domingo, 5 de abril de 2020

Passos alargados

Estamos diluídos na nossa construção, que se traduz e se sustenta por meio dos nossos valores. Há um muito de nós em tudo que possui a nossa digital. A nossa diluição se apresenta nas nossas medidas, nas nossas brechas e nos nossos espaçamentos.

A forma como estamos diluídos na vida, na nossa construção, pode revelar-se sob três aspectos: pessimista, realista e otimista. Não há um quarto aspecto. Ou talvez um quarto aspecto seja a mistura destes três ou a combinação deles. Mas o fato é que há uma predominância na nossa construção, na nossa diluição, na nossa forma de viver e de fazer.


Quem é o mais importante? Quem é o necessário? Quem define?

O pessimista crê na ausência de luz. Esta é a base da construção do pessimista. O otimista crê na ausência de escuridão. Esta é a base da construção do otimista. O realista crê em acionar o interruptor para que haja luz. Esta é a base da construção do realista.

São formas de se viver e versões acerca de quem somos. Valores que nos representam e que nos formam, nos diluem e modelam a nossa construção. Somos a soma de cada um de nós. Ora os três aspectos, ora um, ora dois deles, ora três. Somos os intervalos deles em cada um de nós. Não há errado, não há certo: somente formas distintas de se viver, de se enxergar o que vai, de nos fazer. Todos são importantes. Todos são necessários. Todos nos definem.

Mas por que os otimistas e os realistas são pessoas cuja sombra e água fresca estão garantidas? São pessoas que não sofrem retaliações, são bem-vindas e, mesmo quando apresentam discursos hipotéticos, hipócritas, políticos e mágicos, são alimentados pelos irracionalismos e pelos tendenciosos de plantão. Já os pessimistas, cuja crença está na escuridão, são repelidos da conversa como se fossem contagiosos e inabitáveis.

A maioria de nós se coloca como otimista e/ou realista, porque assim definimos. Mesmo que esta posição não reflita a realidade que vai em nós. É esperado da gente, por causa de uma construção social, que sejamos esperançosos, alegres, otimistas, felizes. Ser pessimista, assumir-se como tal, é como se fosse uma afronta, uma ofensa, um desserviço. O pessimista é renegado, mal visto e, muitas vezes, solitário. É mais valorizado quem se mostra feliz, apesar de não o ser muitas vezes, do que o infeliz honesto. O suposto feliz não dá trabalho para a sociedade. Já o infeliz honesto demanda muito de todos.

Na nossa Cultura de atirar os que não vão com a maioria pelas portas e janelas laterais, vamos acusando, sem exceções, os pessimistas. São pessoas que têm a parte individual atacada pelos que acham que eles deveriam estar ausentes e fora das conversas. O pessimista, que possui uma forma de diluir-se na vida de forma ácida e pouco afeita à luz, é facilmente posto de lado.

imagem tirada da internet

Perdemos a nossa capacidade de reconhecer o outro exatamente por causa da incompletude que ele tem. Mas somos todos incompletos e por fazer. Estamos todos numa esteira sendo formados. É preciso resgatarmos a nossa vontade de nos debruçarmos sobre os outros para poder conhecê-los. Porque se assim fizéssemos, a chance de compreendermos o pessimismo do outro seria grande. A chance de refletirmos sobre o otimismo do vizinho talvez nos ajudasse a nos compreender. E assim sucessivamente. Como, muitas vezes, silenciamos aqueles que não possuem eco em nossas vozes, retiramos de nós a oportunidade de avançarmos. O outro não nos interessa.

Informamos, ao mundo, quem somos por meio do que possuímos e por meio do que damos. Aquilo que nos identifica, que deveria ser o Eu, puramente, está marcado na roupa que vestimos, na universidade que cursamos, na linguagem que usamos, nas crenças que temos, nos lugares que frequentamos, nas falas que pronunciamos. Nossa referência de reconhecimento do outro está no que vai lá fora, e não há mais espaço e nem vontade para nos debruçarmos sobre quem é o outro, sobre a real identidade que ele possui. O externo nos identifica e o interno não nos interessa. Mas é justamente o interno que deveria nos interessar. É ele, e somente ele, que poderá nos explicar quem é o outro. Quem é aquele pessimista, aquele otimista, aquele realista.

E neste lugar de diálogos pré-concebidos e estabelecidos, cujo esgotamento de possibilidades é evidente por parte daqueles que excluem, os pessimistas vão somando rótulos injustos de fracassados, infelizes e precários.

