domingo, 10 de junho de 2018

Essa tal liberdade

Na semana passada, enquanto eu assistia aos noticiários sobre a greve dos caminhoneiros, uma amiga me enviava a imagem abaixo:

imagem tirada da internet

Como coincidências não existem, no momento em que recebia esta mensagem, um caminhoneiro reclamava sobre a bagagem pesada que ele carregava todos os dias, os trajetos e caminhos perigosos que ele era obrigado a percorrer e o cansaço físico que ele sentia.

As trilhas percorridas pelo caminhoneiro, que nesse momento de paralisações e reivindicações representa o símbolo do que se transformou e vem se transformando o nosso  pequeno mundo, são bem diferentes das trilhas percorridas pela mulher que carrega uma criança. A mesma bagagem, o mesmo caminho e os mesmos pés. Porém, percorridos por pessoas diferentes, que pensam e agem diferente. Pessoas que estão nos opostos uma da outra, e que possuem visões distintas sobre o mundo. Os pés, apesar de serem os mesmos, mostram a diferença que eles representam na vida de cada um.

Independentemente se foi lícita ou não esta paralisação, não me cabe julgar. Não sou caminhoneira e nem de longe vivencio os problemas relatados por eles e pelas empresas. Não é sobre isto que escreverei. Mas sim, sobre um recorte a partir disto, para visualizarmos aonde ainda estamos. Sobre o nosso tamanho que nos lembra que barganhamos, fazemos negociatas e esfolamos o próximo numa guerra em nome do interesse  de cada um. Sobretudo, um recorte que escancara que desconhecemos outros tipos de lutas: limpas, coesas, justas e fundamentadas em argumentos sólidos e sustentáveis, cujas premissas e acordos não massacram o outro.

Vivemos, ainda, no movimento apenas de ida. O da volta está difícil de assimilar. Vivemos sob lutas que lutam apenas para a nossa valia e interesse. Se a nossa luta invalida a luta do outro, e fere o outro, fazemos de conta que não percebemos. Os animais mortos, o leite derramado, os legumes no lixo, a gasolina adulterada no posto para enganar àqueles que ali passavam, os caminhoneiros assaltados enquanto dormiam nas estradas demonstram, claramente, que a nossa luta é vã, nula, baixa e com sentido que privilegia só aquele grupo do momento. Mais ninguém. O contraditório em nós.

A guerra inexiste quando a bagagem não pesa, quando o caminho não cansa e quando os nossos pés não reclamam.

Enquanto o nosso grito calar a voz do outro ainda dormiremos muito nas estradas. Enquanto o nosso direito interferir no caminhar do outro, ainda muitos serão mortos. Além da doença percebida no sorriso e na satisafação daquele que anda de mãos dadas com a cegueira, e que se aproveita do graveto solto na estrada e o coloca na fogueira que, há tempos, agrava os nossos incêndios. Uma cegueira calculada, percebida e ajustada para os devidos fins. Como deve ser. A manipulação ainda é forte condutora dos nossos tempos. Acreditamos que o caminho é este. Por isso estagnamos.

Pensei em tudo isto enquanto assistia ao noticiário e olhava a imagem que estava no meu celular. Confesso que senti vergonha nessa hora. Vergonha das notícias que eu via, da nossa situação como cidadãos que não somos. De ser brasileira, de fazer parte de um povo que cria problemas exatamente por não tê-los, e que constrói necessidades aonde elas não existem. Eu sou este povo de quem eu falo. Todos os nossos problemas, ou quase todos, existem por causa da nossa ineficiência e incompetência. Não era para termos estes problemas. Por isso digo que criamos problemas. Exatamente por não tê-los. Por isso, me envergonhei. Uma vergonha envergonhada que se apresenta e se coloca a nossa frente.

Enquanto a vergonha me invadia, o sorriso daquela mulher carregando a criança, que também sorria, me fazia observar o quão livres eles eram. E o quão distante desta tal liberdade estávamos. Liberdade é a condutora da felicidade. Não há felicidade verdadeira sem liberdade.

Vergonha é, sobretudo, “uma dor causada pelo sentimento de inferioridade.” Está lá no dicionário. Isto resumiu meu sentimento. Estava me sentido inferior ao ver aquele sorriso espontâneo e verdadeiro, da mulher e do menino, mesmo num cenário de pobreza, de necessidade e de limitação. Um sentir-se inferior não como pessoa, mas como cidadã, como um ser que faz parte de um coletivo que não se apropria do outro. Limitações que cabem em nós porque não desejamos nos expandir. Somos ajustados nas nossas próprias costuras. Não há sobras em nossas vestes. Nossos tamanhos indicam os passos que demos na vida, e os que não demos. Somos pequenos porque assim escolhemos.

