Nossa trajetória é a soma de
passos. Muitos deles. Passos dados por nós. Por outros. Por conhecidos. Por
desconhecidos. Passos longos, curtos; completos e interrompidos. Caminhadas
sofridas, outras nem tanto. Andares atentos, desatentos. Andança com tanta
areia, da lua cheia, onde andei, como diz a música. Em muitos dos nossos
passos, andaimes nos foram oferecidos; em outros, andaimes retirados.
Andei. Ando. Andarei. Assim eu
como você. Nossa caminhada não é de hoje, por isso nossas estradas vão
cheias de anúncios de sucesso e de importância, outros vão descascando em
função do tempo e da forte chuva que cai. Todos estes anúncios são importantes
se estruturados em bases sólidas, nos interiores. Se não, um chuvisco mais
forte borrará as letras dos anúncios, e o vento forte dará conta de finalizar o
trabalho de expor as nossas decadências. Toda andança e trajetória são assim:
somas e subtrações. Isso parece claro para todos nós. No entanto, o que não nos
parece claro, e é este o tema central que proponho por meio deste texto, é o
quanto estamos conscientes sobre a contribuição direta de outros nestas nossas
trajetórias. O quanto de nossos caminhares existe porque os outros contribuíram.
Somos porque outros são, em nós. Porque
outros foram, em nós. Porque outros serão, em nós. É preciso que isto esteja e
seja visível. De outro modo, correremos o risco, se é que já não estamos
correndo, de sermos injustos com aqueles que colocaram tijolos em nossas ruas e
evidenciaremos a nossa alienação, que é uma espécie de solidão da
contemporaneidade. Porque nossas ruas existem. E como existem, vários pés lá pisaram.
Pisadas pesadas, duras, leves, concretas, abstratas, lineares etc. Não sabemos
ao certo. Mas as marcas ficaram e nelas fomos constituídos e construídos.
Reconhecermos que somos, também,
resultados, nos ajuda a crescer. Ajuda-nos a tomarmos posse do nosso real
tamanho. Às vezes, queremos mostrar um tamanho que não temos, ocupar um espaço
que não podemos, colocar papéis amassados e camuflados no colo do outro por
pura vaidade, este oco que vai em nós. Isto é não reconhecer o que vai do
outro, em nós. Somos produtos, resultados. E também construtores. Quando não
reconhecemos a construção do outro, em nós, agimos por meio de monólogos, e não
por meio de diálogos.
Há pessoas cujo currículo
apresenta vivências no exterior, escolas renomadas, aquisições materiais de
larga escala etc. A pergunta que fica é: o quanto disto tudo foi construção dele?
E o quanto disto tudo foi construção daqueles que pisaram sobre o caminho desse
que usufrui, hoje? Se estudamos numa excelente escola e este estudo nos
proporcionou avanços em nossas carreiras, o mérito será mais nosso ou daqueles
que depositaram tijolos sobre nossas calçadas nos permitindo ali, estudarmos?
Nossos méritos ali estarão, obviamente, mas é preciso reconhecermos que, sem os
passos dos que vieram, a probabilidade de ali estarmos seria drasticamente
reduzida. Nossos méritos estão no avanço que damos ao que recebemos. Mas como
avançarmos sobre algo se não recebermos este algo antes? Por isso, é
imprescindível enxergarmos estas construções em nossas trajetórias. Trajetórias
que nos permitem andar adiante porque os velhos, cansados ou não, por ali
passaram.
É preciso darmos vozes para que
as nossas possam ser ouvidas. É preciso irmos além de nós, porque outros
existiram. É preciso darmos a autoria, aos outros, de muitas de nossas obras,
porque, muitas de nossas obras têm, apenas, rabiscos que nos pertencem. O
desenho e os traçados fortes não nos pertencem. É preciso nos reconhecermos
como esboços e rascunhos para que sejamos merecedores de construções. Ninguém
que negligencia os próprios borrões chega muito longe.
Carlos Drummond de Andrade, um
dos grandes da Literatura mundial, num dos seus belíssimos trabalhos, diz:
“Do lado esquerdo
carrego meus mortos.
Por isso caminho um pouco de banda”.
Por isso caminho um pouco de banda”.
