domingo, 28 de julho de 2019

Estou fazendo a minha parte

Fernanda Montenegro diz algo muito curioso: “você não enxerga os alfinetes quando você não os está procurando. A partir do momento que você decide ver alfinetes, começa a prestar atenção em alfinetes ou a procurá-los, muitos deles surgem.”

Na verdade, os alfinetes sempre estiveram lá. Nós é que não os víamos. Quando começamos a dedicar a nossa atenção a determinadas coisas, me parece que elas começam a ser vistas. Uma conclusão óbvia, até sem sentido. No entanto, um óbvio que não foi percebido por nós porque, certamente, estávamos em outro lugar quando os alfinetes cruzaram o nosso caminho. Se eu perguntar a você quantos clipes você encontrou hoje, saberia a resposta? Mas eles estavam lá, no trajeto no qual você caminhou. Apenas não foram vistos por você. Portanto, as coisas passam a ser vistas e percebidas por nós a partir do momento que iniciamos a procura por estas mesmas coisas. Uma procura para compreendê-las, entendê-las ou, até mesmo, para discordar delas.

O essencial é saber interagir e dialogar com o que encontramos no nosso caminho.

“Estou fazendo a minha parte” é uma colocação que tenho ouvido bastante. E aí me lembrei da reflexão da Fernanda Montenegro: será que tenho ouvido muito esta frase porque as pessoas estão, de fato, falando mais isso, ou será que eu não a ouvia quando ela era dita? Será que estas falas começaram a ser ditas agora ou simplesmente eu não prestava atenção ao serem ditas? Difícil responder a esta pergunta. Mas é preciso refletir sobre.

Se agora os alfinetes são vistos por mim, preciso será entender e compreender porque eles possuem eco dentro de mim. Por que eu os busco. Tanto os busco que os encontrei. Talvez se eles não fizessem um cenário, em mim, eu não os teria visto, não os teria buscado.

Se agora localizo os clipes no meu caminho é porque algo eles têm a me dizer que tanto posso gostar ou não. Mas a interação é inevitável. Se assim não fosse, por que passei a percebê-los se eles estavam lá, no mesmo lugar onde sempre estiveram? Enquanto estavam quietos e mansos não me incomodavam. Não me exigiam contato. Agora os percebo e este perceber exige uma fala minha com eles, e vice-versa.

Pensando sobre esta frase que tenho ouvido bastante exatamente porque tenho refletido sobre ela, o primeiro incômodo que me ocorre é quanto à incongruência dessa colocação: como dizer que estamos fazendo a nossa parte se nem ao menos sabemos qual é a nossa parte? E se, hipoteticamente, soubéssemos qual é a nossa parte, como saber se ela está sendo feita? Uma incongruência e incoerência sem precedentes. E o segundo incômodo é quanto à nossa insistência em nos reafirmar como à parte de tudo o que nos acontece. Fazemos. Os outros é que não fazem. Por isso, estamos com problemas de todas as ordens.

Estou fazendo a minha parte.

Esta frase, que tanto tenho ouvido exatamente porque há muito tenho pensado sobre ela, me fez refletir. E o mais importante de uma reflexão é a lentidão de que ela necessita para agir.

Uma reflexão precisa ser lenta, morosa e com uma dinâmica bem distinta da nossa, cuja rapidez, velocidade e ausência do pensar a identificam. Na lentidão, uma das características da reflexão, as falhas aparecem e somos obrigados a parar e a mergulhar se quisermos saber. A reflexão é fundamental se quisermos compreender porque os alfinetes e clipes surgem no nosso caminho e compreender porque, hoje, passei a enxergá-los. Sem esta reflexão, dificilmente subiremos os nossos degraus.

Refletir é o caminho para sermos artesãos de nós mesmos. Uma construção manual, porém, sólida.

