Sabermos se determinado
aprendizado que adquirimos é relevante implica encontrarmos uso prático para
ele. O conteúdo que nos representa, que vai em nós e que nos absorve precisa
estar indissociável da prática, seja ela coletiva ou individual. O que
aprendemos de irrelevante, que foram muitas coisas, certamente, se
perdeu na massa da qual todos nós fomos construídos. Está tudo ali, no meio das
luzes e das encostas que nos formam. Quem somos surge de quem fomos.
Machado de Assis, na obra
Memórias Póstumas de Brás Cubas, no capítulo XI, nos propõe um tema de
indigesta reflexão: nós. Quem somos, por causa do menino que, um dia, esteve em
nós? Ele nos faz esta pergunta. Hoje, somos pais do homem. O menino da nossa
infância, da minha e da sua, hoje é o pai do que nos transformamos: num homem.
Com os nossos conteúdos relevantes e irrelevantes, entendidos e subentendidos.
O menino que é pai do homem,
título do texto de Machado de Assis, nos traz uma reflexão incômoda a respeito de
quem somos por causa de quem fomos. Um
convite para avançarmos o pensamento desgastado e cansado de que somos frutos do meio, apenas. Antes
disso, nascemos no meio, interagimos nele e com ele, e produzimos a partir
dele. Somos os que vivem no meio, os que são o meio e os que, somente, o
observam.
O meio nos inicia, nos
reverencia, nos violenta, nos embrutece, nos aprisiona, nos cala, nos consente,
nos finaliza, nos aposenta, nos marginaliza. O meio nos evidencia para
continuarmos a nos curvar, ao mesmo tempo que nos dá visibilidade que,
sozinhos, não conseguiríamos. O meio nos torna, mas nos retira de cena talvez
no auge da cena. Nunca saberemos. Autorizamos o meio a nos ordenar porque sem
ele não existiríamos. Tudo com a nossa anuência, estejamos conscientes ou não.
Quem somos por causa de quem fomos? Respostas individuais. Reflexões
particulares. Choros e risadas criam um embate para ganharem a nossa atenção. Mas
que o todo sente, age e reage. Somos, hoje, o pai do homem. Este pai que um dia
foi um menino. Um menino que cresceu e se tornou o pai do homem.
imagem tirada da internet
O meio: de um lado, uma violência, que de longe é um fenômeno
firmado numa decisão individual. Nunca decidimos nos tornar violentos somente
por causa da nossa caprichosa vontade. É preciso lembrar que o meio nos
abastece do torto, do desrespeitoso, do ausente e do agressor que se utiliza da
força física e do verbo para calar vozes e oprimi-las. Aplaudimos o opressor
porque confundimos força física com força moral. Porque valorizamos a guerra na
mesma proporção que aposentamos o diálogo. Damos os primeiros lugares à mesa
àqueles que nos rebaixam e nos relembram da nossa inaptidão para o viver e para
o ser.
Firmamos acordos com o meio
quando aceitamos ser abastecidos pelo conteúdo que ele nos traz. Um contrato
vitalício de vazios, de ausências e de porões, a menos que as cláusulas miúdas
possam ser reescritas e revistas.
O meio: de outro lado, uma parceria, cujas mãos dadas deveriam
sustentar as nossas frágeis estruturas. Uma parceria cujo conteúdo poderia nos
levar adiante, lá aonde não chegamos, mas que já poderíamos estar se não fossem
o desatino daqueles que nos aplaudem sem merecermos, as plateias que buscamos
para alimentarmos os nossos egos e as traças que existem em nossos caminhos, diariamente
iluminadas pelo nosso incentivo assertivo à ignorância. Somos resultado deste
meio. Criamos este meio. Somos ele em nós. Somos o que recebemos. E hoje somos
porque, um dia, em algum momento, fomos.
O menino que é pai do homem.
Qual espelho nos representa? De
quais máscaras, como dizia Fernando Pessoa, nos servimos? Com qual delas
sairemos, na rua, hoje?
“Afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclinei-me a
atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la por partes, a entendê-la, não seguindo
um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares”, diz Brás
Cubas.
O que nos sustenta é o nosso
cotidiano, as nossas interações, reflexões, ausências, acordos, toma-lá-dá-cá e
reajustes, conforme o caminhar nas estradas cujos pés nem sempre querem
trilhar. Nem sempre seguimos padrões rígidos, mas ao sabor da nossa
conveniência, como diz o personagem de Machado de Assis. Por isso, a nossa
conivência com o meio está escancarada. Ele atua através de nós porque ele nos representa.
