Uma vez presenciei um diálogo que dizia assim:
- “Você viu a lua, ontem? Nossa, estava linda! ”
- “Ando tão ocupado, está tudo tão corrido, que ando de cabeça baixa e
nem me lembro de olhar para cima e de ver a lua. ”
Apesar dos exageros que sempre fazem parte dos nossos diálogos (e com
este não seria diferente), um fundo de verdade sempre tem naquilo que dizemos e
expressamos. Nossas falas, mesmo supervalorizadas, exprimem o que vai em nós, revelam
as nossas ausências, crenças, abismos, valores e bastidores. Mesmo que sejam
inconscientes.
A tecnologia avança, realiza múltiplas tarefas que até pouco tempo eram
realizadas por nós, porém estamos cada vez mais sem tempo. Onde foi parar o tempo que nos sobrou a
partir do momento que a tecnologia nos foi apresentada?
O acesso às informações se democratizou. Hoje a informação é de todos, pelo menos de quase todos. Mas por que
não avançamos, então, em conhecimento e em discernimento? O que estamos fazendo com tantas informações?
A liberdade que temos para dizer o que pensamos, para construir o que
acreditamos, para ser o que queremos. Mas por que, então, estamos cada vez mais
sozinhos? Por que somos campeões no
consumo de antidepressivos?
Avançamos na longevidade, mas o que estamos fazendo com este tempo a
mais?
Orgulhamo-nos de tantos amigos virtuais. Mas onde foram parar os reais? Por que nos custa entender que a
quantidade, neste caso, é improdutiva e irreal?
A medicina avançou, mas nunca fomos tão rapidamente diagnosticados por
doenças, distúrbios, transtornos, síndromes de todas as ordens. Realmente
estamos descobrindo isto tudo porque, de fato, existem, ou estamos
transformando a dor em algo proibido de se sentir? E, aí, portanto, a
medicalização da dor se torna uma saída estratégica? Atingimos o ápice da
arrogância e da prepotência quando dizemos sem tempo para sentirmos dor ou que
não queremos sentir dor. Ela é um poderoso instrumento de transformação. Se não queremos senti-la, por que a
buscamos? Por que a provocamos?
Encontrar uma causa exterior para o nosso problema pode, num determinado
ponto, ser reconfortante. Seria um caminho mais curto optar pelo diagnóstico
sem mesmo antes tentarmos buscar, internamente, o significado de tudo aquilo?
Não condeno, absolutamente, o remediar, o diagnosticar, e nem digo que
isto está errado. Mas a pergunta que fica é: para quê? Por que isto está
acontecendo desta forma? Isto não explicaria nossa falta de disponibilidade
para a vida? Na vida? Com a vida?
Refletindo sobre isto, uma palavra chega em minha mente: disponibilidade. Estar disponível.
Aquela pessoa não viu a lua simplesmente porque ela não estava disponível para.
Simples assim. A lua sempre esteve e sempre estará lá. E, de verdade, para ela
será indiferente se a percebermos ou não. No entanto, para nós, a percepção e a
contemplação da lua farão enorme e brutal diferença.
Estar disponível é participar da vida, mesmo que estejamos com muitos
compromissos. Quais têm sido, portanto, os nossos compromissos?
A sensação que tenho é que, mesmo com tantas facilidades, de todas as
ordens, que temos hoje, sempre vamos encontrar uma maneira de preencher os
vazios que ficarem. Vazios que deveriam ser respeitados e mantidos. Mas que
insistimos em preenchê-los, muitas vezes, com superficialidades e amenidades
que nos fazem ter a alienação como uma de nossas irmãs.
Mesmos ocupados, podemos estar disponíveis. Disponíveis para a vida,
para nós e para o nosso próximo. Não é possível que não tenhamos tempo para
isto. Mas insistimos em acreditar que estar ocupado o tempo inteiro é sinônimo
de importância, nos dá uma posição frágil de acreditarmos que somos alguém.
Quando dizemos que não temos tempo para olharmos
a lua, quem perde com isto? Nós, certamente. E a vida sabe nos cobrar
contas bem caras por nossa desfaçatez e descaramento.
Não temos tempo de olharmos a lua, mas gastamos horas verificando quantos
viram nossa última postagem. Não temos tempo de ligarmos para um amigo de verdade, mas aceitamos convites
virtuais de ilustres desconhecidos que nem sabem quem somos. Não temos tempo
para lermos um livro, mas navegamos horas preciosas em postagens sem sentido.
Uma constatação nossa de cada dia. Uma realidade construída por nós.
A disponibilidade passa pelas escolhas que fazemos. Temos mais
facilidades, mas encurtamos a nossa ideia de felicidade, de normalidade, de
individualidade, de amizade. Buscamos o intangível, o inacessível, a completude
e a felicidade plena. Não há esta completude. Simplesmente ela não existe.
Então por que a buscamos? Sentimos vergonha por não atingirmos esta completude.
Deprimimos. Ficamos com a sensação e com a percepção de insuficiência. E aí
enchemos, novamente, nossas agendas e nos orgulhamos de estarmos o tempo todo
ocupados, muitas vezes, do nada, do vazio e do improducente.
