sábado, 14 de março de 2020

Aldeias sem vozes

Quando eu era pequena, por volta dos 13 anos, estudei três anos de violão. Não por convicção, uma vez que minha vontade por estudar o instrumento não era tão forte assim, mais para fazer um carinho ao meu pai, apaixonado pelo violão. Mas foi uma experiência muito valiosa. Tive a sorte de ter uma professora dedicada ao ensinar, que conhecia o universo infantil, tinha a técnica aprimorada sobre o instrumento (tocava lindamente) e ainda, por cima, era didática e extremamente carismática. Hoje, adulta, tenho a certeza de que estes três anos dedicados, além do meu esforço e decisão por fazer, também se devem à presença desta professora, que ainda tão presente se faz em mim.

As aulas corriam passo a passo, nota por nota. A cada aula um avanço. A Tia Nida, como era carinhosamente chamada pelos alunos, assegurava, o tempo todo, que alguma coisa importante estava acontecendo no meu aprendizado. Ela sempre me dava a sensação e a certeza de que o meu avanço estava existindo. Sentia-me caminhando e o melhor: ao acontecer a “mágica” de uma nota difícil ser conseguida de fazer por mim, ela dizia: “você conseguiu!”, e isto me dava metade do caminho andado. A outra metade deveria ser por minha conta. Ao dizer que “eu havia conseguido”, ela valorizava a minha trajetória e a minha história. E ao fazer isso, me sentia parte do processo, um sujeito, e não um objeto em branco a ser desenhado e esculpido. Eu já sabia coisas antes de chegar lá, e isso foi valorizado, apesar de toda a minha dificuldade e erros, que foram inúmeros.

Paulo Freire dizia: “Quem não é capaz de amar os seres inacabados não pode educar”. Tia Nida sabia isso. E aplicava. Coerente. Reta. Assertiva.

Inacabados somos todos nós. Mas quem percebe? Somente aqueles que amam. E amar, neste contexto educacional, significa permitir a ação e a reflexão do outro. Significa permitir que o outro caminhe ainda por pés tortos, inchados e cansados. Que o outro possa ter espaço para refletir sobre a própria incompletude e inacabamento. Sem isso, o que nos sobra é a arrogância, isolamento e a hipocrisia. Meu inacabamento e minha incompletude foram percebidos. No entanto, ao invés de constrangimento, acolhimento.

Em meio ao meu inacabamento, quando eu já caminhava para um ano e meio de estudo, comecei a colocar os meus pés para fora da soleira. Apesar de ainda chover forte e de eu estar desprevenida, quis sair mesmo assim, ainda que, discretamente, a vida já havia me mostrado que não era a hora. Cheguei para a aula, iniciei meus estudos. A professora me pediu para tocar A casa, música de Vinícius de Moraes. Era uma canção muito estudada por mim e eu já sabia tocar, de verdade, muito bem (“...era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada...”). Toquei meio a contragosto. “Por que não avançamos?”, pensei, na minha incompletude. Continuei a tocar, mas sem dizer uma palavra acerca do que eu pensava. Terminamos a aula. Fui embora. Voltei para a outra aula. A mesma situação: tocar outra música “conhecida”, agora ela me pediu para tocar Amigo, de Roberto Carlos e Erasmo. Toquei. Agora não mais a contragosto, mas irritada.

A irritação é uma arma perigosa do arsenal dos vaidosos. E isto independe de idade.

Irritada, toquei Amigo. Hoje, adulta, me envergonho de um dia ter achado músicas de Vinícius de Moraes, Roberto Carlos e Erasmo, fáceis de tocar. Enfim, marcas de um currículo que me trazem até aqui. Toquei. Despedi-me da professora. Saí. Brava, enquanto atravessava o jardim da casa dela, ouço: “Renata, te espero na quinta”, com um largo sorriso. Fazia aulas as terças e quintas. Fiz um aceno positivo com a cabeça, arrogante, e segui meu caminho no auge da minha pequenez que ainda tinha 13 anos.

Na época, como compreender? Apenas vivendo. Aquele sorriso dela, hoje compreendo, era um convite para eu recusar atalhos, para eu recusar caminhos curtos, para eu abrir mão da necessidade desnecessária. Mas convites são para toda a vida, muito além do horizonte, a também música “fácil” de Roberto Carlos e Erasmo, que tive de tocar durante as aulas.

Na próxima aula, a mesma cena se repetiu. Toquei, desta vez, a canção Aquarela, de Toquinho, que possui pouquíssimas notas. Fiz com displicência, confesso. Mas toquei. Parei e disse: “Eu não quero mais tocar estas coisas fáceis. Isto eu já sei. Quero aprender coisas mais difíceis. Quero aprender a tocar Abismo de Rosas. “Apenas um parêntese: a canção Abismo de Rosas é uma das mais difíceis de se tocar, no violão. Fecha parêntese”.

