sábado, 8 de setembro de 2018

O tempo da construção

A construção é o único caminho possível para que a nossa obra aconteça e se torne real. Se não for por ele, a nossa obra será uma farsa.

Num tempo em que tudo se fotografa e pouco se vive, a nossa obra tem se tornado sinônimo desta foto, deste algo pronto, estático, acabado, entregue. Queremos chegar no final, no momento de bater a foto, seja com o celular ou com a velha e boa máquina. O meio não importa. O que importa, mesmo, é chegar após a mesa posta, após a construção concluída. O bom mesmo, é chegar no momento da foto. Assim, garantimos a falsa crença para o outro e para nós de que participamos daquele processo. Fizemos o trabalho e concluímos o trajeto.

Queremos chegar no final. Mas por que o início, a construção, tanto nos incomoda? Por que queremos uma obra desde que não tenhamos de construí-la? São perguntas cujas respostas transitam em cada um de nós. São respostas que pertencem a nós, e a mais ninguém.

Não se trata de saudosismo, tampouco apologia ao passado. Apenas uma leve desconfiança que me faz acreditar que num passado, as pessoas valorizavam mais o tempo da construção. Havia um sentido claro do porquê estou numa construção, do porquê consegui concluir uma obra. A minha percepção é de que havia mais respeito ao tempo do bastidor, assim como ao tempo da conquista e do desfrutar da obra após um período árduo de construção.

Quando se valoriza o tempo da construção, a obra se torna mais bela para os olhos de quem a vê. Contemplar, verdadeiramente, uma obra, apenas sabe aquele que levou o tempo necessário para construí-la, sem apressar a vida. Sem engolir passos e etapas.

Antes, com menos facilidades que hoje, o nosso critério de valorização das coisas, da vida, em si, era outro. A ausência de tantas facilidades nos dava apenas uma escolha: a construção. Hoje, com tantas facilidades, o nosso critério adoeceu: misturamos diversos conceitos, colocamos tantas coisas juntas, que, infelizmente, perdemos a noção do básico, do que precisa ser colocado na frente, do que vem antes, obrigatoriamente. Perdemos a noção da relevância da construção e de que, sem ela, não há obra. A construção antecede a obra. Qualquer caminho alternativo, é um pedido para se perder no trajeto. Hoje, com diversas possibilidades, ficamos confusos porque não sabemos escolher. Não aprendemos isso. Ou se nos ensinaram, talvez tenhamos saído mais cedo naquela aula.

Tantas escolhas que esquecemos como se escolhe. Perdemos a mão e o tom desafinou numa orquestra que não permite ensaios, como disse Chaplin. Vivemos tempos viciantes de novidades que nos enchem de necessidades desnecessárias. Vivemos tempos de crença no fast, no discurso de elevador, nos 120 caracteres, que, a propósito, é tudo o que este texto não tem. A capacidade de síntese é essencial. No entanto, o tempo da construção nos pede um pouco além da síntese. Há que saber quando estar de um lado, quando estar do outro. Queremos desequilibrar esta balança e ficarmos do mesmo lado: o lado da obra pronta. O lado da construção costuma ficar mais vazio e frequentado por, ainda, poucos lúcidos.

Por que queremos chegar no final? Por que queremos entrar em cena quando tudo já estiver montado? Por que queremos somente fazer os filmes importantes e de sucesso?

A construção é o início do que pode ser. É o começo de uma trajetória. A obra é a entrega do que pôde ser. É o final. A construção sem obra é uma realidade, no mínimo, de uma experiência vivida. Uma obra sozinha inexiste. Uma construção sem obras, apesar de triste, é um exercício. Uma obra sozinha é fruto de mentes alienadas.

A construção existe por si só. A obra não. Querer inverter estes papéis é se apropriar de méritos que ainda não fizemos por merecê-los.

imagem tirada da internet

Num tempo da valorização do pronto, sujar os nossos sapatos com a poeira da nossa construção soa meio fora de moda. Entrar pelas portas dos fundos, porque a principal ainda não ficou pronta, é desconfortável para nós. “Esta será a de serviços”, dizemos. E, certamente, por lá, passarão apenas os empregados: aqueles que são pagos para nos servirem.

Num tempo da valorização do rápido e do agressivo, perdemos a nossa capacidade de ouvir a vida, e de perceber que ela demarca, com sabedoria, os lugares para a rapidez e a agressividade. Ao contrário de nós, que permitimos assentos livres para eles.

O tempo da construção é sempre aquele que escondemos dos outros. É aquele tempo das quedas, das retomadas, dos ajustes, dos cálculos, dos abandonos de rotas erradas. É um tempo de relíquias descobertas. É o tempo do descortinar. Aquele tempo para soltarmos os tubarões que ficaram presos no nosso anzol, como dizia o escritor.

Um tempo de escuta, mas também de ação. Um tempo de poeira, de bagunça, de desordem, de caos. Mas se nos lembrarmos de que somos fruto deste mesmo caos, bagunça e desordem, talvez a construção comece a fazer sentido para nós e a se tornar familiar. Nada como algo conhecido para que o medo ceda lugar para a ação.

