domingo, 28 de abril de 2019

Assim nasce um preconceito

O conceito de que uma coisa é boa ou má existe como resultado da nossa interação (ou falta dela) com estas mesmas coisas. É a nossa atuação, relação, interpretação e convívio com algo que dá o sentido que as coisas têm. O que caracteriza uma ação como boa ou como má resulta do olhar que concedemos a ela, do sentido misturado aos nossos valores, crenças e cultura.

O bem e o mal são abstrações das nossas vidas. O que confere valor a estas abstrações e o que as identifica são as nossas relações, atribuições e intervenções. O que era bom antigamente, talvez não o seja hoje e vice-versa. A Escravidão foi, numa época, aceito como modelo de uma sociedade, por muitos. A Inquisição foi aceita como forma de punição daqueles que não falavam a língua de Deus. As mulheres, até pouco tempo, não votavam. E isto foi aceito por muitos como “algo normal e sem muito o que fazer sobre”. Ou até mesmo rejeitado por muitos, mas que, na época, não havia muitas ferramentas e mecanismos de oposição. E isto somente reforçou o preconceito ao longo dos tempos. Muitas coisas que hoje enxergamos como mal, em outras épocas foram vistas como normais e fazendo parte de algo cuja aceitação era a única saída, ou sem força para contrapor.

Tudo é fruto de criação. Nada é por acaso. Nada surge. Tudo é sempre resultado de algo.

A nossa História está recheada de bons e de más valores, e o preconceito que, de tanto insistir em existir, não ficou de fora. Tamanha é a resistência dele que, muitas vezes, nem percebemos a presença. Alguns estão muito arraigados que passam por nós como uma brisa leve.

Também eles passaram por evolução: algo que alguém dissesse antigamente talvez não fosse considerado preconceito, diferentemente de hoje. Trechos de músicas como: “Amélia não tinha a menor vaidade, Amélia que era a mulher de verdade...”, “O teu cabelo não nega, mulata...”, “olha a cabeleira do Zezé, será que ele é...”, “antes mal acompanhada do que só...” apenas reforçam estereótipos, machismos, preconceitos e rótulos que, infelizmente, passaram despercebidos e, apenas por meio da nossa própria evolução e desenvolvimento, passamos a questionar e a não mais admitir. Mesmo que os preconceitos não tenham passado despercebidos para todos, não havia, antes, mecanismos e ferramentas de combate como hoje. A consciência ainda não estava desperta como hoje. Mas ainda há muito espaço para melhorar. Ainda há muito o que fazer. E sabemos disto.

Com todo respeito ao saudoso Mario Lago, mas dizer que a mulher de verdade é aquela que não tem vaidade é um pouco demais, não?

Mas como perceber isso antes de o tempo evoluir? Como não permitir mais estas letras antes das feridas e marcas que elas causam e causaram?

À medida que o tempo vai seguindo sua rota, novas formas de vida vão se mostrando para nós. A vista fica mais clara à medida que o tempo avança. Por isso, o tempo transcorrido é primordial para avançarmos na História, na nossa própria história.

Mesmo não sendo intencional, os rótulos machucam, marcam e identificam uma época. Somente os perceberemos e os aboliremos por meio do avanço e da evolução de uma época.

Podemos até ouvir ainda estas músicas, mas agora com um olhar crítico e atento. Isto demonstra que os valores são mutáveis. Que somos vivos como uma sociedade que busca outros degraus para avançar. Ainda estamos lentos nesta caminhada, mas estamos nela. Aquilo que, em algum momento, era apenas uma marchinha inocente de carnaval ou uma música de um ídolo se tornou um chamamento de atenção, também. Um duplo papel: ouvir a canção como fruto da nossa história, arte e memória, mas também como reflexo de uma construção melhor que se busca como um povo que somos.

Estas coisas começaram a chamar a nossa atenção. Hoje conseguimos identificar estas notas tortas sejam nas músicas, nas falas, nas escritas, nos silêncios. Temos um longo caminhar, mas esta percepção que estamos construindo para percebermos estes lugares vazios do preconceito, do racismo, do machismo e de tantos outros retrocessos tem valor intangível.

Uma dupla sertaneja tem uma música chamada “Preto de alma branca”. Por quê? Obviamente, se a dupla fosse perguntada do motivo deste nome, na época, diria que não seria para atacar alguém ou preconceito racista. Isto reflete que somos frutos de uma época que se aceitava este tipo de fala sem questionar. Mas as consciências despertam.

O questionamento se inicia no momento que se sente forte para tal e no momento que se percebe um avanço não autorizado, que já não aceitamos mais.

Como questionar algo que vinha disfarçado de bem? Mudar algo que era consenso? Identificar padrões que rotulavam, numa sociedade de muitos invisíveis? Questionar se o medo ditava as regras? E mesmo que houvesse questionamentos, seria por parte dos pequenos grupos, aqueles que não tinham direito à voz.  Portanto, mesmo alguns pequenos percebendo tal ação racista ou machista, ainda assim, muitas vezes, era mais fácil decidir continuar como se estava.

Construir compromissos com forças que querem nos impulsionar para frente, para o avanço, custa muito caro. É mais fácil viver na escuridão e deixar de pensar a criar laços com o questionamento, com o pensar. Por isso, muitas coisas se perpetuaram e se perpetuam.