“Abismo de Rosas?”, ela me disse. “Esta é bem difícil, há passos antes dela.”

Um silêncio se fez. Mas logo foi preenchido por aquele mesmo sorriso, do mesmo dia do “te espero na quinta”. Novamente relembrando a genialidade de Paulo Freire quando disse: “Quem não é capaz de amar os seres inacabados não pode educar”, a professora me recoloca dizendo: “Renata, quando temos a base sólida e muito bem aprendida, o difícil fica relativo.” E continuou: “se você quer aprender coisas mais difíceis, o que valorizo em você, primeiro você precisa criar intimidade com o simples. Porque será ele que facilitará o teu caminho para o complexo.”

Fui desmascarada. Fiquei sem chão. Não esperava aquela lição tão dura que carrego para a vida. A diferença entre o inesperado daquele ensinamento e o difícil de aprender a tocar Abismo de Rosas me reorientou e me deu valiosas dicas de que o amadurecimento de uma pessoa começava por aquele caminho, que certamente me levaria a outros. Tão valiosos quanto.

“Vamos continuar a tocar?”, disse ela, como se nada houvesse acontecido. Sábia, sabia que contribuía, e muito, para que meus pequenos vazios fossem preenchidos. Ela, portanto, não precisava ficar se demorando nas lições morais, porque ela havia permitido o espaço para a minha reflexão e para eu relembrar, mesmo com tão pouca idade, que somos uma sequência de rupturas e de contradições, o que dificulta a construção de um claro projeto de vida. Toda vez que abrimos mão dos passos que o simples quer nos ofertar, nos perdemos. E simplesmente o que ela fez foi me reorientar, me recolocar na rota, cuja impertinência e vaidade de minha parte me fizeram desviar.

Fui apresentada a Toquinho, Vinícius, Roberto Carlos e Erasmo, entre outros. E achei fácil. Não tinha dúvidas de que era fácil. O genial Millôr Fernandes dizia que “quem não tivesse dúvidas era porque estava mal informado”. Era o meu caso, desconfio.

Crescemos com a imposição de alguns isolamentos, de alguns nãos. Isto nos faz avançar. A linha é muito tênue entre correr riscos para avançar e saber esperar e se consolidar. Por isso, uma das chaves é nos aprimorar no nosso autoconhecimento, no nosso limite, no estudo acerca de quem somos, cuja descoberta completa é impossível. De posse destes estudos, as respostas da vida, para nós, ficarão mais claras. Saberemos, de verdade, a hora de nos arriscarmos nos aprendizados mais complexos.

Muitos aprendizados, na vida, nos obrigam a entrar e a acessar nossos vazios e nossos silêncios. Nossas vaidades diversas. Nossos espaços alargados. O não nos dá consciência do nosso limite. Porque ele existe e precisa ser respeitado.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação do escritor russo Tolstoi, que diz: “se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia.”

Outro dia, ao ouvir a música Aquarela, de Toquinho, uma canção de poucas notas musicais, a mesma que aprendi logo que comecei a estudar e que julguei fácil por haver tão poucas notas, me lembrei do profundo ensinamento que recebi e que jamais me esqueci. Poucas notas sim, mas de uma profunda simplicidade que, certamente, me ajuda a compreender o complexo da vida. Sem o aprofundamento e o respeito pelo simples, o complexo jamais será bem-vindo e compreendido. Quando Toquinho diz que com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo, vi a Tia Nida ali, na minha frente, me dando aquele largo sorriso de quem sinto falta. O castelo, de Toquinho, é um lugar de excelência e de permissão para todos, mas antes, é preciso saber, conhecer, respeitar e aprender a relevância das retas, sejam elas cinco, seis ou quantas mais forem necessárias. Para se chegar à gaivota voando no céu, antes, e mais importante, é imprescindível valorizar o pinguinho de tinta que cai num pedacinho azul do papel.

Vi que Tolstoi e Toquinho, apesar de não serem contemporâneos, são pessoas que caminham à frente, bem à frente. Tolstoi nos convida a sermos universais, assim como Toquinho nos chama a fazer o castelo; mas antes, Tolstoi nos relembra que antes da universalidade, há a nossa aldeia para ser conhecida, respeitada e pintada, e Toquinho nos relembra que antes do castelo, é preciso conhecer as retas.

Que nossas aldeias não fiquem sem vozes. Que nossas retas não fiquem sem nossas mãos.

Somos parte do mesmo. Somos um a partir de. Somos um lápis em torno da mão que nos dará uma luva, mas se assim, valorizarmos o lápis e o brilhante trabalho que ele faz. Sem ele, a luva jamais existirá.

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