Para este texto, parto de uma reflexão
da escritora brasileira Nélida Piñón que diz: “se Machado de Assis realmente
existiu, não temos desculpas para sermos incompetentes.”
Estamos sendo incompetentes, então? Se
a incompetência não fizesse parte do nosso roteiro, a escritora não teria feito
esta referência. Uma característica presente, e de tão presente, tem-se tornado
uma marca quase pessoal, uma extensão nossa.
No dicionário, a palavra competência
significa autoridade, domínio, alçada sobre uma coisa e/ou assunto. E a palavra
incompetência é o contrário disto: falta de conhecimento, de habilidade,
ignorância. Como sabemos que conhecemos muitas coisas e desconhecemos tantas
outras, podemos dizer, então, que somos competentes e incompetentes, a depender
do assunto em questão. Incompetentes somos todos. Competentes somos todos. Mas
será que a provocação de Nélida Piñón se referia ao sentido literal da
palavra?
A ironia é um convite, mesmo sendo de
difícil digestão. Ela cria impasses, em nós, porque despertam as nossas dores e
os nossos estranhos que moram dentro e fora de cada um de nós.
Não. Ela não se referia ao sentido
literal da palavra, até porque, como disse, cada um de nós traz as
incompetências inerentes ao nosso não saber. Ela se referia, portanto, ao nosso
já saber, mas que, nem por isso, se fazia presente entre nós. Referia-se à competência
incompetente, ou seja, aquela que sabe o que tem que fazer, mas não faz.
Aquela competência que escolhe o não fazer, que escolhe a uniformização e o
superficial. Aquela competência que aprendeu o que fazer, mas que desaprendeu porque
não conseguiu estabelecer uma conexão corajosa consigo. Aquela competência que
se tornou conivente com a falta de vontade forte. É sobre este sentido, cuja
fala de Nélida se propôs, que não poderíamos aderir.
Uma competência adiada. Uma
competência incompetente. Não um sentido literal de competência, mas um sentido
indigesto de se saber conhecedor do que precisa fazer, mas abdicar, por querer,
deste fazer.
Não podemos adiar esta conversa antiga
e necessária. Mas adiamos. O calendário avança em retrocessos, apesar do
otimismo do tempo que, esperançoso, renasce como sinalizador de recomeços
inadiáveis. Se é necessária esta conversa, por que, ainda, não está nas nossas
promessas? Por desculpas. Por esta conversa estar espalhada de propósito.
Porque encontrar esta conversa cansa e nos traz um grande desgaste em frente
aos espelhos.
Temos uma competência com vontade
firme para se tornar incompetente. Temos tido êxito nesta nossa empreitada de
soluções inconsequentes. Fazemos liquidações. Naturalizamos os horrores e as
dores. Fazemos coro com a má-fé. Alimentamos a ignorância que sempre está
pronta a se manifestar. Buscamos confundir para evitar o pensar. Afinal, não é
prático incentivar uma fala de análise, de busca, de pesquisa quando a
mentalidade do delírio resolve tudo, ou quase tudo. As mentes destras e
lúcidas sinalizam, a todo instante, os equívocos destas nossas criações. Mas o
conhecimento parcial que enxergamos não tem sido o suficiente para que a
compreensão possa emergir. Uma pena. Se fizéssemos um pouquinho mais de
esforço, talvez a luz, há tempos lá, pudesse ser vista por mais pessoas.
O que temos acumulado? Cansaços,
personalidades incertas, chão de areia, descontinuidades, falta de percepção da
realidade. O que temos acumulado? Vitórias, conquistas, avanços, descansos,
certezas, pisos sólidos e lucidez. Mas por que nossas balanças não conseguem
equilíbrio vivo? Por que invasões
arbitrárias têm sido as nossas escolhas? Por que nossas buscas não buscam o conciliável
ao invés do inconciliável? Por que não paramos de lutar? Por que o diálogo tem
sido constrangido ao esquecimento?
