quarta-feira, 5 de junho de 2019

O menino somos nós

Sabermos se determinado aprendizado que adquirimos é relevante implica encontrarmos uso prático para ele. O conteúdo que nos representa, que vai em nós e que nos absorve precisa estar indissociável da prática, seja ela coletiva ou individual. O que aprendemos de irrelevante, que foram muitas coisas, certamente, se perdeu na massa da qual todos nós fomos construídos. Está tudo ali, no meio das luzes e das encostas que nos formam. Quem somos surge de quem fomos.

Machado de Assis, na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, no capítulo XI, nos propõe um tema de indigesta reflexão: nós. Quem somos, por causa do menino que, um dia, esteve em nós? Ele nos faz esta pergunta. Hoje, somos pais do homem. O menino da nossa infância, da minha e da sua, hoje é o pai do que nos transformamos: num homem. Com os nossos conteúdos relevantes e irrelevantes, entendidos e subentendidos.

O menino que é pai do homem, título do texto de Machado de Assis, nos traz uma reflexão incômoda a respeito de quem somos por causa de quem fomos. Um convite para avançarmos o pensamento desgastado e cansado de que somos frutos do meio, apenas. Antes disso, nascemos no meio, interagimos nele e com ele, e produzimos a partir dele. Somos os que vivem no meio, os que são o meio e os que, somente, o observam.

O meio nos inicia, nos reverencia, nos violenta, nos embrutece, nos aprisiona, nos cala, nos consente, nos finaliza, nos aposenta, nos marginaliza. O meio nos evidencia para continuarmos a nos curvar, ao mesmo tempo que nos dá visibilidade que, sozinhos, não conseguiríamos. O meio nos torna, mas nos retira de cena talvez no auge da cena. Nunca saberemos. Autorizamos o meio a nos ordenar porque sem ele não existiríamos. Tudo com a nossa anuência, estejamos conscientes ou não.

Quem somos por causa de quem fomos? Respostas individuais. Reflexões particulares. Choros e risadas criam um embate para ganharem a nossa atenção. Mas que o todo sente, age e reage. Somos, hoje, o pai do homem. Este pai que um dia foi um menino. Um menino que cresceu e se tornou o pai do homem.

imagem tirada da internet

O meio: de um lado, uma violência, que de longe é um fenômeno firmado numa decisão individual. Nunca decidimos nos tornar violentos somente por causa da nossa caprichosa vontade. É preciso lembrar que o meio nos abastece do torto, do desrespeitoso, do ausente e do agressor que se utiliza da força física e do verbo para calar vozes e oprimi-las. Aplaudimos o opressor porque confundimos força física com força moral. Porque valorizamos a guerra na mesma proporção que aposentamos o diálogo. Damos os primeiros lugares à mesa àqueles que nos rebaixam e nos relembram da nossa inaptidão para o viver e para o ser.

Firmamos acordos com o meio quando aceitamos ser abastecidos pelo conteúdo que ele nos traz. Um contrato vitalício de vazios, de ausências e de porões, a menos que as cláusulas miúdas possam ser reescritas e revistas.

O meio: de outro lado, uma parceria, cujas mãos dadas deveriam sustentar as nossas frágeis estruturas. Uma parceria cujo conteúdo poderia nos levar adiante, lá aonde não chegamos, mas que já poderíamos estar se não fossem o desatino daqueles que nos aplaudem sem merecermos, as plateias que buscamos para alimentarmos os nossos egos e as traças que existem em nossos caminhos, diariamente iluminadas pelo nosso incentivo assertivo à ignorância. Somos resultado deste meio. Criamos este meio. Somos ele em nós. Somos o que recebemos. E hoje somos porque, um dia, em algum momento, fomos.

O menino que é pai do homem.

Qual espelho nos representa? De quais máscaras, como dizia Fernando Pessoa, nos servimos? Com qual delas sairemos, na rua, hoje?

“Afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclinei-me a atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la por partes, a entendê-la, não seguindo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares”, diz Brás Cubas.

O que nos sustenta é o nosso cotidiano, as nossas interações, reflexões, ausências, acordos, toma-lá-dá-cá e reajustes, conforme o caminhar nas estradas cujos pés nem sempre querem trilhar. Nem sempre seguimos padrões rígidos, mas ao sabor da nossa conveniência, como diz o personagem de Machado de Assis. Por isso, a nossa conivência com o meio está escancarada. Ele atua através de nós porque ele nos representa.

