Clarice Lispector, na obra “A
Hora da Estrela”, nos provoca dizendo:
“quero antes afiançar que essa
moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice
de se perguntar ‘quem sou eu’ cairia estatelada e em cheio, no chão. É que
‘quem sou eu?’ provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se
indaga é incompleto.”
Uma das características da obra
de Clarice é a ironia. Uma ironia que incomoda e constrange por ser verdadeira.
Essa moça, a quem Clarice se refere, é a protagonista do livro, mas poderia
ser qualquer um de nós. Macabeia, a personagem, nos oferece inúmeras chances de
discutirmos o que vai em nós e, principalmente, o que deveria ir em nós. Uma
destas chances que a personagem nos oferece, por exemplo, é a ausência de
perguntas. A personagem faz poucas perguntas. Poucas porque não possui acesso a
mais perguntas. Não sabe o que perguntar, para quem e para quê perguntar. Por
isso, o morno e o despercebido são estados desta personagem que ia se
conhecendo por causa “do seu viver à toa”. Ela era quase uma estrangeria na
própria terra.
Fazer perguntas cria
necessidades, diz Clarice. No caso da personagem, ela não sabia o que
perguntar e nem para quê. Uma inocência perdoada. Uma ignorância respaldada na
própria ausência de vida na qual vivia Macabeia. A personagem está perdoada. Assumia-se
como uma pessoa inapropriada. E quando se assume isso, não há perguntas,
realmente, a serem feitas.
Mas e quanto a nós? Não
estamos no livro de Clarice, não somos Macabeia. Mas por que, então, não
fazemos perguntas? Não me refiro às perguntas que fazemos aos outros, porque
estas fazemos. Mas por que não fazemos perguntas para nós?
Perguntar significa
assumir que há perguntas a serem feitas. Ocupar um lugar de aprendiz.
Perguntar
significa assumir que não tem a resposta. Reencontrar-se com a própria incompletude.
Perguntar
significa dizer que não sabe. Correr riscos de ser exposto.
Perguntar
significa não receber. Aceitar as imagens tortas do espelho e escancarar as próprias
necessidades.
Quando não perguntamos, assumimos
a nossa falência anunciada. Ocupamos um lugar de santidade que não temos. Sentamos
num lugar de sanidade que ainda não conquistamos. Quando não
perguntamos, assumimos o nosso descaso para com a dúvida. A certeza
embrutece. A certeza absoluta encerra e finaliza os nossos passos e o nosso
diálogo com a vida. Uma certa conivência com aquele que nos vende
soluções prontas para algo que nem inventado foi. Humildade, realmente, é algo
cujo conceito desconhecemos. O humilde começa no a partir, no início.
Mas como reconhecer que há a partir e inícios se conhecemos todos os finais? Pobre
que somos!
A dúvida ajuda a levantar os
nossos pés do chão. A ausência de perguntas nos reduz. Acharmos que fugir
das perguntas nos isentará da necessidade é o auge da arrogância. Ingenuidade
nossa acharmos que a vida daria tantas pistas fáceis, assim. A vida não teria
esta linearidade escancarada. Ela possui inteligência. Chegou antes da gente.
Bem antes.
Qual tem sido a nossa escolha?
Um olhar por cima, sem encostar
por medo de contaminação: este é o olhar de quem não faz perguntas porque não
quer e não tem dúvidas. Daquele que não tem necessidades. Uma ironia, pois, o
que mais temos são perguntas, dúvidas e necessidades. Mas onde elas estão?
Assumir nossas perguntas, dúvidas
e, consequentemente, criar necessidades é sinônimo de uma convivência que nos
obrigará a ouvir o hóspede que vai em nós. Um hóspede estrangeiro, intruso, mas
que vai se acomodando até saber todas as regras e dinâmicas da nossa casa.
Um olhar manso, discreto e
próximo: este é o olhar daquele que tem dúvidas. Daquele que pergunta. Uma
verdade, mas uma verdade envergonhada que se envergonha de se mostrar.
Quando perguntamos dizemos,
automaticamente, que não sabemos. Mas quando não perguntamos, dizemos que o
mundo é pequeno demais para nós. Nossa antiga e arraigada mania de grandeza nos
conduzindo às margens, da vida.
Onde estão os doentes? Somos
todos Santos e Sãos. Onde estão os doentes? Há tempos não temos notícias deles.
Os Santos das redes sociais, os Sãos do dia a dia. Onde estão todos? Nossas
arestas estão à mostra, mas as escondemos sob nossos tecidos puídos. A
Macabeia, de Clarice, tinha um álibi: a ausência de vida dentro dela. Mas e
sobre nós? De onde vem a nossa indiferença pela pergunta? Clarice já nos
respondeu: ela cria necessidades. E todo aquele que pergunta é um incompleto. Para
quê perguntar, então? Não quero que me vejam assim, “cheio de necessidades,
ridículo, absurdo, enrolado e com os meus pés, publicamente, nos tapetes das
etiquetas”, como nos disse Fernando Pessoa, no Poema em Linha Reta.
Quanto mais perguntas fazemos,
mais necessidades vamos encontrando em nós. Somos incompletos porque
perguntamos. Mas quem faz perguntas, ainda hoje, além de Clarice e de Fernando
Pessoa? Escritores melancólicos, depressivos e ultrapassados, disse, certa vez,
alguém. Triste que somos. Temos a pequenez de reduzir a obra alheia quando, por
limitação nossa, não a compreendemos. Um clássico da arrogância humana. Mas
Clarice e Pessoa estão ocupados demais fazendo perguntas, sem tempo de se
ocuparem com estes miúdos.
