domingo, 1 de março de 2020

A metáfora dos anões

Isaac Newton, um dos grandes da História, dizia:

“Se cheguei até aqui, foi porque me apoiei nos ombros de gigantes.”

Somente uma pessoa grande diz isso. Quando somos grandes, reconhecer a grandeza dos outros é natural, feito sem esforço. Mas quando somos pequenos, a grandeza dos outros incomoda e ofusca, e reconhecê-la é quase uma afronta, um convite ao retrocesso.

Somos uma sociedade feita de anões. No entanto, não reconhecemos isto por nos acharmos grandes. Confundimos conceitos. E esta conta se percebe quando nos atrapalhamos com as nossas medidas e entregas. Exatamente por acharmos que sabemos os conceitos, erramos. Somos uma sociedade de desatentos, por isso a vulnerabilidade nos encontra com facilidade e nos assola. Caso estivéssemos mais atentos, nossas luzes estariam acesas, e seríamos menos suscetíveis à escuridão e menos acessíveis àquilo que não fosse bom.

Somos uma sociedade que está pautada na carência. Portanto, se elogiamos alguém, se consideramos o trabalho de um colega, se valorizamos aqueles que já passaram é como se não houvesse espaço para nós.

O andar do outro não diminui o nosso. O construir do outro não invalida o nosso. Há muita dificuldade na valorização dos que foram porque somos vaidosos, queremos os louros em embalagens fechadas e exclusivas. Queremos deixar nossas pegadas isoladas e não misturadas. O passo do outro nos incomoda porque ele pisou sobre terras que gostaríamos de ter pisado primeiro. Entretanto, como isso não foi possível, tentamos encontrar uma forma de diminui-lo e de neutralizá-lo para que ele entre para o hall dos esquecidos.

Não sabemos aonde está a nossa atenção. Sabemos reivindicar, mas não sabemos construir. Sabemos pedir, mas temos dificuldades de ficarmos na fila aguardando sermos chamados. Alienados que somos. Desbotamos a experiência do outro porque não foi a nossa. Desvalorizamos os passos dos outros porque não foram deixados por nossos sapatos. Queremos que os outros encurtem os nossos caminhos apenas por capricho e apego que temos a nós, mas não porque a trajetória dele fosse uma referência a ser considerada. E na hora de subirem os créditos que deveriam ser dados aos que já passaram, chamamos os comerciais. Quem percebe?

A construção do nosso conhecimento se dá por meio da própria experiência que fazemos, mas sempre considerando o caminho que os outros trilharam, a história e a História que os outros já escreveram. Mas parece que temos outra lógica de influência e de significados. Como a experiência, trajetória e construção do outro não entram na nossa conta e não nos interessa, nos tornamos insustentáveis. E assim sendo, construímos tragédias por não termos aprendido que o outro, e toda a sua completude, é parte que nos constrói. Nossos itinerários ficam obstruídos por falta de material de construção que deixamos, há tempos, de comprar.

Isaac Newton, ao trazer este pensamento para a nossa reflexão, faz uma metáfora que, ao longo da história, ficou conhecida como a metáfora dos anões. Esta simbologia de dizer que “se está sobre os ombros dos gigantes” nos coloca numa condição de anões. Para que possamos estar sobre ombros dos gigantes, não podemos ser grandes, também. Anões, portanto, é um grande estado de excelência para todos nós. Este raciocínio mostra que, independentemente, de quem somos, do que fazemos, do que construímos e descobrimos, sempre alguém veio antes. Sempre. Mas parece que estamos nos esquecendo disto e nos apropriando de louros e de créditos que, de longe, ajudamos a construir. Um conceito antigo, bem antigo, que reacendeu com Isaac Newton, um dos maiores Astrônomos da Humanidade.

Somos todos anões sobre ombros dos grandes. Quem são os grandes? Todos aqueles que vieram antes de nós. Sem exceções. Se sabemos o que sabemos foi porque alguém nos trouxe verdades a partir de outras verdades descobertas antes de aqui chegarmos. Para aceitarmos isso, será preciso ter aceitado, antes, o fato de sermos pequenos e de termos sido construídos a partir de outros que vieram antes. Somos construções dos olhares dos outros.