Não há desculpas para a nossa
incompetência. Sabemos. Machado de Assis também sabia disso. Por isso ele fazia
com maestria. Fez tanto com tão pouco, com o
pouco recebido. Um gênio da literatura. Um homem além dos impositivos e das
dificuldades impostas pela vida.
Nossas incompetências têm corrido mais
depressa do que a vontade pelo ser competente. Somos vendedores de coisas que
não existem. Nossas vozes estão sobrepostas a dos outros. Temos um civismo
questionável. Não colaboramos com a cooperação. Sem ela, como nos trouxe
Cecília Meireles, “não há como termos grandes realidades”. Nosso hino possui
uma letra incompreensível para a maioria, mas todos nós fomos obrigados a
decorá-lo.
Não há desculpas para a nossa
incompetência. Nossas burocracias existem porque não confiamos uns nos outros. Assinamos
sem ler porque ler dá muito trabalho, exige tempo e disposição. O código de
ética é escrito por muitos que não a possuem. A feira talvez faça menos barulho
do que a nave de uma igreja. Fazemos mais do mesmo, lotamos as agendas dos
nossos filhos e, ao findar do dia, exaustos estamos do não fazer, nos
envaidecemos pelas entregas, muitas vezes, inúteis. E a agenda de nossos
filhos? Cumprida com louvor, enquanto recebemos, pelo whatsapp, o
diagnóstico de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade dos nossos,
ditos, filhos.
Somos todos estes. Se há críticas, é
para todos nós. Se há discussões, todos nós deveríamos estar nelas.
Desagregamos. Como não adoecermos? Como não sermos incompetentes? Mas não há
desculpas. A culpa talvez seja de Machado. Não temos a genialidade dele.
Precisamos ser um nítido conhecedor
sobre nós mesmos. E para isso, somente permitindo que a nossa competência
trabalhe, ao mesmo tempo que a nossa competência incompetente se recolha ao
lado, como aprendiz. Mas é um longo trajeto. Bom será reforçarmos as solas dos
nossos sapatos porque a caminhada se configura a nossa frente.
Temos cotidianos desorganizados. Como
a nossa competência se realizará? Sem ordem, difícil encontrar o que
precisamos. Não falo de uma ordem parasita, arbitrária, que imobiliza, mas de
uma ordem que nos ajuda a buscar a nossa trajetória com serenidade, e a,
principalmente, nos dedicar à vida com destreza, ritmo e velocidade compatíveis
com quem somos.
Perdemos a conexão com a nossa
essência. A investigação acerca de quem somos se perdeu. Estamos concentrados no indivíduo que devemos
representar para que ninguém nos cobre aquilo que não podemos dar. Um abismo
que abrimos de forma competente. Desta forma, serenados, vivemos
a vida de seres que esperam e que, há tempos, abdicaram das perguntas. Seres
que caminham por trajetos ilusórios.
Criamos uma conveniência do atraso e
da incompetência. Reagendamos prazos. “Tivemos um imprevisto”, dizemos. Somos inabilitados
para os compromissos de longa duração. E a competência é algo a ser atingido somente
para um projeto de longa duração. Mas em função da enorme ênfase que damos ao conhecimento
de curto prazo, nossas realidades se explicam por si só. Intérpretes são
desnecessários.
Muitas vezes, somos uma sequência de
rupturas e de contradições, o que dificulta a construção de um claro projeto
para as nossas vidas: competência.
Quero encerrar este texto, mas não a
reflexão, com um pensamento de Cecília Meireles, que diz: “Viver é uma obra
de paciência e de disciplina”.
Paciência e disciplina são resultados
da competência. Não há como avançarmos sem elas. Competência requer tempo de
construção, transcorrer de passos favoráveis ao nosso desenvolvimento e a nossa
expansão.
Há caminhos e rotas de saídas. E as
sinalizações destas rotas e destas saídas estão evidentes.
Queremos?
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