Caminhar de banda, um pouco de
banda, é para aqueles que já entenderam que a vida é feita de outros, em
nós, e de tudo o que caiba dentro destes outros. Nossos ombros vão
ficando pesados porque nossos mortos pesam e nos sobrepõem, muitas vezes. Não
pesados como sinônimo de cansaço, mas no sentido da existência, do realizado,
do construído. Todo peso carrega uma história, e toda a história tem peso. Um
peso que se relaciona conosco porque conversa conosco, intimamente. Somos
milhares de uns dentro da gente. Somos diversos eus, muito mais que os
heterônimos de Fernando Pessoa.
Não pesados como sem valia;
não mortos como acabados. Mas pesados porque carregam sentidos e significados.
Mortos porque se transformaram na nossa extensão.
É preciso nos reconhecer, um
pouco de banda, nos enxergar andando tortos e curvados de lado. Lá eles
estão reavivando nossas memórias, nossas vírgulas e parênteses, nossas pazes
com aquilo que recusamos, nossos contrastes iluminados, nossas irregularidades
visíveis. Nossos mortos nos mostram o que teimamos em não ver. Recusamos a
visita deles, mas eles chegam. Sempre chegam. Por acharmos que a construção é
sempre nossa, por acreditarmos que a jornada sempre pertence apenas a nós, nos
tornamos especialistas em alienações. Generalistas de um assunto só, cujo
conteúdo nunca entendemos.
Somos seres inadaptados, não
prontos, não concluídos. Por isso, nossos esforços doem. As contradições
significam o material que nos constitui. Somos exilados, em nós. Mas nossos
mortos nos reconduzem ao caminho que teimamos em não reconhecer. Nossa história
é o nosso morto. Tudo o que nela está, pesa sobre os nossos ombros, por isso, é
preciso andar um pouco de banda para não nos esquecer, assim como disse
Drummond.
Uma ajuda recebida, uma ofensa
perdoada, um aperto de mão, uma humilhação envergonhada, uma escorregada que
demos (mas que o outro já se esqueceu): tudo isso significa nossos mortos. Um
assento esvaziado, um andar calmo, uma palavra dita na hora mais precisada, um
“deixa isso pra lá”, uma falta nossa que o ofendido fingiu que não viu: tudo
isso significa nossos mortos. Por isso, eles pesam.
Nossos mortos lá estão, aqui
estão: nos meus ombros e nos seus. Eles nos trouxeram até aqui. Não
mortos-vivos, mas mortos que vivem. Vivem em nós. Somos o que deles foi deixado
em nós. É preciso honrá-los, vivê-los, admirá-los. Acima de tudo, é preciso
gratidão. Uma das raízes da palavra gratidão é dar “boas-vindas”. Portanto, ser
grato, significa, além de outras coisas, darmos boas-vindas àqueles que sempre
estiveram lá, mas raramente foram reconhecidos e vistos.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com uma frase de Cícero, Filósofo e Pensador da Roma antiga,
que diz:
“Nenhum dever é mais importante
do que a gratidão.”
Dever. Um dever darmos
visibilidade a eles. De andarmos um pouco de banda para que, ao passarmos, as
pessoas digam: “lá vai aquele cujas costas carregam os próprios mortos.
Carregam a própria obra.” Uma obra construída por muitos e de muitos.
Porque somos muitos. Continuarão: “lá vai aquele cujas costas carregam a
compreensão para enxergar o que está próximo. Lá vai aquele cujas costas
carregam lições distantes, dadas e construídas por seus mortos, e que,
exatamente, por isso, evitaram que ele chegasse cansado no final.”
Que nossos mortos sejam vistos e
reconhecidos. Se assim for, espelhos cairão sobre nós, felizes, porque, enfim,
poderão refletir a verdade, e não imagens distorcidas que mostramos e impomos,
ao mundo e aos outros, sob fortes luzes artificiais, acesas por nós. O
espelho, assim como a vida, há tempos tenta nos oferecer luzes naturais para
que possamos nos ver, de verdade, tortos e de banda.
Quando abandonarmos a recusa de
nos enxergar sob luzes naturais, nosso itinerário ficará mais claro e mais leve.
Nossos métodos se simplificarão e aceitaremos a História para explicar a nossa
história. Tomaremos distância do mofo que nos manteve sob luzes artificiais. E
naquela hora, tortos e um pouco de banda, nos reconheceremos, assim
tortos, assim um pouco de banda, assim como somos, assim
incompletos. Não um ser em linha reta criticado por Fernando Pessoa, mas um ser
que se compreende como a soma de tudo o que, inegavelmente, a ele pertence.
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