É comum alguns nomes próprios,
existentes na Língua, sofrerem alterações e abreviações: Cristina se torna
Cris, Maria Aparecida se torna Cida, Antônio se torna Toninho, Rogério se torna
Roger, Fabiana se torna Fabi, Eliane se torna Eli, Ricardo se torna Caco, Maria
Emília se torna Mila e assim por diante.
Alguém algum dia disse: “nossa,
às vezes, me esqueço do meu verdadeiro nome.” Apelidos e abreviaturas de nomes criam
marcas, referências e identidades. Mesmo que as pessoas não gostem dos apelidos
e abreviaturas dos próprios nomes que recebem, não os aceitar é o caminho mais
rápido e fácil de eles se instalarem. Apelidos “pegam” e grudam. São impostos
pelos outros e por uma força do externo. Não há como fugir.
No entanto, alguns nomes, menos sortudos, ganham, além de
abreviações e alterações, um presente a mais: o de grego. Manoel, por exemplo,
se torna Mané, querendo ou não. São nomes cujas abreviaturas vão além da marca
e da identidade: criam desserviços como os estereótipos, rótulos e identificam,
pejorativamente, uma pessoa. É o caso do Mané.
Aqueles que se chamam Manoel ou Manoel Carlos sabem disso.
A ingênua abreviatura de Manoel
ou Manoel Carlos há muito deixou de ser apenas um apelido: se tornou o
estereótipo do bobo, daquele que nada sabe, do que faz trapalhadas. Os Manés são, portanto, tanto os que se
chamam Manoel ou Manoel Carlos, como aqueles que receberam este apelido de uma
sociedade que os considera ora bobalhão e tolo, ora arrogante, o falso, aquele
que se considera melhor e superior aos outros.
O apelido Mané, que deveria ser algo natural como Cris de Cristina, se
tornou um termo pejorativo criado por aqueles que fazem da pobreza, a realidade
da língua que usam. Só aquele que carrega a escassez no vocabulário poderia
criar este estereótipo. No caso: a gente mesmo.
Outro dia, num curso, uma pessoa
se apresentou a mim e disse:
- Prazer, meu nome é Mila.
- Prazer, o meu é Renata. Mila é
o seu nome, eu disse?
- Ah, sim, Maria Emília, na verdade. Mas o meu apelido é Mila, disse com um sorriso no
rosto.
Ter um apelido como Mila não
carrega o peso do estereótipo como Mané. Por isso, ela sorria. E apesar de o
Manoel e Manoel Carlos não precisarem explicar o significado de mané, como a Mila precisou explicar, não
creio que se sentem orgulhosos do apelido que têm. Podem ter se acostumado, mas
desconfio de que gostem. Os manés injustiçados.
Enquanto isso, os manés
verdadeiros seguem com os seus nomes originais, sem precisarem ouvir: “Oh,
Mané, vem aqui...”. Eles são, mais cedo ou mais tarde, descobertos. Mas enquanto
for possível, ficam escondidos em conversas não realizadas. Confundem-se com os
manés injustiçados e, desta forma, vão se misturando apostando na certeza da
camuflagem. E como eles existem. Há sempre um por perto, incluindo a gente.
Os manés verdadeiros vão se
acomodando na invisibilidade e na transparência das coisas que deveriam ser
vistas, mas não são. São tantos os compromissos que agendamos com o
desnecessário e com o ineficiente, que os manés verdadeiros acabam passando
despercebidos por nós, ora por falta de tempo, ora por pura alienação, mesmo.
Eles vivem às custas dos erros dos outros, e se beneficiam de uma sociedade sem
prioridades verdadeiras, como a nossa. Ainda sofremos devido à incapacidade de
enxergar o que importa. Por isso, eles passeiam ao nosso lado e ainda nos dão
caronas que, gentilmente, aceitamos.
Como são manés verdadeiros, estão
sempre à espreita do escorregar do outro e assim, se agarram à única forma de
crescer que acreditam existir. São sagazes negligentes: uma modalidade que vem
tomando território e se apropriando de terras inabitadas pelo real
proprietário.
Aquele que não cuida do que é dele corre o risco de invasão, mesmo que
ilegal. É preciso lembrar que de ilegalidade também se vive.