Na rapidez, uma das características da nossa insensatez, as falhas são escondidas. Passam despercebidas. Nossas aparências, aqui, são muito mais importantes e tomam o espaço que, antes, mostrava os erros e as falhas. Como eles pouco nos interessam, foram obrigados a cederem os seus espaços para outros visitantes.

Ter pressa é o caminho mais rápido para a irrelevância. Apressar uma construção é começar a destruí-la. Ser rápido sem critério e sem sentido nos fará, talvez, realizar o nosso sonho. Mas de tão rápida que foi esta construção, não será possível mais reconhecer o nosso sonho após realizado. Triste será realizar um sonho sem poder reconhecê-lo, parafraseando Dostoyevski. Na rapidez, um caminho apressado que nos privará do que poderíamos ter sido.

Nossos bastidores nos revelam, mas também ajudam a esconder. Reflexão e rapidez: dois caminhos. Duas possibilidades. Duas hipóteses. Para trilhá-los, somente fazendo escolhas. Somente nos responsabilizando pelos alfinetes que escolhemos ver e também pelos clipes que escolhemos não ver, não dedicar atenção.

A cada descoberta que fazemos na vida, os nossos desdobramentos vão se mostrando.  Descobrimos os silêncios que vão escritos e cheios de significados, em nós. Nossas gavetas e nossos recreios nos sustentam. Nossas gavetas entulhadas de reflexões. Nossos recreios repletos de pressa.

O abrir de portas ao autoconhecimento é fundamental se quisermos nos tornar pessoas melhores em todos os sentidos. Aceitar este convite para este caminho sem volta, onde louros e dificuldades nos aguardarão logo ali, atrás da porta, com risos e indigestões.

Estou fazendo a minha parte.

A abundância precisa ser um valor. Uma abundância do pensar, do agir e do refletir. Caso contrário, a tendência será o desperdício que é refletido pela nossa insuficiência moral.

Estou fazendo a minha parte reflete enorme ênfase no curto prazo que nos lembra sermos uma sequência de rupturas e de contradições, o que dificulta a construção clara de qual é o nosso projeto. Qual é o nosso todo? Não sabemos. Não sabemos porque não nos olhamos mais. Somos segmentados na nossa construção. Fomos educados para um olhar pontual e não global. E isto nos impede de enxergarmos o que vai no nosso caminho mesmo que seja para desconstruí-lo.

Estou fazendo a minha parte reflete uma dor que vai em nós. Uma dor não ouvida, não sentida em sua plenitude. E é preciso tempo de ter tempo para as nossas dores. Caso contrário, sempre estaremos encostando a nossa escada na parede errada e achando, com isso, que estamos fazendo a nossa parte. Se respirarmos a nossa própria presença e aquilo que vai dentro da gente, nossas propostas abertas encontrarão as respostas.

O mundo pede outros papéis. Os vigentes já deram a sua contribuição. Eles, sim, já fizeram a parte deles. É preciso pensar na falta de existência que estamos exercendo na vida. Existir não é passar pela vida. É vivê-la. Uma conversa franca com a gente e com a vida. Precisamos aprender a ficar o máximo no agora que é aonde o tempo tem sua existência em horas. A nossa conversa deve ser aqui para que a gente aprenda a acessar os nossos silêncios e, a partir disso, provocar as nossas atitudes.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Confúcio, Filósofo Chinês que viveu 500 a.c., que diz:

“Não procuro saber as respostas, mas compreender as perguntas”.

Quanta sabedoria dita há tanto tempo e com valor vigente e atemporal. Quando buscamos respostas, nos cerceamos. Quando compreendemos as perguntas que a vida nos faz, ampliamos a nossa percepção sobre nós e sobre tudo o que nos cerca. E por isso, passamos a perceber mais os alfinetes, os clipes, frases como estou fazendo a minha parte e outros adereços relevantes presentes em nossos caminhos e estradas, como um convite da vida para, de posse deste repertório, sermos os autores das nossas perguntas, e não mais o público.

Neste dia, teremos atingido, finalmente, o patamar da alta-costura em nós mesmos.

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