domingo, 19 de novembro de 2017

Tempos de sempre

Vivemos tempos estranhos. Vivemos tempos felizes. Estranhos e felizes. Felizes e estranhos.

Consideramos o outro como estranho a nós. Não nos é pedido sermos amigos íntimos, mas por que a dor e a angústia dele não nos representam? Fazemos questão de considerar o outro como estranhos.

Um distanciamento provocado, assistido e, particularmente, calculado. Mantermos a distância das dores do outro nos faz criar ilusões sobre a vida, e nos faz colocar tintas sobre ela que jamais existiram na cartela. Tornar a angústia do outro parte do nosso problema, nos obriga a conhecer as nossas dores e as nossas angústias. Talvez seja este o problema.

Sempre quando estendemos a mão para o outro corremos o risco de sermos derrubados pela própria força que o outro fará quando se apoiar em nós para se levantar. E vice-versa. Mas queremos esconder. Ninguém precisa saber disto. Por isso, quanto menos contato tivermos com a dor do outro, mais camufladas estarão as nossas questões.

Acreditamos que viver como estranhos ajuda a evitar o nosso sofrimento. A frieza do estranhamento causa um distanciamento e assim, apostamos numa ilusão de proteção.

Afastar o estranhamento frente à dor do outro não nos fará tristes e sofredores. Sermos solidários, de verdade, à angústia do outro nos fará seres mais fortes e capazes de superarmos nossas próprias dores. Somos seres interdependentes. Mas insistimos na tese do individualismo. A crença na interdependência desperta a vontade de aliviar a dor do outro. Quando aliviamos a dor do outro uma dor em nós é amenizada também. A crença no individualismo desperta o nosso inchaço e nos faz crer no irreal.

Esse estranhamento a tudo o que achamos que não nos pertence. Essa alienação vivida e sentida porque estamos ocupados demais tentando disfarçar nossas miudezas. Não se trata de acreditarmos, falsamente, que temos a solução das coisas e sairmos buscando pessoas com problemas e angústias. Mas apenas legitimarmos a dor do outro. Só isso.

Fugimos da dor do outro e reforçamos a condição de estranhos porque a dor nos coloca de volta ao lugar de onde nunca deveríamos ter saído: a da consciência de sermos apenas seres humanos, frágeis, falíveis e incompletos. A incompletude nos completa. O que há além dela, neste nosso estágio? A intensidade dela pode ser reduzida. Mas a linha que nos define é esta. A fragilidade nos caracteriza, nos identifica. Afinal, o que é mais humano que se sentir frágil e amedrontado? Vítor Hugo diz que todo mundo é parecido quando sente dor. Quando estamos com dor e vulneráveis, parece que a lucidez volta a ter voz em nós. Somos falíveis. Que belo golpe para o ego. Esta descoberta traz desconforto porque somos vaidosos. E quanto mais vaidosos somos, mais falimos. Que ironia.

Passos melhores e maiores. O sinal soou. A maioria ouviu. E por que não avançam? Talvez pela inércia, outro recurso imprescindível do qual todos nós somos feitos.

Somos estranhos a nós mesmos. Por isso não há como ouvirmos a dor do estranho que passa. A dor que cala porque a voz não cessa de falar o que não produz.

O silêncio que chega manso buscando um espaço no conturbado lago das ilusões.

Vivemos tempos felizes, também. E aquele que já entendeu isso, descobriu que felicidade não se define, se sente. Aquele que mente e diz que sabe o que é felicidade, não é feliz. É só um burocrata do conceito, do significado, um afoito de dicionários. Não há como ser feliz com conceitos concluídos e absolutos. É só um personagem passando pela vida.

Aquele que diz saber o que a vida nos oculta, por sabedoria, é um fazedor de vida, e não um realizador da vida. É um reivindicador e não um executor. É uma pessoa cansada e que cansa. É uma pessoa com a vista turva, mas que optou por não a aclarar.

A vida sempre nos dá as opções certas de recortes. Mas a tesoura está em nossas mãos.

Aquele que já entendeu e descobriu que também vivemos tempos felizes sabe que a serenidade e a paz no coração que a felicidade traz sinaliza, também, algo pontual e demarcado a nossa frente: a tempestade que não enxergamos, mas que sabemos que ela existe. Portanto, não a subestima.

Tempos complementares e interdependentes. O avesso de um mostra o lado do outro.

Os limites, os excessos e os avessos fazem parte destes tempos. Que são nossos, mas que já foram de outros. Tempos estranhos e tempos felizes são reflexos do que fazemos deles. Os tempos, em si, são sempre os mesmos. O que muda é a nossa relação com ele.