Os manés verdadeiros são pessoas
distantes do refinamento e não possuem a capacidade de se comunicar nem com os
próprios vazios. Um tolo que passa despercebido pela vida que se importa. Chegam
tarde e fazem perguntas respondidas. Falam alto porque creditam, na imposição,
uma ferramenta de poder. Recuam de si próprios para invadirem a vida dos
outros. Não se encontram em si porque lá há um deserto em expansão.
Nas entrelinhas, a vida acontece
e dialoga com a gente. Enquanto isso, os manés verdadeiros estão preocupados em
manter o brilho opaco dos palcos que acham que ocupam.
Os manés injustiçados ouvem as
próprias pausas, e enxergam os significados invisíveis que os farão conectar
com o verdadeiro entendimento sobre si e a vida. A mesma que está tentando
falar com os manés verdadeiros.
Um executivo de uma automotiva
multinacional, recém-chegado na área, se senta bem próximo à janela por achar
que merece um lugar de destaque para ver a paisagem. Apoia-se na carteirada
para dar comandos ineficientes sobre um assunto que mal conhece. Apropria-se de
falácias e de verbos dourados de cores desnecessárias para disfarçar o
indisfarçável: a ignorância. Encaminha um e-mail com conclusões equivocadas a
cerca de um assunto e cobra atitudes de quem, ironicamente, já estava fazendo.
Faz uma leitura da situação de forma primária porque está ocupado com a inércia
do próprio ser. Um amador profissional. Relaciona-se com o que não existe.
Manés verdadeiros são assim: além
de ocuparem cadeiras indevidas e colocarem sobre elas o próprio vazio, ainda
insistem em atrapalhar os passos dos que andam. Eles brigam pelo lado da
janela, mas não percebem que são, por meio dos corredores, que a vida passa, se
transforma e se mostra. Enquanto os manés verdadeiros acham que a janela mostra
a melhor paisagem, os manés injustiçados vão a frente perseguindo os corredores
recheados de aprendizados e de avanços oferecidos pela vida.
Manés verdadeiros. Pobres tolos.
Sempre buscam o lugar que cria uma visão limitada e tendenciosa sobre tudo.
Mude de lugar e mude a perspectiva. Os manés injustiçados já sabem disto há
tempos. Por isso, raramente são vistos próximos
à janelinha. Vão sempre ao lado dos corredores e, acima de tudo, nos corredores.
Oscar Wilde, um fundamental poeta e escritor do século XIX, disse:
“Ser natural é a mais difícil das poses.” Os poetas sempre enxergam o que ainda
não nos é evidente. Os manés verdadeiros buscam degraus altos e vivem
interrompendo a verdadeira caminhada. São ávidos por atalhos, a ferramenta dos
desavisados e dos que possuem essência duvidosa. Enxergam no supérfluo, o
principal. São peritos na pose, mas não naquela que Oscar Wilde trouxe, mas na
dispensável. Uma pose natural, como disse o poeta, é do grupo dos manés
injustiçados, algo que os verdadeiros desconhecem. Pobres manés.
Enquanto os manés verdadeiros vão
apegados ao supérfluo, o que importa e o essencial seguem como um rio a frente
deles. Um rio que passa manso e denso, mas que passa. Os corredores não os
interessam.
Na maior parte das vezes, o
supérfluo é ardiloso o suficiente para nos fazer nos esquecer do
imprescindível. É uma pena. Pobres manés que somos todos nós.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um trecho de um conto de Machado de Assis, O Medalhão, que diz:
- “Papai”, disse o filho.
- “Não te ponhas com denguices, vou dizer-te coisas importantes”,
disse o pai. “Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no
parlamento, na magistratura, na imprensa, na indústria, no comércio, nas letras
ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz,
formam apenas a primeira sílaba do nosso destino” ...
“É de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os
outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. É
isto o que te aconselho hoje, dia da tua maioridade”, disse o pai.
“Creia que lhe agradeço. Mas que ofício, não me dirá”? – disse o
filho.
“Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Tu, meu filho,
se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso
deste nobre ofício”.
Machado de Assis, um autor
imprescindível e atemporal. Ele nos traz um possível e provável caminho (porque
há vários) para merecermos o apelido de Mané: nos tornarmos um medalhão, um mané
verdadeiro. Aquele que faz jus a toda a ineficiência e ineficácia que produz,
seja pela fala, pela conduta, pela insensatez e pelo lugar que ocupa na vida. Um
lugar que, de tão frequentado, se funde a ele próprio.
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