Lendo um artigo outro dia, um profissional de 26 anos diz, sem o mínimo pudor (ainda se usa esta palavra?!), que está ansioso por avançar rapidamente na carreira para chegar à Liderança. “Quero ter uma equipe”, disse ele.

Lendo isso, me lembrei dos tubarões presos em cada anzol que nos pertence. E como vão cheios. Este rapaz deve ter muitos deles presos. Não há como querer ter uma equipe, sem antes ser uma equipe, saber o que seja uma equipe. Esta nossa mania de inverter a posição dos verbos ainda vai nos levar de volta para o lugar de onde nem saímos. Novamente, o tempo da construção é um tempo vazio de integrantes. Aonde estão quase todos? Do lado de lá, da obra pronta, do momento do enter, do momento da foto, do momento do like.

Numa sociedade aonde o verbo ter vem antes do ser, há muito trabalho. Muitos tubarões a serem soltos. Mas como estão lá há tempos, talvez tenham já se acostumado aos nossos anzóis. E, de verdade, creio que teremos trabalho para soltá-los. É preciso lembrar que os animais também têm voz. E se resolverem não soltar os anzóis que os prendem, faremos companhia uns aos outros. Como estamos acostumados a isso, não será difícil a caminhada.

O tempo da construção é o primeiro grande presente da vida. Mas como somos ingratos, o presente está lá, ainda por abrir. Aqueles que tiveram a coragem de abri-lo, já vão na nossa frente, e se nos demorarmos, os perderemos de vista. Como os anzóis destas pessoas vão livres, a caminhada deles se torna mais rápida. Um rápido eficiente, e não um rápido para caber num discurso de elevador que servirá para nos vendermos a desconhecidos. E não num discurso vazio de 120 caracteres, apenas para dizermos “presente”, nas redes sociais. Não um fast para atrapalhar toda a nossa digestão, e pior, nem saber o que comemos.

Fazemos um papel, mas já queremos ser a Fernanda Montenegro. Fazemos uma viagem de uma semana, e dizemos que conhecemos o local. Sabemos a manchete, e nos dizemos atualizados. Fazemos um curso de três meses, e nos dizemos fluente no inglês. Passamos alguns parcos meses num determinado cargo, e dizemos que somos generalistas.

Até ontem, éramos ilustres e velhos desconhecidos uns dos outros. Hoje, por causa das redes sociais, nos achamos o Woody Allen porque temos um canal no YouTube. O primeiro computador criado data da década de 40 do século passado, e nos valorizamos por saber usá-lo? É isso mesmo?! Chegamos aqui com tudo pronto. Acredito que saber usar seria o mínimo. Somos fluentes nas redes sociais. Quem, de verdade, deveria se vangloriar: o criador ou o simples usuário? Parece-me que ainda não sabemos esta resposta. Por isso, os nossos tubarões insistem em não desistirem da gente.

Por que nos orgulharmos tanto que os nossos filhos, ao se aproximarem da televisão, fazem menção ao touch? Eles nasceram nesta tecnologia. É natural agirem desta forma. Se nos orgulhamos por sabermos usar, o que dirá, então, dos criadores? O mais irônico é que eles vão bem a nossa frente, não os ouvimos. O prazer deles está na construção, no servir. Por isso a estrada deles é mais transparente e linear, e com anzóis livres.

Somos direcionados para modelos pré-estabelecidos. Estamos distantes de algumas discussões. E penso que esta é uma delas. O tempo da construção é o tempo necessário que precisaríamos viver para percebermos o valor dele. É ele quem nos recoloca nos trilhos, nos reconduz à lucidez perdida quando nos achamos o Steve Jobs da tecnologia ou algum outro mestre da nossa História, que há muitos. O tempo da construção nos dá o sentido real do caminho a ser seguido. Ele apara as nossas arestas, nos retira dos excessos, nos dá medidas que perdemos quando ficamos só do lado da obra pronta. Mostra-nos o nosso tamanho.

Há coisas tão entranhadas na gente, que nem percebemos. O caminho da obra pronta e da foto é gratificante, mas apenas para aqueles que construíram, verdadeiramente, aquele caminho, cujos anzóis vão vazios e livres. E o melhor: estes mesmos anzóis não servem mais para prenderem tubarões. Eles possuem, agora, outro propósito, outra utilidade.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma frase do Budismo que diz:

“Deus nem sempre está dentro do Templo.”

Desconfio que ele está na construção, por isso não o encontramos com facilidade, no Templo. Mas como insistimos em bater uma foto apenas do Templo, como queremos estar sempre lá, porque esta é a obra pronta, creio que este nosso encontro com Deus será difícil. Para encontrá-lo, somente sujando nossas botas, nossas roupas e nos sujeitando a desarrumar os nossos penteados ao passarmos por debaixo de fios e tapumes. Neste momento, e sem pressa de sairmos desta construção, talvez a gente o encontre. E a partir desta hora, o Templo fará todo o sentido para nós. Enxergaremos o real valor dele e ganharemos talvez o segundo grande presente da vida: o merecimento, real, de estarmos lá.

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