O menino que fomos se tornou o
pai de quem somos.
Nossas atuações autorizadas e
medidas porque dependem do que ganharemos. Nossas sátiras disfarçadas porque
não podemos demonstrá-las, apesar de serem autorizadas por todos. O importante
não é o ser, mas o parecer. Então, fingimos que fazemos enquanto os outros
fingem que acreditam que fazemos. Nossos risos envergonhados. Nossos resultados
camuflados por causa da poeira que nos esquecemos sobre os nossos móveis.
Nossas consequências não são lineares,
mas cíclicas.
Somos resultado. Somos uma
perspectiva. Somos uma expectativa. Somos erros e acertos. Somos as nossas
relevâncias e irrelevâncias. O que se aproveita e o que é descartável. O sólido
e o líquido. Somos muitas coisas apenas para alimentarmos o nosso estar, e
assim nos disfarçamos e contamos com o palco que nos é dado por aqueles que
acreditam e que, também, sobrevivem das luzes que devolvemos para eles. Uma
parceria que deu certo.
O menino que é pai do homem. Que
homens somos? Que menino fomos? Quem e o quê nos alimentaram? A quem ouvimos?
De quais influências falamos? Como interpretamos os nossos viveres até
chegarmos aqui? Quais parcerias, por causa dos conteúdos recebidos, fizemos? Que
homens seremos depois que o nosso pai estiver saído da condição de menino?
Não somos pesquisadores de nós
mesmos. Não aprendemos. Não nos ensinaram. Não nos interessamos em aprender.
Nossos conteúdos perdidos. Nossas reservas caladas. Reservar um lugar para
avaliar e ouvir as nossas entrelinhas. No entanto, ouvi-las significa abrir mão
da permanência no lugar onde se está e fazer das entrelinhas, prioridade. Um
lugar interno, mas sem muito espaço em nossas agendas cheias e repletas de
compromissos adiáveis. A inutilidade tem o seu valor: nos envaidecer. Enquanto
achamos que somos extremamente ocupados, mais lugares vão sendo ocupados dentro
da gente com a orfandade. Somos, muitas vezes, órfãos de nós mesmos. Órfãos do
nosso olhar e da conversa que poderíamos ter tido.
Enquanto isso, o homem se tornou
o filho do menino porque o tempo passou. Mas ainda há tempo: o trabalho de
retirada das pedras do caminho é pessoal e intransferível. Alguns já começaram
o trabalho. O trem já saiu da estação para alguns. Olhar em perspectiva
nos dá amplitude do que poderemos alcançar. Se muitos já saíram da estação é
porque existe a possibilidade, mesmo que ainda não tenhamos, nem ao menos,
comprado os bilhetes.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um pensamento de Humberto de Campos, jornalista e escritor
do século XIX, que diz:
“Cada ave, com as asas estendidas, é um livro de duas folhas aberto no
céu. Feio crime é roubar ou destruir essa miúda biblioteca de Deus.”
Somos esta biblioteca de Deus, independentemente
da nossa crença, ou não, nele. Somos feitos de conhecimento e de sabedoria, mas
também de ignorância e de retrocesso. Somos o resultado aliado às nossas
escolhas, interferências, interpretações e preparo. Somos o resultado de quem
fomos e de quem temos sido. Um dia crianças, um dia meninos que se tornariam
pais dos homens. Nós.
Há tempo.
Que esta biblioteca siga aberta,
com suas asas estendidas para que possamos reencontrar o sábio que vai em nós.
Em cada um de nós. O sábio vestido de palhaço para disfarçar e não ser
derrotado por nós, porque vamos querer nos roubar e nos destruir por meio de
negociações. O palhaço, por ser o único lúcido, sabe que não pode
negociar com o tempo. O tempo não negocia com ninguém porque ele tem amigos. Quem
tem amigos não negocia. Somente negocia aquele que tem coniventes, aquele que
destrói a biblioteca. Uma biblioteca fechada não nos impedirá de nos tornarmos
homens, mas jamais homens filhos dos meninos felizes que poderíamos ter sido, mas
que ainda temos tempo. Homens felizes. Meninos felizes. Mesmo dentro das
nossas imperfeições.
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