Na
semana passada, enquanto eu assistia aos noticiários sobre a greve dos
caminhoneiros, uma amiga me enviava a imagem abaixo:
imagem tirada da internet
Como
coincidências não existem, no momento em que recebia esta mensagem, um
caminhoneiro reclamava sobre a bagagem
pesada que ele carregava todos os dias, os
trajetos e caminhos perigosos que ele era obrigado a percorrer e o cansaço físico que ele sentia.
As
trilhas percorridas pelo caminhoneiro, que nesse momento de paralisações e reivindicações
representa o símbolo do que se transformou e vem se transformando o nosso pequeno mundo, são bem diferentes das trilhas
percorridas pela mulher que carrega uma criança. A mesma bagagem, o mesmo caminho e os mesmos pés. Porém,
percorridos por pessoas diferentes, que pensam e agem diferente. Pessoas que
estão nos opostos uma da outra, e que possuem visões distintas sobre o mundo.
Os pés, apesar de serem os mesmos, mostram a diferença que eles representam na
vida de cada um.
Independentemente
se foi lícita ou não esta paralisação, não me cabe julgar. Não sou caminhoneira
e nem de longe vivencio os problemas relatados por eles e pelas empresas. Não é
sobre isto que escreverei. Mas sim, sobre um recorte a partir disto, para
visualizarmos aonde ainda estamos. Sobre
o nosso tamanho que nos lembra que barganhamos, fazemos negociatas e esfolamos
o próximo numa guerra em nome do interesse
de cada um. Sobretudo, um recorte que escancara que desconhecemos outros
tipos de lutas: limpas, coesas, justas e fundamentadas em argumentos sólidos e
sustentáveis, cujas premissas e acordos não massacram o outro.
Vivemos,
ainda, no movimento apenas de ida. O da volta está difícil de assimilar. Vivemos
sob lutas que lutam apenas para a nossa valia e interesse. Se a nossa luta
invalida a luta do outro, e fere o outro, fazemos de conta que não percebemos. Os
animais mortos, o leite derramado, os legumes no lixo, a gasolina adulterada no
posto para enganar àqueles que ali passavam, os caminhoneiros assaltados
enquanto dormiam nas estradas demonstram, claramente, que a nossa luta é vã,
nula, baixa e com sentido que privilegia só aquele grupo do momento. Mais
ninguém. O contraditório em nós.
A guerra inexiste quando a bagagem não
pesa, quando o caminho não cansa e quando os nossos pés não reclamam.
Enquanto
o nosso grito calar a voz do outro ainda dormiremos muito nas estradas. Enquanto
o nosso direito interferir no
caminhar do outro, ainda muitos serão mortos. Além da doença percebida no
sorriso e na satisafação daquele que anda de mãos dadas com a cegueira, e que
se aproveita do graveto solto na estrada e o coloca na fogueira que, há tempos,
agrava os nossos incêndios. Uma cegueira calculada, percebida e ajustada para
os devidos fins. Como deve ser. A
manipulação ainda é forte condutora dos nossos tempos. Acreditamos que o
caminho é este. Por isso estagnamos.
Pensei
em tudo isto enquanto assistia ao noticiário e olhava a imagem que estava no
meu celular. Confesso que senti vergonha nessa hora. Vergonha das notícias que
eu via, da nossa situação como cidadãos que não somos. De ser brasileira, de
fazer parte de um povo que cria problemas exatamente por não tê-los, e que constrói
necessidades aonde elas não existem. Eu
sou este povo de quem eu falo. Todos os nossos problemas, ou quase todos, existem por causa da
nossa ineficiência e incompetência. Não era para termos estes problemas. Por
isso digo que criamos problemas. Exatamente por não tê-los. Por isso, me
envergonhei. Uma vergonha envergonhada que se apresenta e se coloca a nossa
frente.
Enquanto
a vergonha me invadia, o sorriso daquela mulher carregando a criança, que
também sorria, me fazia observar o quão livres eles eram. E o quão distante
desta tal liberdade estávamos. Liberdade é a condutora da felicidade. Não há
felicidade verdadeira sem liberdade.
Vergonha
é, sobretudo, “uma dor causada pelo
sentimento de inferioridade.” Está lá no dicionário. Isto resumiu meu
sentimento. Estava me sentido inferior ao ver aquele sorriso espontâneo e
verdadeiro, da mulher e do menino, mesmo num cenário de pobreza, de necessidade
e de limitação. Um sentir-se inferior não como pessoa, mas como cidadã,
como um ser que faz parte de um coletivo que não se apropria do outro. Limitações
que cabem em nós porque não desejamos nos expandir. Somos ajustados nas nossas
próprias costuras. Não há sobras em nossas vestes. Nossos tamanhos indicam os
passos que demos na vida, e os que não demos. Somos pequenos porque assim
escolhemos.
