domingo, 8 de abril de 2018

Ditos ocos, ouvidos moucos

Sonhar é viver, e viver é sonhar. Um depende do outro. Um completa o outro. Quando enxergamos isto, o nosso compromisso com a vida se torna sólido, verdadeiro e profundo, e todas as possibilidades que ela nos oferece são lucidamente percebidas por nós. No entanto, esta lucidez e fluidez com que percebemos este sonhar e este viver, ou seja, nossas possibilidades, vão cedendo e perdendo espaço na mesma medida que dedicamos tempos preciosos para ouvirmos o desnecessário, o vão, o tolo, o inútil. Portanto, deixar de ouvir algumas vozes, alguns ruídos e barulhos faz todo sentido. Ouvidos moucos são bem-vindos.

“Ditos ocos, ouvidos moucos”, diz o provérbio português.

Onde estão os nossos sonhos? Dentro das nossas vidas. Para enxergá-los, será necessário silenciar as nossas tormentas internas e calar vozes que teimam em nos desviar da rota que buscamos trilhar. E infelizmente muitas vezes elas conseguem. E triunfam.

Sonhar e realizar é maravilhoso. Mas nem sempre sonharemos e realizaremos. Faz parte da vida e do nosso processo de construção e de consolidação como seres autônomos que somos ou que, no mínimo, buscamos ser.

Sonhos realizados significam que andamos de mãos dadas com o tempo e com a vida. Sonhos ainda não realizados podem significar um convite do tempo e da vida para que nossas mãos estejam estendidas. Assim eles podem nos alcançar.

O tempo e a vida sempre nos darão pistas que revelarão os motivos da realização e da não realização dos sonhos. Acima de tudo, acreditar e desenvolver as condições para. Se vamos conseguir, somente o caminho dirá. Guimarães Rosa diz que “...a realidade está na travessia”. Portanto, nossa realidade está no sonhar, no viver e nos pés que precisamos tirar do chão se quisermos avançar, apesar de eles nos conectarem com a base.

Ouvidos moucos nos ajudam a não afrouxarmos diante à vida. Ajudam-nos à concentração no que, verdadeiramente, importa. Fernando Pessoa nos provoca dizendo:

“Os meus sonhos são mais belos que a conversa alheia.”

Aquele que deixou de sonhar, normalmente, já não tem muito mais o que fazer. E por conta do tempo ocioso que resta a ele, comumente tenta e busca destruir o sonho do outro. E destruir o sonho do outro são conversas alheias.

É preciso fazer ouvidos moucos para aqueles cuja capacidade de sonhar se perdeu.

Deixar de sonhar nos causa desequilíbrios. Por isso, aquele que se perdeu de sua capacidade de sonhar busca apoio nos ombros e ouvidos alheios.

Todo aquele que deixou de sonhar, deixou de viver. E se não estivermos atentos, faremos companhia a esse cujo sonho se tornou desconhecido.

Ouvidos moucos nos blindam de interferências que poderiam nos fazer desviar da rota. Eles não são sinônimos de alienação ao que precisa ser ouvido por nós, mesmo que seja algo difícil como uma crítica ou a constatação de que ainda não estamos prontos. A vida nos transmite recados e é preciso termos a humildade para ouvi-los. Ouvidos moucos são, fundamentalmente, ferramentas necessárias que nos ajudam e fortalecem a nossa caminhada. Utensílios imprescindíveis para não abandonarmos o caminho e a rota porque sabemos que estamos na direção correta.

Sonhar é fundamental para aquele que vive. É o movimento que conduz. É o recuo como refúgio. É o arriscar para se acertar. Quando não desistimos, o sonho permanece.

O sonho ilumina nossas estradas. É ele quem nos acomoda. A falta de sonho nos deixa desconectados com a vida. A lua perde todo o sentido.

Sonhar nos ajuda a ser seletivos e objetivos. O tempo nos exige isto.

Aquele que sonha ouve os seus silêncios. Faz o caminho de volta para se reencontrar. Aquele que sonha segue as próprias marcas deixadas no chão. Desta forma, o caminho de volta fica mais fácil e familiar.

O homem que sonha é um corajoso, um destemido.

As conversas alheias são os excessos diários que cumprem o papel de nos chamarem à reflexão. São exatamente os excessos que nos fazem refletir sobre a necessidade do limite. São os excessos de exposição que nos fazem refletir sobre a importância e lucidez da reclusão e da preservação. Estas conversas alheias e desnecessárias servem para nos fazer refletir sobre a relevância do silêncio. Elas não nos permitem sonhar. Falam muito e ocupam espaços não autorizados. Entram e se alojam. Elas nos intoxicam porque nos tiram da relação conosco.

É preciso tempos vazios para a contemplação. Nela, os sonhos ressurgem. Reaparecem. Descem das estrelas, aonde os colocamos, para alcançarem as nossas mãos.

Os sonhos são a prova de que a vida existe. E a vida é a prova de que se é possível sonhar.

O sonhar nos torna humanos e singular a nossa experiência. Exige tempo, reflexão e construção. Quando deixamos de sonhar para nos conectar, abrimos mão de um espaço de construção dentro de nós.

É preciso fazer ouvidos moucos para que conversas alheias não tenham vez conosco. Pois como disse Fernando Pessoa, os nossos sonhos são mais belos. E são mesmo!

Que as conversas alheias, os barulhos, interrupções, desestímulos sejam apenas belas oportunidades para reforçarmos aquilo que não queremos.

Que os nossos sonhos nos encontrem na bela vida que vivemos. Os sonhos nos constituem. Revisitá-los é como olhar para nós mesmos.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Victor Hugo, romancista e poeta do século XIX, que diz:

“Eu caminho vivo no meu sonho estrelado.”

Que a nossa vida seja este caminho vivo, como uma representação dos nossos mais belos sonhos estrelados, como disse o Poeta. Somente quando calamos as vozes neutras e dúbias, é que as estrelas podem ser vistas. Quando damos vozes a vozes desprovidas da crença no sonho, as estrelas choram e se escondem para não serem vistas.

Que a gente não tenha pressa para preencher as nossas lacunas. Elas indicam o caminho para os nossos sonhos, para a nossa vida. Enquanto nossos sonhos existirem em nós, estaremos vivos e o melhor: sonhando.

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