domingo, 24 de novembro de 2019

Os Deuses vendem quando dão

No livro Discurso da Servidão Voluntária, do escritor francês do século XVI, Étienne de La Boétie, há uma passagem indigesta que diz:

“o teatro, os jogos, as farsas, os espetáculos, os gladiadores, os animais ferozes, as medalhas, os quadros e outras drogas semelhantes eram para os povos antigos a isca de servidão, o preço de sua liberdade, os instrumentos da tirania. Os tiranos antigos empregavam esses meios, essas práticas, esses atrativos para entorpecer seus súditos sob o jugo. Assim os povos, embrutecidos, achando belos esses passatempos, entretidos por um prazer vão que passava rapidamente diante de seus olhos, acostumavam-se a servir tão ingenuamente, e até pior, quanto as criancinhas que aprendem a ler vendo as imagens brilhantes dos livros coloridos.”

Ainda mais a frente, no livro, Étienne de La Boétie, continua:

“os tiranos distribuíam em profusão um quarto de trigo, uma medida de vinho e uma moeda de menor valor, e então dava dó ouvir gritar: ‘Viva o Rei!’ Os imbecis não percebiam que recuperavam apenas parte do que era seu, e que mesmo a parte que recuperavam, o tirano não poderia dar-lhes se, antes, não a tivesse tirado deles mesmos. Não penseis que um pássaro caia mais facilmente no laço ou um peixe, por gulodice, morda mais cedo o anzol, que todos esses povos que se deixam atrair prontamente pela servidão, pela menor doçura que os façam provar. É realmente assombroso ver como nos deixamos ir tão rapidamente ao menor afago que nos é dispensado.”

Destaquei esses dois trechos porque são atemporais. Apesar de eles terem sido escritos há tanto tempo, ainda fazem eco, em nós.

Quem é o tirano que tiraniza o povo, conforme o autor? Quem é o povo tiranizado? Somos nós. Somos o tirano que tiraniza. Somos o povo tiranizado.

Por mais duro que possa parecer, é preciso compreender que nada, absolutamente nada, nos é dado sem que algo nos seja tirado. Não se trata de uma posição pessimista sobre a vida, mas o contrário: por desconsiderarmos o caráter trágico da existência humana (problemas, angústias, medos, traumas, tristezas, vaidades, orgulho, dores, dificuldade de relacionamento), por nos alienarmos acerca de quem somos, nos distanciamos de nós mesmos. E nos distanciando, permitimos a nossa marginalização e nossa submissão desmedida. E é aí, exatamente aí, que os tiranos atuam. Eles já perceberam o nosso medo, a nossa vaidade, as nossas necessidades. E de posse destes preciosos conhecimentos, nos dão aquilo que vão nos entorpecer, nos adormecer, nos calar, nos tirar de cena, nos alienar. E nos alienando, não percebemos o quão usados e marginalizados estamos sendo. Ora somos nós, esses tiranos. Ora são os outros, a quem nos submetemos.

Quando consideramos o caráter trágico da nossa existência como parte inerente a nós, de forma madura e consciente, sem que isto nos faça nos tornar descrentes da vida, essa tirania até existirá, mas teremos mais domínio sobre ela, e, portanto, seremos menos suscetíveis aos estragos que ela provoca porque teremos um pouco mais de domínio sobre esta subjugação.

Obviamente, não podemos fazer apenas aquilo de que gostamos, ter a companhia apenas de pessoas agradáveis e trabalhar, apenas, com quem queremos. Nossa insubordinação não chegaria a tanto. Mas a reflexão que proponho, por meio deste texto, é a de que, por nos desconhecermos, por nos afastarmos de nós, por termos comprado a ideia de que a vida tem a obrigação de ser uma sucessão de felicidades para nós, isto tudo causou e tem causado, em nossas vidas, uma alienação. E esta alienação agrava a fragilidade que há, em nós. E o que faz uma pessoa alienada e subjugada? Torna-se manipulável, adestrável. E o pior: adestrada, não vê mais necessidade na pergunta, no pensar, na construção. Aceita o que vem. O que dão a ela. E ainda fica feliz com isso. “Viva o Rei!”

A questão não é saber as respostas. Mas o que perguntar. E só faz perguntas quem não grita “Viva o Rei!” Perguntar custa, dá trabalho e recusa moedas, medalhas e um quarto de trigo.

Dando “Viva ao Rei!”, nos tornamos contornados e contornáveis pelos riscos dos outros. Formamo-nos em fôrmas alheias. Ficamos em filas erradas. Percorremos os sonhos dos outros. Aceitamos o jugo. Passamos a buscar respostas prontas, receitas, fórmulas e nos tornamos fãs de pensamentos vazios, de frases feitas e de velhas metodologias que, apesar de nunca terem funcionado, agora surgem com outros nomes e, de preferência, em inglês, o que nos faz acreditar ainda mais. Como não pensamos tanto, porque isso é cansativo e dá trabalho, acreditamos naquele que se diz pensar por nós, e que sempre quer nos vender algo que nos projetará para o primeiro da fila. Realmente corremos ao menor afago.