Os ombros dos gigantes é um lugar para poucos. Apenas para aqueles que já entenderam o que fazem aqui. Para aqueles que ainda possuem dificuldades de valorizarem os ombros dos que vão à frente de nós, um possível caminho seja refletir sobre algo recorrente em nós: a ingratidão. Etimologicamente, gratidão vem do latim “gratus”, que, por sua vez, possui uma base indo-europeia formada por “gwer”, que significa dar as boas-vindas.

Quando somos ingratos, temos dificuldades de nos apoiar sobre os ombros dos gigantes porque os gigantes que passaram não nos interessam. O trabalho deles é irrelevante, desnecessário, ultrapassado. Ingratidão significa considerar que o mundo e seus atributos começaram apenas quando nós chegamos. É viver sob uma farsa pintada de cores brilhantes para que ninguém perceba. O ingrato não conhece o entorno. Não percebe e não reconhece o trabalho do outro porque somente a caneta que ele possui faz grandes obras.

O contrário, a gratidão, é dar estas boas-vindas àquele que já veio, àquele que já passou e que parou no degrau cuja estada chegamos agora. Gratidão é saber que muito havia sido feito quando chegamos. E que muito há por fazer. Difícil e custoso, mas necessário. Gratidão é não se importar em ser o “anão”. Porque somos todos.

Aquele que é grato se eleva porque se torna autônomo, menos suscetível ao alheio. Sabe que é influenciado por ele, mas não se deixa dominar. Aquele que é ingrato se diminui porque precisa de cada migalha que cai para tentar formar máscaras que ficarão tão presas, como disse Fernando Pessoa, ao rosto, que se tornarão nossa própria pele.

Tomamos posse de conquistas cuja participação foi mínima, irrisória, vergonhosa. Outros começaram bem antes da gente, e em épocas muito mais duras e de conflito que as vividas hoje. Se temos liberdade de gritarmos nas ruas é porque muitos foram silenciados antes de nós. E este é apenas um exemplo em muitos.

Concedemos uma invisibilidade aos outros e às obras deles porque impomos a nossa visibilidade de futilidades e de excentricidades a todos. Construímos a partir de. Por que não identificamos as vozes dos outros, então? Por que os que foram têm as próprias obras e passos esnobados por nós? Outro dia, escutei alguém dizer que Machado de Assis é um autor ultrapassado e que Shakespeare, se vivo, seria um escritor mediano. Pobre que somos. Medimos o mundo pela nossa ínfima régua. Medimos a expressividade da obra dos outros pela inferioridade e inexpressividade da nossa. Por isso, nos apoiar sobre os ombros de gigantes como Shakespeare, Machado de Assis e de outros tantos anônimos não nos é convidativo. Afinal, o que aprenderemos com eles? Nada. Ao invés disto, nos apoiamos nos nossos próprios ombros para continuarmos a usufruir de inexistentes paisagens.

Aquele que se apoia sobre os ombros dos gigantes vai longe porque não se envergonha de ter um saber continuado, restrito, fragmentado e específico. Não há como nos apropriarmos de toda a obra, mas assim agimos. Por isso, os outros não nos interessam. Os ombros dos outros são lugares que não nos merecem. Pobre que somos. Para sairmos desta inércia, precisaríamos nos vestir de muitas outras coisas, mas nossa visão é turva, pálida e míope.

Somos desequilibrados por causa dos excessos e por causa das ausências. É preciso questionar quem são os nossos representantes e as bases que sustentam o nosso pensar e agir. Nossa fragilidade é assustadora, por isso, burocratizamos nossas atitudes, medicalizamos as nossas emoções e os ombros dos gigantes não fazem parte do nosso querer. Aliás, eles atrapalham.

Pobres que somos. Vaidosos que somos. Míopes que somos. Por convicção. Por acharmos que temos uma verdade. Mas o que não sabemos é que toda verdade é incompleta. Somente os que vão sobre os ombros dos gigantes já perceberam isso e não desprezam, jamais, este lugar.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um lindo pensamento do escritor francês, do século XVII, Jean de la Bruyere, que diz:

“Não há, no mundo, exagero mais belo que a gratidão”.

O convite está feito. E há tempos. Mas somente aqueles que caminham sobre os ombros dos gigantes conseguiram enxergar esta beleza.

Nenhum comentário:

Postar um comentário