A vaidade que chega falando alto porque demos voz a ela. Ela sente-se à vontade porque somos a casa dela. A vaidade nos coloca na base da incompletude. Um lugar confortável porque aqui somos os melhores? E quem nos disse isso? Aqueles que querem a nossa queda, o nosso declínio, o nosso inchaço exatamente por não cabermos em nós. Somos estranhos.

Nossos contornos refazem nossas formas. Mas não as reconhecemos. Desfazemos as nossas recentes formas e desperdiçamos as falas trazidas pelos contornos. Caímos em ciladas autorais que buscam a perda de nós mesmos. Perdidos, como entender estas formas?

Valorizamos as ferramentas que destroem e que corrompem. Elas proporcionam construções imediatas e mais rápidas, encurtamento de caminhos obrigatórios, planejamento subestimado e etapas desconsideradas. De posse de nossas agendas cheias, estas ferramentas nos induzem ao cultivo do impossível, do descartável e do alienável. Nossa atenção está direcionada para o que não precisa e, portanto, não percebemos os sinais da construção destas grades que, livres, se perpetuam, se fortalecem e criam raízes.

O tempo não voa. Ele só passa mais rápido porque se chateia por não priorizarmos o que, de verdade, importa.

Tempo nosso. Tempo do outro. Nosso tempo. Nossos tempos. Antigamente é um tempo tão próximo. O futuro precisa dar as mãos para a antiguidade se quiser se reinventar. Os tempos que temos são de todos nós.

Aquele que vai à frente, investe tempo. O que ficou preso às lentes distorcidas, gasta tempo.

O tempo é lento e rápido. Depende do tom que quisermos dar a ele. Ajudar alguém a se reestruturar é um dos maiores investimentos de tempo. E não perceber a nossa necessidade de reajustes e ajustes é uma das maiores perdas de tempo.

Os tempos estranhos nos fazem estranhos em meio a conhecidos. Os felizes nos impulsionam para o despertar do compromisso.

Somos uma sociedade de apressados porque apressamos o tempo. E por vingança, ele nos apressa também. E assim chegamos mais rápido a lugares desconhecidos. Os tempos estranhos pertencem a todos nós: inconscientes, injustos e desatentos.

Nosso exacerbar dos excessos que finge não perceber o transbordamento. Afogamos os conhecimentos alheios porque o saber somente a nós pertence. Vivemos tempos estranhos.

Tempos estranhos. Tempos felizes. A batalha do encontro que, aos poucos, vai fazendo as pazes. Mas antes, será preciso fazer as pazes com a gente mesmo.

Em paz conosco, não teremos medo de nos apropriar da dor do próximo. Teremos entendido, finalmente, que nos apropriar da dor dele e ajudar a minimizá-la, não significa tomar a dor dele para nós, nem mesmo abrir mão da nossa felicidade.

Exacerbamos a nossa ideia de felicidade por isso ainda sentimos infelicidade. A nossa ilusão de felicidade absoluta é a grande causa da infelicidade e do insucesso. Quando aceitarmos quem somos e quando nos identificarmos como seres relativos e não absolutos, a nossa contribuição para o mundo será enorme.

Que a gente busque tempos felizes, e não a obrigação de ser feliz. Porque isto nos coloca num lugar apertado, na vida, com difícil acesso a outros patamares de evolução. Mas que os tempos estranhos sejam respeitados e ouvidos até para que os felizes façam sentido. E que espaços de conversa com nossos tempos estranhos sejam criados.

O individual e o coletivo são um. Que o amanhã chegue. Que o passado seja a nossa fonte para perguntas e, assim, nos envergonharmos da nossa arrogância. O passado é sempre sábio. E que o presente sirva para nos conscientizar sobre a ignorância de termos pressa. Assim, todas as nossas frestas estarão cobertas.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Nietzsche, filósofo alemão do século XIX, que diz:

“Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.”

Os monstros do nosso tempo são velhos conhecidos: o esvaziamento das relações e, como consequência, nos tornamos seres estranhos uns aos outros, e a nossa busca doentia pela felicidade absoluta. Algo que, ironicamente, não existe.

O cuidado para que não nos tornemos um monstro por estarmos lutando contra os nossos monstros, é o que nos diferencia como seres inteligentes. E se para esta luta for preciso olharmos e contemplarmos os nossos abismos, que não tenhamos a ilusão de acharmos que não teremos sido vistos por ele. O melhor que fazemos é cumprimentarmos nossos abismos, dialogarmos com eles e compreendê-los. Subestimar que eles nos observam é reafirmar a nossa condição de estranhos. Quando tivermos a coragem de sairmos dos nossos estranhamentos, nossos abismos terão transformado nossos monstros em coautores da nossa nova história. Uma história de escrita feliz e sem estranhos por perto.

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