Esta busca incessante nos torna inacessíveis e indisponíveis. Dedicamos
tempo, muitas vezes, à realização do incoerente em detrimento do que é possível
fazer.
Os virtuais nos leem, mas muitas vezes alguns curtem em segundos um
texto que levaria minutos para ser lido. Ou seja, não leram. A questão não é o
virtual, a tecnologia, o externo. Mas sim a falta de equilíbrio e o tamanho das
necessidades que depositamos nisto tudo. Necessidade de nos esconder, de sermos
agressivos, de não nos colocar, de não interagirmos. E isto tudo é reflexo da
falta de disponibilidade para e com a vida.
É preciso nos ocuparmos do que produz, do que impulsiona, do que
constrói. Ou seja, estarmos disponíveis e enxergarmos o que precisa. Renunciar
a desejos inatingíveis e ter a maturidade de assumir isto e as consequências de
nossas renúncias. Abrir mão de privilégios que pouco ou nada fizemos para
merecê-los. Comungar com a dor e com a alegria. Não podemos ter a ilusão de que
somente alegrias teremos. As dores são necessárias para que as alegrias sejam
vistas e reconhecidas. Isto não significa ir ao encontro das dores, mas sim não
medicalizá-las e camuflá-las. Isto
seria como negar uma parte de nós. Somos seres comuns cuja dor, assim como a
alegria, constituem a nossa existência.
A dor e a alegria trazem contornos, unidades para a construção da nossa
imagem. Dá-nos a sensação e a percepção de, finalmente, existirmos. Isto é
estar disponível para a vida.
O sociólogo Alain Ehrenberg
diz que “esta sociedade (a nossa) que valoriza o ato e o individualismo produz
todas as patologias que temos. ” E a falta de disponibilidade é uma de nossas
patologias.
Deixamos de enxergar o outro porque não nos enxergarmos mais em nossos
próprios espelhos ou se nos enxergamos, difícil está nos reconhecermos.
Estar disponível é olhar o próximo e dar a ele um suporte. Ser
testemunha de que ele existe. Devolver a ele a oportunidade de buscar a
essência perdida. Silenciar ao lado de quem precisa. Entender a dor do outro sem
precisar que ele diga. Dedicar-se. Ler as necessidades dele antes que ele diga.
Apoiá-lo por meio do olhar e tornar-se presente na vida dele. Devolver-nos para
o outro em forma de uma escuta ativa, atuante e que não finge que ouve enquanto
digita um texto num e-mail cujo
assunto é sem importância.
Não estamos interessados no problema do outro. Mas disfarçamos. Nem na felicidade
do outro. Mas disfarçamos. E vice-versa. Por isto estamos tão sós e ao mesmo
tempo tão cheios de nós mesmos. A construção é coletiva. Mas insistimos no
individualismo. E depois, quando a conta chega (já chegou), fingimos que o
porteiro não a colocou sobre o capacho.
Para isso, é preciso ampliar a nossa linguagem de afeto para o próximo.
Educar as nossas reações, os nossos olhares, as nossas palavras e assim,
melhorarmos as nossas respostas ao outro. A verdadeira disponibilidade passa
por estes três componentes essenciais à vida. E assim, criamos outras
narrativas para as nossas vidas e para a vida do outro, que, até então, estavam
desconexas. E isto começa dentro de nós.
Admitir a nossa falta de disponibilidade é humilhante. Faz-nos relembrar
a nossa pequenez e o nosso tamanho, que, desconfio,
esquecemos por conveniências. Ao mesmo tempo, explicitarmos isto, nos recoloca na
condição de humanos, portanto, imperfeitos. Assumirmos nossa condição de
amadores e de eterno aprendiz, como diz a música, revela que uma mudança é
sempre bem-vinda, que queremos mais. Esta inquietação é fruto de um modelo que
não queremos mais. E isto é positivo.
A nossa falta de disponibilidade para a vida está nos fazendo perder de
vista os caminhos que já tínhamos trilhado. Precisamos prestar atenção às conquistas
que estão sendo deixadas pelo caminho. Darmos atenção a nossa individualidade e
enxergar o próximo como um igual. Caso contrário, seguiremos na construção de
nossas violências não percebidas, porém sentidas. Em nossas disponibilidades
disfarçadas.
Desconfio que ser feliz é algo bem mais simples do que imaginamos. Mas
como complicamos, nunca conseguimos enxergar a simplicidade deste caminho. A
felicidade está a nossa espera. Mas para ser encontrada, o único caminho é a
simplicidade.
Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de
Paulo Freire, um Educador revolucionário, que diz:
“É preciso diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, até
que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática. ”
Alimentamos uma fala bonita, disponível,
mas não praticada. A nossa disponibilidade, que está disfarçada de educação, muitas
vezes é somente conveniência e não convicção. Quando estivermos disponíveis
para o outro e quando o outro estiver disponível para nós, as falas não serão
mais necessárias porque nossas atitudes e as do outro ocuparão todos os
espaços.
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