O título deste texto poderia
conter um ponto de interrogação, e assim, ele se tornaria uma pergunta. Mas
colocar um ponto de interrogação significa que um questionamento nos está sendo
feito. Evidencia que a vida nos colocou num lugar de devedor de uma resposta. Ou a gente mesmo se colocou neste
lugar. Tanto faz. O fato é que o ponto de interrogação descortina uma
pendência, algo a ser feito: uma resposta precisa ser dada.
Perguntas são sempre imprescindíveis
e necessárias para compreendermos a vida. Mas penso que a reflexão antecede a
pergunta. E por vir antes, se torna muito mais incômoda do que qualquer
pergunta. Reflexões exigem ausência de pontos de interrogação. Sem perguntas
para que o convite à reflexão possa ser visto.
Uma pergunta, por mais
constrangedora e invasiva que seja, é sempre um lugar que nos permite questões,
dúvidas, defesas e provarmos, se for o caso, que o que dizem não é verdadeiro. O
lugar da pergunta nos permite um certo tráfego, um caminhar, um construir. De
repente, estamos sendo questionados sobre algo cujo conteúdo desconhecemos ou
não nos pertence. Algo sobre o qual não seja verdadeiro. Quem disse que temos arestas, por exemplo? O lugar da pergunta é o
trajeto da montagem, do empilhamento de materiais da nossa própria obra.
Podemos mudar coisas de lugar, errar, falhar, esquecer, perguntar. E até descobrir que temos arestas, por que
não?
O tempo da interrogação é um tempo sem pressa. Temos direito a ele. É o
lugar que ocupamos quando aceitamos a nossa condição de aprendizes. Desconfio
que deveríamos passar mais tempo neste lugar, mas outros lugares reclamam,
também, a nossa presença.
E um destes lugares é o da
reflexão. Um lugar atemporal, necessário e um dos grandes presentes da vida,
mas que insistimos em deixá-lo fechado porque o embrulho está muito bonito para
ser desfeito.
Apenas chegamos a uma pergunta
porque fizemos uma reflexão anterior. Antes de qualquer questionamento que
tenhamos feito na vida, certamente uma reflexão, mesmo sem ter sido percebida,
foi feita por nós. Não há como questionar algo sem um pensar inicial.
A reflexão sobre é o condutor para a pergunta. Nossas perguntas são o
resultado das nossas reflexões. Só
caminhamos porque estamos mergulhados neste ciclo: reflexões e perguntas.
Este ciclo se alimenta da nossa
vivência, das nossas experiências, do que escolhemos e deixamos de escolher e,
acima de tudo, da dinâmica de vida que optamos e criamos.
Reflexões que nos induzem a
perguntas. Perguntas que nos induzem à mudança. Mudanças que nos induzem ao
crescimento. Crescimento que nos induzem à retomada do nosso lugar.
Um viver de muito trabalho. Um
trabalho imenso para se viver. Um caminho de asfalto refeito, de árvores
plantadas e com pássaros nos galhos. Um céu que brilha sem nuvens, grama fofa e
úmida, um cheiro bom de mato. Um caminho de buracos, de rotas tortuosas,
visibilidade ruim e de sinalização precária. Um caminhar de exigências leves e
pesadas, mas que as ferramentas todas nos foram dadas. Um viver que nos exige
coragem para ouvir as nossas perguntas e as que nos são feitas pela vida, esta
mesma vida dos pássaros que cantam e a das rotas tortuosas.
Até agora falei sobre a reflexão
como uma ferramenta de indução à pergunta. Este é um dos aspectos da reflexão:
nos provocar e nos incomodar a cerca de nossas certezas. Há, no entanto, um
outro aspecto das reflexões que é quando elas se bastam. Ou seja, não nos
encaminham para perguntas. Elas são tão completas e exaustivamente respondidas
pela vida, que não há a necessidade de perguntas. E se mesmo assim as fazemos,
será porque queremos insistir na desistência de crescermos e de que, com isso, não
assumirmos as responsabilidades que nos cabem.
Estas reflexões, por serem
desprovidas de pontos de interrogação, escancaram, para nós, certezas e
afirmativas que, por meio de esforços cansativos e precários, tentamos
esconder. Elas nos mostram caminhos claros e extremamente bem sinalizados. Mas
que teimamos fazer de conta que não percebemos. Estas reflexões não necessitam
de perguntas. São óbvias. Talvez por isso elas sejam colocadas de lado. Como
não há espaço para perguntas, o que fazer com elas? Porém, a insistência na não
observância do óbvio nos traz dores que nos conduzem aos vícios. Não apenas o
vício material, mas o moral, que é o pior de todos.