Empresas espalham mesas de sinuca pelos corredores. Outras possuem salas com paredes rabiscáveis, poltronas confortáveis e coloridas e pufes espalhados pelo chão. Em outros lugares de trabalho, massagens são oferecidas na hora do almoço. Ainda em outras, academias modernas prometem resultados quase imediatos, em quinze minutos, na hora do almoço (do seu e do meu). Ambientes sendo redesenhados e vendidos como modernos, ágeis, descontraídos, informais. Alguns entendidos sobre o assunto dizem que isto traz mais agilidade, criatividade e resultado. O famoso conceito Work&Play! (trabalhe e divirta-se!)

Os Deuses vendem quando dão. A lógica grega, tão antiga e trazida por Étienne, novamente ganha espaço, visibilidade e aceitação, entre nós. O nosso quarto de trigo.

Uma academia eficiente para que eu não adoeça e, assim, entregue mais. Uma mesa de sinuca para que eu grite “Viva o Rei!” e ainda diga, “como trabalhar aqui é divertido”! Salas lindas com paredes e pufes coloridos para que as grades reais passem ilesas. Massagens durante o almoço para que eu não perceba o peso do meu jugo. Assédios morais disfarçados de assertividade. Competição desmedida camuflada de incentivo. Métodos de avaliação subjetivos que medem o número de hoje, e não a minha trajetória. Aliás, o que importa a trajetória na sociedade que endeusa o discurso de elevador? A mesma uniformização criticada por Étienne, há tanto tempo, evidenciada na mesma alienação de hoje.

Os deuses vendem quando dão. Enquanto achamos que estamos ganhando, estamos vendendo. Esta é a lógica que há. Enquanto acho que estou ganhando por ter academia no trabalho, vendo minha saúde para eles. E eles compram. Compram nos dando mais do trigo, mais dos jogos, mais das medalhas, mais das farsas, mais dos espetáculos. “Viva o Rei!”

Há sempre um jeito novo, com verniz diferente, para não percebermos o que nos estão tirando. E vice-versa.

Não há almoço de graça, já disse alguém. O que há é a nossa não percepção do que estamos vendendo em prol de um suposto ganho. Vendemos e não ganhamos. Numa empresa recordista de likes, há videogames, pebolim e mesas de sinuca disponíveis aos colaboradores. E tudo isto sendo visto como atrativos. Atrativos de quê, exatamente? Da compra do nosso intelecto, da compra do nosso silêncio, da compra da nossa ausência de perguntas. Em uma outra empresa, as paredes são grafitadas e isto é vendido como “um lugar superlegal e estimulante de se trabalhar”. Em uma outra empresa (multinacional e de expressiva representatividade no mundo), há um tobogã no meio do escritório. E quem quiser se aventurar, cairá sobre uma mesa de sinuca (!). Em outras, os ambientes foram inspirados no Vale do Silício. Quando vamos entender que aqui não é o Vale do Silício? Vamos aprender com os outros, mas sem querermos ser os outros. Pode ser? São muitos os exemplos. Em outra Empresa, redes dividem o espaço, bonecos para treinos de artes marciais e mural dos sonhos.

Como nos aquece um quarto de trigo, uma medida de vinho e uma moeda de menor valor. Quem será que sente dó da gente ao nos ouvir dizer: “Viva o Rei?”

Vendemos por tão pouco o nosso intelecto. Acreditamos que nos dão, no entanto vendemos e nem percebemos. Iscas que nos dão e, ingenuamente, caímos. Nem os peixes são tão omissos e ingênuos, assim. Não mordem as iscas facilmente. Morrem, mas não antes sem lutarem. E nós?

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento ácido de Shakespeare, que diz: “O diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém.”

Portanto, desconfie. Questione. Pense. Ninguém é bonzinho e fraterno ao ponto de fazer tudo pelo nosso bem-estar! Como somos bons. Os deuses realmente vendem quando dão.

Não digo que nos libertaremos dos tiranos que há, em nós, e também não digo que nos libertaremos deles, da ação deles sobre nós. Ainda é uma relação conflituosa. Não podemos ainda nos libertar. A autonomia e liberdade ainda são valores incompletos, cuja vivência ainda não podemos desfrutar. Mas, insisto e peço desculpas pela redundância: se considerarmos a dimensão trágica que há em nós, esta dimensão que é capaz de nos elucidar, de nos clarear, de nos acordar, de nos fazer abrir as portas para, finalmente, ouvirmos o que a tristeza, a angústia e o medo querem nos dizer antes de entrarmos na primeira farmácia que encontrarmos, teremos mais controle sobre o jugo imposto a nós, teremos mais domínio sobre o porquê do pouco trigo que nos for oferecido. Se buscarmos conhecer e viver a nossa dimensão trágica, em companhia de nossas outras dimensões, os tiranos perderão acesso as nossas linhas, perderão o acesso ao inabitado, em nós. Perceberemos as reais intenções e o verniz disfarçado que colocam sobre as festas e farsas que fazem para nós. Conseguiremos construir um certo distanciamento deles, necessário para vivermos até ser possível nos desvencilharmos deles. Mesmo que ainda seja necessário conviver e nos submeter a eles, que seja de olhos abertos, lúcidos, precavidos, prevenidos e cientes da linha que nos divide.

Com esta linha bem dividida, certamente, as mesas de sinuca e as redes ficarão às moscas. Não as frequentaremos mais. Os massagistas perderão seus postos. Os pufes ficarão vazios. O tobogã enferrujará e as paredes coloridas da moda, ah...as paredes, nelas escreveremos:

“Aqui jaz, um dia, o que foi “Viva o Rei!”

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