Obviamente, não faço, aqui, um movimento em prol do pessimismo. Mas um convite para reflexão. O pessimista, o otimista e o realista possuem nuances, ramificações que camuflam virtudes e defeitos. É preciso atenção a isso. Mas apenas para os pessimistas esta lupa está a postos.

Um otimista é essencial porque ele sempre enxerga retas no caminho. Vê curvas ainda não trilhadas. Vê possibilidades de caminhada. É um incansável na arte da não desistência. Mas é desprezível aquele típico otimista oco, cujo pensamento mágico o faz crer que bastam meia dúzia de palavras e de pensamento positivo que tudo dará certo. Um otimista que nada constrói porque acredita em fórmulas mágicas e que acha, de forma arrogante, que detém o controle das coisas e da vida. Desconsidera o lado randômico e irregular da vida.

Um realista é essencial porque ele, dificilmente, tira os pés do chão. Sabe até os centavos que possui na conta bancária. É privado de delírios e de alucinações. É um incansável na arte de trabalhar com os fatos. É um sujeito de repertório e sem apego para descontruir o que não deu certo. Mas é desprezível aquele típico realista enfadonho que acha que tudo se resume a uma planilha de Excel e que acha que a vida se traduz em números e descritivos.

Um pessimista é essencial porque ele enxerga a escuridão que, fatalmente, virá, mas que os outros têm medo de enxergar. Vê tropeços na estrada porque sabe da fragilidade dos passos dados até aqui. Ele é o único a colocar holofotes na estagnação e no cotidiano retrógrado. É um incansável na arte de nos lembrar se pegamos o guarda-chuva, porque certamente choverá. Mas é desprezível aquele típico pessimista que se limita a repetir modelos porque “sempre foi feito assim”. Um pessimista que se encosta porque “não adianta, não dará certo”, evidenciando uma postura imobilista, o que não é saudável.

Otimista, realista, pessimista: sinônimo de quem somos. Virtudes e defeitos. Ordens e desordens. Controle e descontrole. Não há como fugirmos disso. Ao excluirmos o pessimista de nossas conversas, sem percebermos, estamos nos excluindo. Porque o pessimista somos nós, também.

Todos são urgentes numa construção pendente e atrasada. Então, por que somente o pessimista paga a conta? Por que este isolamento?

O pessimista vê coisas que ninguém vê, mas que existem. São questionadores porque possuem algo necessário: desconfiança. Não uma desconfiança vazia e má, mas uma desconfiança porque conhece a natureza humana, cuja desonestidade existe. Ele percebe os furos, aquilo que está escrito nas entrelinhas daquele contrato que todos assinam sem ler. Fala dos problemas que aquele super projeto pode oferecer. Quando todos estão comemorando algo que ainda não aconteceu, ele questiona o motivo. Por ser incompreendido, é chamado desmancha-prazeres, mas todos precisam dele. Apenas não reconhecem e o afastam.

Somos uma sociedade que acredita em felicidade de fórmulas e sem construção. Somos viciados em novidades, queremos ser inéditos e achamo-nos no direito de experimentar. Acreditamos que querer é poder. E nada disso existe. O pessimista sabe disso há tempos. E como ele nos lembra disso a todo o instante, queremos afastá-los. É terrível conviver com alguém que fica, o tempo todo, nos falando a verdade e nos lembrando do que somos feitos.

Guimarães Rosa valorizava o meio, a travessia, o trajeto. Portanto, o equilíbrio é essencial. Precisamos de todos, na medida. Nem muitos pessimistas, nem muitos otimistas, nem muitos realistas. De todos. Mas na medida. Para encontrarmos esta medida, apenas fazendo a travessia de Guimarães Rosa. Caindo. Levantando. Chorando. Andando.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de um pessimista incorrigível da nossa História, Nietzsche, autor imprescindível, que diz:

“por vezes, as pessoas não querem ouvir a verdade porque não desejam que as suas ilusões sejam destruídas.”

Este é o trabalho do pessimista: árduo, difícil, indigesto, mas de autoria necessária. Ele ajuda a destruir a ilusão, a farsa, a hipocrisia. Destrói as tábuas de salvação, os falsos apoios e oferece páginas em branco para o recomeço da escrita. Ele possui passos alargados pela lucidez. Mas é incompreendido e, na maior parte das vezes, não recebe aplausos porque todos estão sentados assistindo a um filme de ficção que pela, vigésima vez, reprisa na televisão.

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