Quando estamos viciados, nos
desviamos do objetivo que é o da reflexão, que é o de ouvir o que a vida está
nos dizendo. E viciados, nos deformamos. Saímos da nossa forma, daquilo que
poderíamos ser se não fosse a nossa insistência no contrário, no ausente, na
surdez. E aí deformados, sentiremos dores que nos farão querer sair daquele
estado que a gente mesmo se colocou. Sem vitimização. Sem culpar o outro.
O objetivo das dores é, exclusivamente, o da nossa reabilitação. Mas se
conseguíssemos aceitar as reflexões que se bastam, fazer as reflexões que nos
levam às perguntas e caminhar com atenção pela estrada, seja ela com pedras ou
não, talvez as dores desistissem da gente, ou se transformariam em companheiras
mais prazerosas. Mas é claro que a gente chega lá. O amanhã é um lugar que pode
ser hoje. Para isso, é preciso o nosso arregaçar de mangas. De mangas erguidas,
a caminhada fica mais fácil.
O caminho percorrido por nós é
sempre uma escolha que passa por nós.
Há os dedos dos outros. Mas a mão que pesa mais sobre o caminho é sempre a
nossa. Quando aceitarmos isso, talvez nossa jornada se torne mais leve e com
tempo para observarmos os pássaros que vão nas árvores. Estão todos lá. Eles
nos enxergam. Mas poucos de nós os veem.
Nas reflexões que nos induzem às
perguntas, um momento de construção, de não saber. Um espaço de criação de
dúvidas, de remodelagens. Nas reflexões que se bastam, o não saber perde força.
Aqui, as reflexões estão seguras de si e qualquer pergunta seria um excesso. E
lidar com excessos é sempre perigoso.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um pequeno diálogo entre Michelangelo e uma pessoa, do
livro Maktub, de Paulo Coelho:
- Michelangelo, como você faz
para criar obras tão magníficas?
- É muito simples, respondeu
Michelangelo. Quando olho um bloco de mármore, vejo a escultura pronta dentro.
Tudo o que tenho de fazer é retirar as
arestas.
Genialidade à parte do pintor
italiano, que tantas obras maravilhosas realizou, enxergar a obra pronta dentro
de um bloco de mármore é tarefa para poucos. Infelizmente, para a maioria de
nós, a obra pronta está invisível devido às arestas que tornamos cada vez mais
visíveis.
Nossas arestas são uma simbologia
das reflexões que se bastam. Nossas arestas não deixam dúvidas, não nos induzem
a perguntas. Elas existem e nos preenchem. Mas que nossos olhos, muitas vezes,
medrosos, viciados e teimosos não percebem. Se elas nos induzissem a perguntas
seria mais fácil, porque das perguntas não podemos fugir. São visíveis e
percebidas com facilidade. No entanto, as reflexões que se bastam são irônicas,
autossuficientes, independentes. Não nos fazem perguntas. Pelo contrário: nos
trazem espelhos ao invés de perguntas.
A autossuficiência das nossas arestas
nos mostra que há muito o que fazer, há muito o que descortinar em nós. Nossas
demandas são muitas. É preciso foco para darmos conta de tudo. As arestas nos
dão as informações que precisamos para nos tornarmos mais. Sem estas
informações, perderíamos as nossas capacidades de discernimento. É preciso
transparência para lidarmos com as nossas arestas e humildade para
reconhecê-las, assim como fez Michelangelo. Somente um gênio, como ele, para
reconhecer que há uma obra pronta, no caso, a gente mesmo, mas que, antes
disto, muito trabalho há que ser feito, como o principal que é aparar todas as
arestas.
Arestas: uma reflexão que se
basta. Não necessita de explicações. Não faz perguntas. Mas apenas a sua
simples existência a torna tão complexa. Se “conseguirmos desbastar as nossas
paredes brutas para que uma grande obra seja libertada”, como disse
Michelangelo, teremos conseguido ser a melhor construção de nós mesmos. E isso
apenas aparando as nossas arestas. Sem perguntas. Elas não serão necessárias
aqui.
Arestas: uma reflexão que se
basta. Quando decidirmos desbastá-las, nos redescobriremos na nossa própria
companhia. Agora uma companhia mais leve, com tempo para apreciarmos os
pássaros nas árvores, além da bela obra que teremos construído: nós mesmos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário