domingo, 23 de junho de 2019

A vaidade nossa de cada um

O artigo definido “a”, no título, significa que não desejo falar sobre uma vaidade genérica, aquela inerente ao humano e que, mesmo que haja um esforço forte de nossa parte, não nos livraremos dela por ser parte de nós. Esta vaidade é conhecidíssima de todos nós. Para quê apresentações? Nascemos com ela. Morreremos com ela. Uns com graus maiores que outros. A realidade é que ela será (e tem sido) a nossa mestra em muitos passos do solo que construímos. Desejo, no entanto, falar sobre a vaidade construída por nós, aquela que nos esforçamos, diariamente, para aprimorá-la. Não sobre a vaidade institucionalizada, mas sobre a minha e a sua, particularmente. A nossa. A vaidade que tem, portanto, endereço certo: nós.

Somos todos parecidos na vaidade. Ela nos reconhece. Ela é minha e de cada um de nós.

A vaidade institucionalizada, aquela que todos sabem que todos têm, não nos afeta tanto. É algo tão abstrato em nós que nem nos damos ao trabalho de compreendê-la. Faz parte do humano e aceitamos isso. É como se uma tinta de normalidade colorisse a vaidade para que ela passasse por nós como velha conhecida, que realmente é. No entanto, a vaidade construída por nós é aquela sabida e percebida. Os outros podem até demorar um pouco para perceberem os efeitos desta vaidade. A gente, não. A percepção é imediata. Sabemos o que estamos fazendo. Sabemos tanto que até disfarçamos a nossa vaidade de humildade ou de modéstia. “Imagina”, dizemos, quando recebemos algum elogio ou consideração sobre algo. No fundo, lá no fundo, bem no fundo, inchamos. E o nosso inchaço diminui o tamanho que poderíamos ter, se houvesse espaços, em nós, para crescimentos reais.

Crescimentos reais nos tornam e nos formam. Inchaços criam edemas e nos deformam. Mário Quintana, o grande poeta, dizia que a modéstia é a vaidade escondida atrás da porta. Sábio. O difícil é querermos arrastar as nossas portas e identificarmos o que há por detrás delas.

O que restaria de nós e em nós, por exemplo, se não fôssemos vaidosos? Difícil dizer.

Sentimos uma vaidade imensa quando aquele que não nos conhece diz que somos humildes. O contraditório em nós. Se realmente fôssemos, não nos envaideceríamos. Apenas nos envaidecemos porque ainda somos incompletos, inconclusos, rasos e queremos, forçosamente, que o olhar do outro nos perceba e nos coloque sobre patamares cujo espaço ainda não merecemos e não nos esforçamos para tal. A vaidade construída, além da natural que temos, é aquela que força uma posição de destaque, mas que procura disfarçar para não dar tanto na vista. É aquela que nos alimenta. É aquela que estabelece uma relação de cumplicidade conosco porque também a alimentamos por meio das nossas incongruências diárias e arrogâncias inofensivas. Que são muitas!

A vaidade construída por nós nos completa, nos preenche e nos traz falas que nos tiram de situações constrangedoras como o silêncio que nos foi imposto pela vida, por exemplo. A vida, tão invasiva como ela sabe ser, nos impõe silêncios ao longo da nossa existência. Cobra-nos respostas, atitudes e construções que há tempos atrasamos a entrega. Nem mesmo os tijolos compramos. É quando a vaidade nos acessa e nos salva por meio de respostas prontas e discursos comprados. Ela ajuda a criar movimentos que confundem a própria vida dando a impressão de que estamos agindo. Mas não estamos. Estamos, apenas, sendo vaidosos e esperando a vida se esquecer da gente e nos deixar em paz com as nossas obras inacabadas, solos inférteis e uma completa ausência de compreensão acerca de nós mesmos.

Do latim vanus, a vaidade significa “vazio, ocioso”. Ou seja, além de sermos vazios e ociosos por natureza, uma vez que a vaidade institucionalizada nos pertence, intensificamos este vazio e esta ociosidade por meio das nossas ausências em nós, por meio das nossas futilidades que nos dizem, a todo o momento, como somos imprescindíveis. Ainda não compreendemos o espaço que nos pertence porque invadimos o do outro. Isto é vaidade. Ainda temos problemas de relacionamento porque o outro está sempre errado, enquanto eu estou sempre certa. Isto é vaidade. Ainda somente nós falamos e o outro somente escuta. Isto é vaidade. Ainda temos sérios problemas com limites porque invadimos o do outro. Isto é vaidade. Ainda entramos em campo sem objetivos porque somos, somente, um número. Isto é vaidade. Ainda falamos apenas para ocuparmos espaços que não nos pertencem, e, consequentemente, retiramos o espaço do outro. Isto é vaidade.

Temos muitas demandas necessárias que precisariam ser reestruturadas. Acredito que isto reorganizaria as nossas verdadeiras bases. Contudo, temos tantas demandas desnecessárias, mas atuantes, que não sobram espaços, em nossas agendas, para este diálogo tão antigo.

A vaidade construída por nós é um solo cuja plantação tem dado os frutos certos como a violência, a competição, a falta de senso. Os frutos que crescem fortes porque foram larga e abundantemente adubados de longas trajetórias coletivas. Há, entretanto, solos à deriva, a espera de mãos que os lavrem com tempo justo, paciência para a construção, rigor e completo desprezo às fórmulas prontas cujas receitas mandamos manipular, baratinho, na farmácia ao lado. Aliás, o que não nos faltam são farmácias. Muitas. Sua presença em excesso nos traz um certo diagnóstico do que nos falta. Medicalizamos a dor para não a sentirmos. Isso também é vaidade. Somos distantes do que poderíamos ser. A teoria distante da prática.

Somos tão conscientes da nossa vaidade que, como dizia Nietzsche, “a vaidade alheia só nos é antipática quando vai de encontro a nossa”. Temos um acordo coletivo: enquanto eu estiver no palco me servindo da minha vaidade, você não sobe. E vice-versa.

Todos fazemos parte da mesma problemática. E a vaidade reforça esta nossa condição. Ela nos afunda e nos torna perdidos em nós mesmos. Não fomos educados para olharmos para estas nossas pequenezas. Nossas miudezas foram escondidas e camufladas. Quando crescemos, percebemos que elas estavam escondidas. Mas estava tudo tão arrumadinho nos porões que não quisemos entrar lá. Somos alérgicos e, afinal, há tantos outros trabalhos mais importantes a serem feitos.

Fomos educados para o destaque, para a briga, para a competição e para buscarmos o nosso lugar ao sol. Vivemos em guerra porque aprendemos, logo cedo, a relevância da luta. Não uma luta genuína da gente com a gente, para nos vencermos. Aprendemos a lutar contra o outro porque ele ocupa lugar demais no mundo. O avançar dele me interrompe e me ameaça. Por isso, aprendemos técnicas e ferramentas para interceptá-lo. A estas técnicas e ferramentas chamamos de protagonismo, proatividade, garra, ironicamente. Tenho dó das palavras que, sem justos advogados, são usadas ao bel prazer dos desavisados e oportunistas.

Protagonismo é ter responsabilidade. Bem distante do que divulgamos como sinônimo de vencer na vida, muitas vezes às custas de interceptar o outro. Proatividade significa pegar para si o que é preciso ser feito. Bem distante, também, do que fazemos atropelando o outro e chegando na frente. Chegamos realmente primeiro ou foi porque o derrubamos lá, atrás? Garra é vencer a si, simples assim. Bem diferente de sinônimo de guerra.

Estudamos tantas fórmulas matemáticas e químicas, tivemos de entender o meridiano de Greenwich, a Trigonometria e memorizar a data na qual chegou, aqui, a família Real, mas nunca estudamos, pelo menos falo por mim, porque somos vaidosos por excelência e, pior, porque conseguimos, pela mesma excelência que nos cerca, ampliarmos a nossa vaidade para a construída, aquela que, conscientemente, fazemos. Ou não? Tivemos de aprender seno e cosseno, tabela periódica e memorizar a fórmula da água (que, de longe, é H2O), mas não nos ensinaram a instalar espelhos internos para enxergarmos, com antecedência, o que a vida nos cobraria. A vida não nos perguntará quem foi Colombo ou quem foi o primeiro presidente do Brasil, apesar de sabermos que o conhecimento e a informação são relevantes, mas há coisas que deveriam ocupar as primeiras cadeiras. Mas ela nos enviará contas a serem pagas sobre os resultados da nossa vaidade, por exemplo. E como não foi matéria que cairia na prova, não estudamos. E agora? Como no poema de Drummond,

“E agora, José?
A festa acabou,
A luz apagou,
O povo sumiu,
A noite esfriou...”

Só que a vida não imita a poesia de Drummond, e, portanto, vamos precisar arregaçar as nossas mangas e irmos ao encontro de nós mesmos. Já não é sem tempo. Quando nos reencontrarmos, nossas vaidades institucionalizada e construída estarão lá, quietinhas, apenas aguardando serem esquecidas. A decisão será nossa. “E agora, José?”

É preciso estarmos inscritos na vida para existirmos. É preciso buscarmos, portanto, as nossas respostas para o nosso “E agora, José?”

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Balzac, escritor francês do século XVIII, que diz:

“Deve-se deixar a vaidade aos que não têm outra coisa para exibir.”

Com respeito a Balzac, acredito impossível deixarmos a vaidade apenas para os outros, uma vez que ela é inerente a nós. Além de sermos humanamente egoístas para não ficarmos com pelo menos um pouquinho da vaidade para nós. No entanto, se aceitarmos o convite dele para, no mínimo, iniciarmos o trabalho, a vaidade começará a apagar as luzes, reduzirá o tom árduo do discurso e ocupará lugares de menos relevância, em nós.

E, finalmente, marcharemos, como disse, Drummond, na sua poesia José. Um José que sou eu, mas que também é você. E o outro também. Ou seja, todos nós.

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