Os nossos contornos nos
constroem, e os nossos avessos, muitas vezes, não podem ser vistos, mas
existem. É preciso revisitar as nossas construções e reinterpretá-las. Este
exercício talvez seja uma de nossas garantias de nos reencontrarmos. Vestimos
máscaras de santos e de sãos. E, hoje, com o palco aberto pelas redes sociais,
o que não faltam são convites explícitos para o visitarmos e mostrarmos toda a
nossa santidade e sanidade. Pobre que somos!
Onde estão os doentes?
Ainda no Poema em linha reta, Fernando
Pessoa, continua:
“Nunca conheci quem tivesse
levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo...toda a
gente que fala comigo nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho...quem
me dera ouvir de alguém a voz humana que confessasse uma infâmia...não, são
todos o Ideal...Arre, estou farto de semideuses...”
Somos os deuses das redes
sociais. Somos os semideuses de Pessoa. Somos os que dão certo em tudo, os sãos
que tudo sabem. Os Santos que nada fizeram de mal. Os Santos isentos. Somos vidas
perfeitas porque somos perfeitos. Nunca lemos uma bula porque não precisamos.
Por que o nosso arco-íris tem
cores a mais do que o da natureza? Por que queremos dar uma aparência de
virtude para tudo o que fazemos? Perguntas criam necessidades, disse Clarice.
Sábia. Macabeia não fez perguntas. Mas ela tinha álibis, já disse. E a gente? Acho
que a chuva nos pegou de surpresa. Estamos buscando abrigos. E as redes sociais
são uma forma de abrigo para escondermos as nossas necessidades, as reais.
Mas e na hora em que a chuva passar?
Nossas redes sociais são um palco
de virtudes que envergonharia qualquer peça perfeita encenada na Broadway.
Não há perguntas nestas redes, neste palco. Somente demonstrações perfeitas
porque somos os Sãos e os Santos. Somos os Santos das Redes. Somos os Sãos da
Vida. Os doentes vagam. Escondidos. Onde estão os doentes?
Somos extremados. É preciso
desconfiar, portanto, de nós. Uma pena. Cegos que somos. Publicamos vitórias e
conquistas. Saímos dos nossos empregos sempre com a mesma desculpa esfarrapada
de “busca por outros desafios” e nunca porque estávamos infelizes, tristes ou
porque fomos demitidos, mesmo. Sempre aquela nossa viagem à Europa foi um
sucesso, sempre luzes, nunca nos lembramos de que parcelamos esta mesma viagem
em 24 vezes, no cartão, porque nossa realidade, talvez, não permitisse esta
viagem. Mas como não fazemos perguntas, as necessidades crescem sobre e sob
nós. “Arrastamos cadáveres e acordamos fantasmas”, disse o escritor. Outro
sábio que faz perguntas.
Não perguntamos porque achamos
que isto evita o contato com o sofrimento, com a nossa necessidade. Mas isto
não é verdade. Necessidade é uma realidade, em nós. Não podemos pará-la. A
nossa marca deveria ser a pergunta, não a fuga dela. As certezas absolutas nos
farão desaparecer. As dúvidas nos trarão de volta. É preciso nos desarmar da
obrigação de santidade e de sanidade que criamos. Aonde estão os doentes?
Criamos movimentos
desnecessários, mas não criamos os necessários. Damos palpite sobre tudo, o ‘eu
acho’ viralizou e a dúvida é coisa do passado. Somos os Santos das
Redes, os Sãos que estão no palco. O lugar aonde mais combina conosco. Aonde
estão os doentes?
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um pensamento ácido de Montaigne, escritor francês
do século XVI, que diz:
“no mais alto trono do mundo, o
homem senta-se com o traseiro.”
Uma sátira dos que se intitulam
Sãos e Santos, ou seja, nós. O nosso palco, as redes, são uma espécie de
trono que criamos para nos dizer Deuses e Santos e perfeitos e de vidas
perfeitas. Cansativos que somos. Um trono inexistente, irreal e que reflete o
nosso ressentimento por não sermos, assim, tão perfeitos. O trono é irreal, mas
parece que só a gente não vê. No entanto, a forma como estamos sentados, esta
sim, é real. Bem real. Uma pena que abrimos mão de perguntas para descobrirmos
isso. Mas perguntas criam necessidades, disse Clarice, e quem se indaga é um
incompleto. Grande Clarice. Ela, pelo menos, reconhece o ser incompleto que era
porque não estava nos palcos falsos da vida, mas na vida, em si. Grande
Clarice. Sua aridez e lucidez fazem falta. Muita falta.
Acho que somos todos bem-vindos,
nesta vida, inclusive nas redes sociais. Mas apenas se for habitada por humanos
reais, e não estereotipados. Que a nossa devoção não seja para o irreal, mas
para o real que vai, em nós: nossas dores, tristezas, angústias, alegrias e
conquistas. Não somos Santos. Não somos Sãos. Somos, apenas, humanos. E se
assim formos, desconfio que abandonaremos o peso dos cadáveres, como
disse o escritor, e os nossos fantasmas acordarão não para nos assustar, mas
para nos cumprimentar e nos agradecer porque, finalmente, eles estarão livres.
Livres de nós. Porque, até eles, fazem perguntas.
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