar máscaras. Caímos em profundo esquecimento de nós mesmos quando as usamos. E depois, quando tentarmos acordar, não será mais possível. Estamos tão acostumados a usá-las porque desconhecemos o que é viver sem elas. E cá entre nós, usar máscaras é muito mais confortável que não a usar. Elas nos tornam as pessoas ideias. Que maravilha não precisar explicar quem somos! As máscaras fazem este papel por nós.

A máscara é usada por aquele que perdeu a medida e acabou se perdendo no caminho da própria mediocridade.

imagem tirada da internet

Enxergar a nossa essência requer ausência de máscaras, desprovida de disfarces.

Com elas, os caminhos percorridos são curtos e insustentáveis; sem elas, longos e sustentáveis. Qual caminho escolheremos?

A nossa vaidade é tão grande que, mesmo sabendo não ser ideal o uso constante de máscaras, ainda assim comparamos as nossas com as do nosso vizinho.

A máscara é uma ferramenta do convívio social. A dependência dela não nos traz opções, muitas vezes. Mas acima de tudo, questionar o uso da máscara é fundamental. Usá-la é necessário; mas transformá-la em pele é abrir mão do direito de estar no mundo. A máscara tem o poder (que damos a ela) de esconder a nossa identidade. E o que é pior: tem o poder de transformar a nossa identidade. O super-herói se transforma em alguém que ele não é e cria uma expectativa de que aquele personagem seja ele mesmo. E sabemos que não. A máscara, portanto, é uma maneira de disfarçar, mudar e/ou transformar quem somos. Nos gibis, isto é inofensivo. Mas na vida como ela é, não saber lidar com as máscaras poderá nos tornar reféns dela.

Máscaras perfeitas são máscaras desmedidas num mundo desenhado para ser perfeito, mas que é imperfeito. Vestimos máscaras para podermos exercer a nossa convivência.

Mascarados, fazemos de conta que somos o que não somos para correspondermos às expectativas daqueles que não nos representam. Porque aqueles que nos representam não nos cobram máscaras e expectativas.

A aparência que aparenta aquilo que aparentemente aparentamos. Frase ambígua e redundante. Mas quem é o que veste máscaras? Linguagem redundante nos confunde. Assim como os mascarados, que confundem o ouvinte menos atento.

Aquele que não usa máscara é livre. Livre é aquele que tem responsabilidades, porém com cada vez menos necessidades. Não é para qualquer um.

A máscara aponta o erro, a falha.

Às máscaras, a resposta pronta. Aos desmascarados, a pergunta que importa (im + porta) = trazer para dentro, para aquilo que, verdadeiramente, importa.

Quem se importa com o que importa? Se nos importássemos com o que importa, as máscaras estariam em desuso, no máximo seriam usadas, como brincadeiras, num sábado de carnaval.

Enfim, vestir, para sempre, uma máscara nos torna marionetes da vontade alheia.

A propósito, você já tirou a sua máscara hoje? O que viu no espelho? Ou ainda está vestido com ela? Se soubermos esta resposta, a lucidez ainda está fazendo parte das nossas escolhas. Sabemos que usamos máscaras. Mas se não soubermos se ainda estamos vestindo ou não, certamente a máscara vestida já está se confundindo com o nosso próprio rosto.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma inquietante frase de Lêdo Ivo, jornalista e poeta brasileiro, que diz:

“Na vida, precisamos sempre de usar máscaras, pois ninguém nos reconheceria se nos apresentássemos de rosto nu. ”

Acusação grave, mas quem ousa rebatê-la?

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