Todos esses temas ainda existem com força. Mas foram piores. É preciso reconhecer que avançamos. Podemos até acreditar que hoje as coisas estão piores e mais difíceis, mas é que aqueles que vão às margens estão avançando e propondo as discussões. E isso causa a sensação de que pioramos. Mas não. Os que marginalizaram, os que criaram rótulos e os racistas estão sendo convocados para a conversa. O que presenciamos é o tempo decorrido trazendo os seus ganhos e benefícios como consciência, reeducação, renomeação de paradigmas e releituras de preconceitos, estereótipos, racismos etc.

A caminho do metrô, atrás de mim, um pai diz a filha:

“Que história é essa de pedir doce para o seu avô? Em plena quinta-feira? É dia de semana. Quer ficar gorda, quer? Quer ficar feia? Olha a sua mãe como está gorda. Ela está fazendo regime. Você precisa ajudar a mamãe.”

Paulo Freire dizia que todo professor, se não for capaz de lidar com a incompletude do outro, deveria abrir mão de seu trabalho. Estendo esta provocação a todos nós, àquele pai. Somos todos professores de alguma forma, considerando que o verdadeiro professor é aquele que, de posse da informação, do conhecimento, o amplia para facilitar a vida do aluno e, mais que isso, despertá-lo para o saber, para o saber que importa. E aquele pai, reforçando o estereótipo de que todo gordo é feio não cumpriu o seu papel de bom professor, que deveria ser. Acredito que muitos são pais e mães para darem uma satisfação para a sociedade. Mas de longe os são por vocação e missão.

Aquela menininha, dos seus cinco anos, no máximo, olhava para cima a procura dos olhos do pai, daquele que deveria ser a referência dela. Ela nada respondeu, apenas ficou atentamente olhando para ele e depois baixou sua cabeça, em direção aos próprios pés. Pés estes que torcemos para que a levem para lugares mais leves e para caminhos mais estreitos, que dificultem a entrada dos preconceitos e rótulos.

Precisamos buscar outras formas de educação e de interação. Há tempos, o mundo saiu do processo de participação (aonde você chegava para participar, mas a regra estava pronta) para o mundo da interação (aonde você ajuda a construir porque faz parte). Precisamos sair da inércia do armazenador de preconceitos e estereótipos, para sermos bons processadores daquilo que nos for transmitido. Somente assim passaremos a questionar e a fazermos companhia para as vozes dos marginalizados. Aquela menina, se nada for feito, apenas armazenará mais uma experiência cruel acerca do preconceito, do racismo etc.

Assim nasce um preconceito. Se dermos sorte, talvez a índole daquela menina não se deixe influenciar, e ela se transforme numa cidadã adulta com um olhar bem filtrado para o que não for bom. Mas retomo a minha fala inicial: o bom e o ruim apenas existem como tais após a nossa interpretação, após a nossa interação e convivência para poder nomeá-los. É muito difícil a construção de um preconceito, como esta que foi feita, ser desconstruída depois. A chance de insucesso é expressiva. Se assim não fosse, os nossos números sobre este assunto não se justificariam.

Somente o vivido e o experimentado são incorporados. E aquela menina viveu uma experiência que reforçou que o preconceito é bem-vindo. Aquele pai, por meio do não saber dele, associou a gordura à feiura. Reforçou um modelo que se autorizou na nossa sociedade: ser gordo é sinal de feiura, fraqueza e falta de força de vontade, o que, de longe, procede.

Novas vistas. Novos pensamentos. Novas perguntas. Isto é preciso. Caso contrário, a alienação será a nossa principal companheira. E aquela menininha, de idade tão imprecisa, acabava de receber, de seu pai, um convite para esta alienação. Pobre menina.

Paulo Freire ainda reforça dizendo que precisamos educar e não domesticar. Que possamos enxergar os entraves em nós para que o nosso senso domesticador não avance no próximo.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de William James, filósofo e psicólogo americano, século XIX, que diz:

“Muitas pessoas acreditam que estão pensando quando, na verdade, estão rearrumando os seus preconceitos.”

Somos estas pessoas que reorganizam e rearrumam os próprios preconceitos, representados por aquele pai. Por meio do aprendizado, avançamos. A ausência dele, as mesmas limitações e pedras para carregarmos. É preciso questionarmos e ocuparmos os espaços vazios desta conversa importante. E, acima de tudo, rejeitarmos os rótulos daqueles que reduzem estes temas ao supérfluo, ao simples, ao irrelevante. Daqueles que insistem e se esforçam na permanência do preconceito, do racismo, do machismo e de tudo aquilo que nos reduz e nos traduz ao tamanho que temos merecido.

Pessoas que tentam rejeitar o comum, o pisado e aquele tom de que “isso é normal” sofrem mais nos caminhos que trilham. Mas são pessoas mais livres, privilegiadas e lúcidas por poderem desfrutar de vistas mais belas, altas e sólidas. São os rejeitadores de etiquetas: pessoas que voam e vão além. Um voo que sempre existiu e que poucos o conhecem. Mas está à espera de ser aprendido por todos aqueles que tenham a disposição de querer descobri-lo e, o melhor, de aprendê-lo.

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