domingo, 17 de junho de 2018

Alguém disse

Alguém, algum dia disse, que perdoar era fundamental. Parece que continua assim. Mas como nosso perdão é temperamental, o assim se tornou “não é bem assim.”

O perdão, para ser autêntico, precisa sair do peito. Não de outro lugar. Neste lugar do idêntico, e não do parapeito, para nossas lágrimas enxugar. É preciso coragem para perdoar. Alguém, algum dia disse.

Alguém, algum dia disse, que o humilhado seria exaltado. Se assim não fosse, outro jeito a vida daria. Mas não um jeito cansado e de pouco espaço. Um jeito que só a vida saberia.

Um caminhar mais leve, de menos percalços, porque já vamos descalços. Anteveria a nossa matéria. E com pés breves, nos compassos, tiraríamos a nossa barriga da miséria. É preciso coragem para perdoar. Alguém, algum dia disse.

Alguém, algum dia disse, que o vago deve lugar ao sensato. E que os literatos nem sempre são cultos. Mas o silêncio do espaço preenche saliências do abstrato. Nossos autorretratos seguem soltos e preenchidos de insultos. Os nossos pedaços esgotados, a todo momento são consertados pelo dia. Régua e compasso são as ferramentas preferidas.

Um criar de espaços para o passar do discernimento que, alheio à noite, evidencia. Na promessa do compasso, um compromisso com ausências redimidas. É preciso coragem para perdoar. Alguém, algum dia disse.

Alguém, algum dia disse, que a nossa memória nos obriga a buscar as nossas vitórias. Assim fica mais fácil perdoar. Pode ser. Mas que não seja uma memória compulsória, mas com história. Assim também fica mais fácil para desatordoar o que vai no nosso ser. Acho que assim pode ser. Com amadurecer.

Realçamos o belo para que possamos ser a nossa própria paisagem, como disse Fernando Pessoa. Poeta imprescindível que também disse “não sei sentir-me onde estou.” O belo que fortalece o elo. A defasagem que nos impede de ver a nossa paisagem. Quem somos. Pessoas, assim como o Poeta que carrega, no nome, outras tantas pessoas. Um recado inconfundível que nos contradisse porque se manifestou. É preciso coragem para perdoar. Alguém, algum dia disse.

Alguém, algum dia disse, que aquele que perdoa evidencia grandeza interior. Aprende a sorrir de improviso. Se perdoa, mas não atordoa, mostra que a profundeza, que até então, era inferior, está voltando, calma, para o nosso mar interior. Um interferir conciso e preciso.

Nas pancadas que recebemos do alto de nossas bancadas, engatinhamos as nossas invenções manuseadas, e chegamos ao nosso destino a todo o momento. E das nossas arquibancadas desbancadas, inventamos outras colorações custeadas. Sem clandestino e sem procrastino. Provimentos da vida por ironias do destino.  É preciso coragem para perdoar. Alguém, algum dia disse.

Alguém, algum dia disse, que perdoar era fundamental. Será que quem disse isso acreditou no que disse? Ou só foi lorota de um contador de histórias para enganar os desavisados? Como se despedisse, me disse, antes de seguir, que perdoar era o doar na sua essência. Genial. Quem assim segue, me disse, desconhece a derrota e não se torna um enganador de trajetórias para profanar os lesados.

Ensinados, fomos, que para resolver problemas é preciso se preocupar com eles. Isto só reforça a nossa angústia e a nossa ansiedade. Coisas que desconhecemos. Estagnados, somos, que para dissolver estes dilemas, sofremos por causa deles. Isto só reforça a nossa fúria sem piedade. Coisas que esquecemos. É preciso coragem para perdoar. Alguém, neste dia disse.

E num intervalo de prosa, esse alguém me disse, ainda, em tom certeiro:

“eleve a sua assiduidade na vida. Ela aumentará os intervalos entre os seus pensamentos desgovernados. E será nestes intervalos, nestas brechas que a sabedoria estará te esperando para recompor a tua intuição com a tua essência, elementos fundamentais para o perdão. Condição você tem, mas é preciso coragem.” Depois disto, aquele alguém se calou.

Neste dia, descobri que este alguém era eu mesma, você mesmo. Todos nós. Este alguém era apenas um eco tentando fazer voz e ser ouvido dentro de mim, dentro de cada um de nós.

Reconheci-me na minha própria voz. Mas para ser ouvida, precisou se camuflar de mim mesma. Buscamos inimigos externos enquanto os internos crescem e tecem raízes.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pequeno trecho de uma estrofe do poema O guardador de rebanhos, de Fernando Pessoa, que diz:

“...como um ruído de chocalhos, para além da curva da estrada...”.

Fernando Pessoa está sempre além do que vem.

A vida nos convida ao perdão o tempo todo. Um perdoar para um caminhar mais leve. Quando não ouvimos o primeiro sinal que ela nos envia, a vida dá conta de nos mandar um ruído de chocalhos. Porque é somente por meio do perdão que poderemos fazer a curva, que poderemos enxergar o restante do caminho ainda a ser percorrido. É preciso ouvir o sinal. Mesmo que seja por meio de ruídos de chocalhos...

A estrada é longa, o caminho é cheio de pedras e de pedregulhos. O perdão é uma das ferramentas que nos estende a mão e facilita, e muito, a nossa caminhada e o nosso encantamento pelo porvir e pelo nosso presente. Ele antecede a curva. Não poderemos acessá-la, e nem irmos além dela, sem antes abrirmos a porta para o perdão. É uma condição.

A curva nos constrói, nos remonta e descortina os nossos cursos. A estrada além da curva é árdua, mas com vistas lindas para aqueles que ousarem percorrê-la. Os caminhos retos e planos nos enfraquecem e nos tornam seres manipuláveis. Para os caminhos retos, nada será necessário fazer. Apenas o mais do mesmo e o pisar sobre as flores será o suficiente. Mas para o avançar na nossa estrutura, para o abrir de olhos, a curva é o sentido único da estrada. Mas podemos passar por ela com mais serenidade se aceitarmos os atalhos que a vida nos oferece.

Os atalhos da vida são válidos e verdadeiros. Os que criamos são tendenciosos e insustentáveis, muitas vezes. Um dos atalhos da vida é o perdão, que nos espreita logo à entrada da estrada, bem na curva, apenas esperando ouvir os nossos passos para uma caminhada cuja presença confirmamos. Nesta hora, os nossos sorrisos não serão mais improvisados. Serão verdadeiros, destemidos e autênticos. O ruído dos chocalhos nos chamando para além da curva na estrada será apenas uma lembrança. Teremos vencido a curva e a estrada. Uma depende da outra. Nesta hora, teremos descoberto que a curva e a estrada fazem parte do mesmo caminho. São o mesmo caminho. O poema de Pessoa terá envelhecido porque teremos conquistado o direito de “saber sentir-nos onde estamos.”

Saberemos, enfim, onde estamos. Mas esta provocação que ele nos faz jamais envelhecerá.

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