A imagem demonstra uma liberdade que desconhecemos. E pelo jeito, ainda demoraremos muito a conhecer. Enquanto milhões de alimentos estavam sendo descartados, milhões de animais sendo mortos, exatamente por conta da nossa abundância que não sabemos valorizar, uma pessoa, bem distante da gente, com dificuldades infinitas e aparentes, sorri para a vida. Sorri porque é livre.

Liberdade não é fazer o que se quer. É, acima de tudo, poder sentir a sublime sensação da ausência de limitações. E isto é para poucos. Bem poucos.

Quanto menos necessidades temos, mais livres somos. Uma guerra é a predominância da ausência da liberdade. É uma luta que custa muito caro. A conta não tarda a chegar. Aliás, acredito que há tempos ela chegou. Mas como insistimos no rotativo, os juros apenas crescem e mostram suas garras sinalizando os nossos ínfimos tamanhos.

Uma luta lícita é feita por palavras, verbo e ação, que aborda os começos, os gatilhos, os bastidores, e não uma luta que começa pelo final, obstruindo passagens, rotas e vidas. Por isso ainda estamos distantes. O que matamos por puro egoísmo e visões dos nossos espelhos invertidos e voltados para nós poderia ter alimentado milhões de pessoas como a da imagem. E a nós todos, também.

A grandeza ainda não nos representa. Não por falta de oportunidade. Mas por falta de merecimento, mesmo. A pequenez ainda se molda, e muito, ao nosso real tamanho.

A imagem da foto é desconcertante. O cenário deles demonstra fome. Mas, ainda assim, ela suplanta a dor e sorri para a criança que, ainda sem perceber aonde está e o que o mundo, de verdade, representa, sorri de volta. Um sorriso inocente da criança. Um sorriso amoroso, leve e paciente da mulher. No meio da dor verdadeira que ela sente, ainda consegue sorrir. Atitude dos grandes. Sentir-se grande é poder ser livre e sorrir, como na imagem.

Não podemos parar nas nossas realidades. É preciso transcendê-las e sair das estradas e voltarmos ao trabalho. Um trabalho interno de reconstrução de nós mesmos. Estamos fazendo da arrogância, da prepotência o nosso sustento. Há tempos que fazemos coro e eco nesta fila. Enquanto a guerra for o nosso discurso, as atitudes serão devastadoras.

Para merecermos pés que não reclamam, bagagem que não pesa e o caminho que não cansa, será preciso olharmos além de nós, enxergarmos que à frente e atrás caminham pessoas. Inclusive a gente. Também estamos nesta estrada aguardando reconhecimento dos que passam. Se cada um de nós oferecer carona para o que vem, o mundo pesará menos, realmente. Mas como oferecer carona se ainda não nos reconhecemos na mesma estrada?

É preciso pensar sobre os movimentos que criamos e sobre os que deixamos de criar, para que a gente não dê ao errado uma aparência de certo. Quais são os silêncios que guardamos? Insensatez é um deles. Por que acreditamos que o melhor caminho é o do enfrentamento? É preciso desenvolver caminhos que nos permitam acreditar que é possível mudarmos para melhor. E, assim, pararmos de nos submeter ao pequeno.

Nosso País de tantas grandezas, mas que, justamente por isto, não valorizamos e nos tornamos tão pequenos. A imagem da foto que mostra tantas necessidades. Talvez por isso ela tenha se tornado tão grande.

Temos tantas pontas soltas. Ainda não estamos prontos. Nossas fendas e brechas aparecem.

Que eu não atrase a evolução do outro por causa da ausência das minhas medidas, alguém disse uma vez. Fiquei com isto na minha cabeça. Como somos desmedidos e desajustados, atrasamos o outro. É uma pena. Talvez esta seja a nossa grande vergonha: sabermos da nossa ineficiência e incompetência para resolvermos problemas que se arrastam há tempos.

É preciso reivindicar a nossa voz neste caminho. Estamos atrasados. Mas se corrermos, alcançaremos a paz e a liberdade daqueles que vão na imagem. Será preciso, no entanto, conhecermos o lugar do coletivo, e sermos rigorosos com algumas coisas como abandonarmos a nossa arrogância de não querermos ser convencidos de que optamos pela estrada velha e errada. Há retornos bem à frente nos convidando a retomarmos o caminho.

Foram dias turbulentos. Mas que saibamos extrair conhecimentos de nossas turbulências.  Principalmente das internas.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Jean Paul Sartre, filósofo francês do século XX, que diz: “os homens são o que fazem de si mesmos.”

Acredito que podemos fazer mais de nós mesmos. Que a gente aprenda a enxergar a realidade conversando com os nossos cotidianos, e nos cercar de coisas que nos façam habitar a nossa história. Que a gente reconheça coisas que nos ofereçam contextos, e consequentemente, percursos  e rotas alternativos. Somente assim, penso, poderemos ser, verdadeiramente, o que fizermos de nós mesmos.

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