terça-feira, 2 de maio de 2017

Nossos habitantes indesejáveis

São muitos os que habitam em nós cuja presença queremos: o amor, a solidariedade, a compaixão, a vontade de fazer. No entanto, também são muitos os que habitam em nós cuja presença desprezamos. Mas apesar do nosso desprezo, não se intimidam e lá continuam, em nós, sem a mínima cerimônia. Afinal, de certa forma, os convidamos. Ou não? E todos nós sabemos que mandar uma visita embora depois de ter sido convidada é bem difícil e deselegante. A vida tem disto. E é preciso enfrentar estes habitantes que fazem de nós o que somos, o que não gostaríamos de ser e o que gostaríamos de ser.

A avareza é um destes habitantes indesejáveis. Somos todos avarentos. O que nos diferencia, talvez, seja a intensidade desta avareza presente em nós: uns mais outros menos. Mas não há dúvida quanto à presença dela em nós.

imagem tirada da internet

Em nosso racional, quando falamos sobre avareza, temos consciência de que não se trata de um bom habitante. Mas como não nos conhecemos com profundidade, ou melhor, não queremos nos conhecer com profundidade, não queremos assumir que somos avarentos e que a avareza faz parte da construção do nosso ser, no mundo. Assumir a nossa avareza é como se assumíssemos um crime. Temos vergonha. Nossa vaidade e nosso orgulho não permitiriam tamanha conscientização. Portanto, este rótulo e esta marca não nos pertencem.

Em nosso emocional, a consciência de que a avareza não se trata de um bom habitante também é presente. No entanto, não conseguimos disfarçar. As emoções sempre falam mais alto. E aí damos fartas demonstrações de nossa avareza, mesmo que o nosso racional insista em nos colocar num outro patamar. Num patamar de superioridade cujo merecimento ainda não alcançamos. Nesta hora, talvez a percepção de que “somos todos iguais”, se mostre e consiga nos convencer de que somos humanos, incompletos e falíveis.

Racionalmente, a explicação é linear, lógica, concreta e reta. Portanto, escondemos a nossa avareza com muita habilidade.

Emocionalmente, a explicação é ilógica, abstrata, irregular e tortuosa. Portanto, não conseguimos disfarçar e demonstramos a nossa avareza nos mínimos detalhes.

Por incrível que pareça, há razões para alimentarmos a avareza em nós. Por isto ainda ela está lá. E somente quando aceitarmos isto, conseguiremos, de verdade, ir para aquele outro patamar. A avareza, assim como os outros indesejáveis habitantes, nos traz benefícios que nos completam de alguma forma.

O problema somente começa a ser resolvido quando reconhecemos a existência dele. Portanto, se queremos deixar de ser avaros, primeiramente precisamos nos reconhecer como tal.

Na etimologia, a palavra “avarento” vem do latim avarus, que significa apego excessivo ao dinheiro, num primeiro momento. Mas também traz outros significados mais profundos como mesquinhez, insignificância, miserabilidade, sovinice e outros. Significa um desejo desesperado por algo que, de longe, faz sentido. Esta busca por algo sem sentido é sem limites. O avarento não sabe reconhecer o momento no qual suas necessidades foram atendidas. Pelo contrário, suas necessidades nunca são atendidas.

Ele, definitivamente, não conhece a abundância. Só conhece a escassez.

O avarento não tem apego, apenas, pelo dinheiro e por questões materiais. Seus apegos e seus excessos se dão na alma, muito além do físico. Recusa-se a aceitar o convite da vida para o olhar além, para o descortinar, para o conhecer, para o amadurecer. Recusa-se a enxergar o além porque sua visão é limitada. Não acredita no ilimitado. A base da vida dele é a escassez, a falta, a dificuldade, o pessimismo.

O avarento ainda não se encontrou com ele mesmo. Por isso acredita na falta. Ele não enfrenta os seus silêncios, os seus avessos, seus habitantes indesejáveis.

Economizamos sorrisos. Isto é avareza.

Os celulares têm recebido mais atenção do que as pessoas. Isto é avareza.

Os abraços têm sido dados por obrigação e por educação. Isto é avareza.

Abrimos mão do bem para não sofrermos. Isto é avareza.

O bom dia tem sido falado mecanicamente. Isto é avareza.

Nossos ouvidos têm trabalhado pouco. Isto é avareza.

Nossas falas têm trabalhado muito. Isto também é avareza.

Nossa resignação tem sido passiva e não ativa. Isto é avareza.

Nossa generosidade tem sido seletiva demais. Isto é avareza.

Estamos confundindo marketing pessoal com trabalho voluntário. Isto é mais que avareza.

O gerundismo que não se completa em ação concreta. Isto é avareza.

O indelegável que delegamos. Isto é avareza.

Não dividimos porque achamos que faltará para nós. Mas nos esquecemos de que a ausência de divisão é a própria falta.

Lutamos para negar nossas pequenezas. Mas é neste momento que elas mais aparecem.

O avarento não acredita em fontes que criam. Acredita no sofrimento como única forma de expressão. Ele negligencia a vida e tudo o que ela pode ser.

Qual é a vantagem de ser avarento? Conhecendo esta resposta, encontraremos o que nos faz resistir a ela. Mas há sempre aqueles que resistem a ficarem conscientes de suas próprias resistências. E isto faz perpetuar a avareza em nós, em cada um de nós.

Por medo de perder, não competimos. Por medo de morrer, não vivemos. Por medo de sonhar, matamos os nossos desejos e nossos sonhos. Talvez estas sejam algumas respostas que preenchem nossas necessidades doentes traduzidas na avareza. Como acreditamos na falta, por que e para quê buscarmos a fartura e a abundância?

O avarento é um acumulador de faltas. É uma ausência. É uma dificuldade de dar de si porque não se reconhece como um realizador, como um participante da vida. Ele não compartilha a sua abundância porque não se reconhece nela.

O avarento ilude-se com o transitório. Não conhece o permanente. Vive imerso a falsas necessidades criadas por ele mesmo para sustentar a sua crença nas faltas.

Enfim, quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Francisco Quevedo, escritor espanhol do século XVI, que diz:

“O avarento mais preferiria que o sol fosse de ouro para o cunhar, do que ter luz para ver e viver. ”

Que o pensamento acima provoque uma profunda reflexão em nós e profundas transformações. E que possamos ter acesso ao sol e à luz, mas como fontes de vida e não como fontes para alimentarmos nossos habitantes indesejáveis. E que eles, mortos de fome, se retirem por descobrirem que, pelo menos dentro de nós, nada mais os alimentará.

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