O menino que fomos se tornou o pai de quem somos.

Nossas atuações autorizadas e medidas porque dependem do que ganharemos. Nossas sátiras disfarçadas porque não podemos demonstrá-las, apesar de serem autorizadas por todos. O importante não é o ser, mas o parecer. Então, fingimos que fazemos enquanto os outros fingem que acreditam que fazemos. Nossos risos envergonhados. Nossos resultados camuflados por causa da poeira que nos esquecemos sobre os nossos móveis.

Nossas consequências não são lineares, mas cíclicas.

Somos resultado. Somos uma perspectiva. Somos uma expectativa. Somos erros e acertos. Somos as nossas relevâncias e irrelevâncias. O que se aproveita e o que é descartável. O sólido e o líquido. Somos muitas coisas apenas para alimentarmos o nosso estar, e assim nos disfarçamos e contamos com o palco que nos é dado por aqueles que acreditam e que, também, sobrevivem das luzes que devolvemos para eles. Uma parceria que deu certo.

O menino que é pai do homem. Que homens somos? Que menino fomos? Quem e o quê nos alimentaram? A quem ouvimos? De quais influências falamos? Como interpretamos os nossos viveres até chegarmos aqui? Quais parcerias, por causa dos conteúdos recebidos, fizemos? Que homens seremos depois que o nosso pai estiver saído da condição de menino?

Não somos pesquisadores de nós mesmos. Não aprendemos. Não nos ensinaram. Não nos interessamos em aprender. Nossos conteúdos perdidos. Nossas reservas caladas. Reservar um lugar para avaliar e ouvir as nossas entrelinhas. No entanto, ouvi-las significa abrir mão da permanência no lugar onde se está e fazer das entrelinhas, prioridade. Um lugar interno, mas sem muito espaço em nossas agendas cheias e repletas de compromissos adiáveis. A inutilidade tem o seu valor: nos envaidecer. Enquanto achamos que somos extremamente ocupados, mais lugares vão sendo ocupados dentro da gente com a orfandade. Somos, muitas vezes, órfãos de nós mesmos. Órfãos do nosso olhar e da conversa que poderíamos ter tido.

Enquanto isso, o homem se tornou o filho do menino porque o tempo passou. Mas ainda há tempo: o trabalho de retirada das pedras do caminho é pessoal e intransferível. Alguns já começaram o trabalho. O trem já saiu da estação para alguns. Olhar em perspectiva nos dá amplitude do que poderemos alcançar. Se muitos já saíram da estação é porque existe a possibilidade, mesmo que ainda não tenhamos, nem ao menos, comprado os bilhetes.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Humberto de Campos, jornalista e escritor do século XIX, que diz:

“Cada ave, com as asas estendidas, é um livro de duas folhas aberto no céu. Feio crime é roubar ou destruir essa miúda biblioteca de Deus.”

Somos esta biblioteca de Deus, independentemente da nossa crença, ou não, nele. Somos feitos de conhecimento e de sabedoria, mas também de ignorância e de retrocesso. Somos o resultado aliado às nossas escolhas, interferências, interpretações e preparo. Somos o resultado de quem fomos e de quem temos sido. Um dia crianças, um dia meninos que se tornariam pais dos homens. Nós.

Há tempo.

Que esta biblioteca siga aberta, com suas asas estendidas para que possamos reencontrar o sábio que vai em nós. Em cada um de nós. O sábio vestido de palhaço para disfarçar e não ser derrotado por nós, porque vamos querer nos roubar e nos destruir por meio de negociações. O palhaço, por ser o único lúcido, sabe que não pode negociar com o tempo. O tempo não negocia com ninguém porque ele tem amigos. Quem tem amigos não negocia. Somente negocia aquele que tem coniventes, aquele que destrói a biblioteca. Uma biblioteca fechada não nos impedirá de nos tornarmos homens, mas jamais homens filhos dos meninos felizes que poderíamos ter sido, mas que ainda temos tempo. Homens felizes. Meninos felizes. Mesmo dentro das nossas imperfeições.

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