A
imagem demonstra uma liberdade que desconhecemos. E pelo jeito, ainda
demoraremos muito a conhecer. Enquanto milhões de alimentos estavam sendo
descartados, milhões de animais sendo mortos, exatamente por conta da nossa
abundância que não sabemos valorizar, uma pessoa, bem distante da gente, com
dificuldades infinitas e aparentes, sorri para a vida. Sorri porque é livre.
Liberdade
não é fazer o que se quer. É, acima de tudo, poder sentir a sublime sensação da
ausência de limitações. E isto é para poucos. Bem poucos.
Quanto
menos necessidades temos, mais livres somos. Uma guerra é a predominância da
ausência da liberdade. É uma luta que custa muito caro. A conta não tarda a
chegar. Aliás, acredito que há tempos ela chegou. Mas como insistimos no
rotativo, os juros apenas crescem e mostram suas garras sinalizando os nossos
ínfimos tamanhos.
Uma
luta lícita é feita por palavras, verbo e ação, que aborda os começos, os
gatilhos, os bastidores, e não uma luta que começa pelo final, obstruindo
passagens, rotas e vidas. Por isso ainda estamos distantes. O que matamos por
puro egoísmo e visões dos nossos espelhos invertidos e voltados para nós
poderia ter alimentado milhões de pessoas como a da imagem. E a nós todos, também.
A grandeza ainda não nos representa. Não
por falta de oportunidade. Mas por falta de merecimento, mesmo. A pequenez
ainda se molda, e muito, ao nosso real tamanho.
A
imagem da foto é desconcertante. O cenário deles demonstra fome. Mas, ainda assim, ela suplanta a dor e sorri
para a criança que, ainda sem perceber aonde está e o que o mundo, de verdade, representa, sorri de volta.
Um sorriso inocente da criança. Um sorriso amoroso, leve e paciente da mulher.
No meio da dor verdadeira que ela sente, ainda consegue sorrir. Atitude dos grandes. Sentir-se grande é
poder ser livre e sorrir, como na imagem.
Não
podemos parar nas nossas realidades. É preciso transcendê-las e sair das
estradas e voltarmos ao trabalho. Um trabalho interno de reconstrução de nós
mesmos. Estamos fazendo da arrogância, da prepotência o nosso sustento. Há
tempos que fazemos coro e eco nesta fila. Enquanto a guerra for o nosso
discurso, as atitudes serão devastadoras.
Para
merecermos pés que não reclamam, bagagem que não pesa e o caminho que não cansa,
será preciso olharmos além de nós, enxergarmos que à frente e atrás caminham
pessoas. Inclusive a gente. Também estamos nesta estrada aguardando reconhecimento
dos que passam. Se cada um de nós oferecer carona para o que vem, o mundo pesará
menos, realmente. Mas como oferecer
carona se ainda não nos reconhecemos na mesma estrada?
É
preciso pensar sobre os movimentos que criamos e sobre os que deixamos de
criar, para que a gente não dê ao errado uma aparência de certo. Quais são os
silêncios que guardamos? Insensatez é um deles. Por que acreditamos que o
melhor caminho é o do enfrentamento? É preciso desenvolver caminhos que nos
permitam acreditar que é possível mudarmos para melhor. E, assim, pararmos de nos
submeter ao pequeno.
Nosso
País de tantas grandezas, mas que, justamente por isto, não valorizamos e nos
tornamos tão pequenos. A imagem da foto que mostra tantas necessidades. Talvez
por isso ela tenha se tornado tão grande.
Temos tantas pontas soltas. Ainda não
estamos prontos. Nossas fendas e brechas aparecem.
Que eu não atrase a evolução do outro
por causa da ausência das minhas medidas, alguém disse uma vez. Fiquei com isto na minha cabeça. Como somos
desmedidos e desajustados, atrasamos o outro. É uma pena. Talvez esta seja a
nossa grande vergonha: sabermos da nossa ineficiência e incompetência para
resolvermos problemas que se arrastam há tempos.
É
preciso reivindicar a nossa voz neste caminho. Estamos atrasados. Mas se
corrermos, alcançaremos a paz e a liberdade daqueles que vão na imagem. Será preciso,
no entanto, conhecermos o lugar do coletivo, e sermos rigorosos com algumas
coisas como abandonarmos a nossa arrogância de não querermos ser convencidos de
que optamos pela estrada velha e errada. Há retornos bem à frente nos
convidando a retomarmos o caminho.
Foram
dias turbulentos. Mas que saibamos extrair conhecimentos de nossas turbulências.
Principalmente das internas.
Quero
encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Jean Paul Sartre, filósofo francês do
século XX, que diz: “os homens são o que fazem de si mesmos.”
Acredito
que podemos fazer mais de nós mesmos. Que a gente aprenda a enxergar a
realidade conversando com os nossos cotidianos, e nos cercar de coisas que nos
façam habitar a nossa história. Que a gente reconheça coisas que nos ofereçam
contextos, e consequentemente, percursos
e rotas alternativos. Somente assim, penso, poderemos ser, verdadeiramente,
o que fizermos de nós mesmos.
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