domingo, 8 de novembro de 2020

Convento inabitado

Para este texto, parto de uma reflexão que diz: “não é freira, mas trabalha lá há tanto tempo que adotou o mesmo tom”, do livro Exílio, de Lya Luft.

Qual seria o tom da fala de uma freira?

São muitas as reflexões que podem ser feitas acerca deste pensamento. Mas o recorte que faço, para poder escrever este texto, relaciona-se com a palavra influência.

Somos influenciados. Influenciamos. Somos influenciáveis. Em todos os tempos. Em todos os modos. Em todas as conjugações.

O verbo influenciar nasceu no século XIX, formando-se a partir do termo influência, palavra com origem no latim medieval influentia, cujo sentido era o da ação exercida pelos astros sobre os homens. Com o passar do tempo, o conceito de influência permaneceu, independentemente da questão sobre os astros, no entanto, agora, com o sentido de exercer uma ação sobre algo ou alguém.

Somos resultados. Não somos inéditos. Somos a soma de estranhos e de influências, em nós. Somos uma peça de teatro já na quarta edição, revisitada, reescrita e reeditada. Somos a fala da freira, e também a do padre. Somos o grito da feira e da fera. Somos a raspa do tacho e o começo do pote. Somos a gíria e o culto. Somos povo. Somos indivíduos. Somos a sequência dos gestos dos nossos pais, no mesmo minuto que somos o filtro do que não queremos dizer. Somos a fala da freira porque não percebemos que o convento fez morada, em nós, e nós fizemos morada, há tempos, nele. Nosso convento habitado.

Somos excessos de escassos em forma de desperdícios. E também reciclamos o lixo. Falamos como estrangeiros numa terra que deveria ser conhecida. Exilamo-nos. Um exílio à moda de Lya Luft, mas também à nossa moda, porque de exílio entendemos. Num convento, exilar-se é quase uma segunda pele, que faz parte do nosso projeto de anulação, de alienação e de nosso projeto vitorioso de ativismo de sofá. Adotamos o mesmo tom da fala de uma freira porque servimos as nossas contradições, as nossas conveniências, as facilidades. Somos influenciáveis: nem percebemos que já estamos falando como elas. Quando nos dermos conta, rejeitaremos a originalidade da nossa voz porque já teremos nos acostumado ao som desta segunda voz, uma voz que talvez vá mais ao encontro das nossas necessidades. Imitamos. Seguimos modismos. Imitamos sem perceber. Imitamos porque percebemos.

Adotamos tons iguais por pura convivência, por pura anuência, por pura conivência. Por puro cansaço, pelo quase, pela dúvida, pela naturalização, pela preguiça, pelo não perceber, pelo perceber, pelo ceder. Pela opressão. Pelo gosto do igual. Para passar despercebido como um uniforme vestido, bem passado e sem vincos. De forma consciente ou não. Qual tem sido o nosso caminho?

Somos habitados por influências, por isso nossos conventos vão habitados e habituados e cheios de habitantes. Necessário fazer mais quartos. Alguém ficará feliz com tantas construções. O que segue vazio, sem tantas demandas de construção?

Alguns lugares esvaziaram-se e esvaziaram para que conventos fossem preenchidos. E como há vozes de freiras que, imitadas, seguem preenchidas! Pobre que somos. Tudo o que nos cerca escreve um pedacinho, em nós. Esses pedacinhos construídos debruçam-se sobre nós com muita curiosidade, e nos formam, como o tom da fala de uma freira. Muitas vezes percebemos, outras tantas, não.

Influenciados somos porque o nosso estar, no mundo, esbarra no outro. Para vivermos, precisamos conviver. Para convivermos, precisamos nos misturar ao estar do outro, no mundo.  Influenciáveis somos todos porque a fragilidade, a incompletude e a complexidade nos formam. Nossas fronteiras não são fixas, e ao mudarmos de lugar, outras áreas ficam descobertas. E nestas áreas descobertas, o nosso lado influenciável mostra-se sem muitos esforços.

O dia a dia copiado, imitado, seguido vai se desenhando e perdendo o sentido de tanto ser repetido. Começamos a falar uma gíria que não falávamos, a imitar um jargão vulgar, a colorir os nossos cabelos do mesmo tom, a frequentar lugares que nada nos dizem. De tantas influências que recebemos, passamos a naturalizar o que não poderia ser naturalizado, passamos a utilizar o mesmo tom de fala de uma freira...quem é a freira? Quem somos nós? Nossas vozes sobrepostas, desconhecidas, inabitadas não habitarão os conventos, nossa nova casa...

Influências que nos burilam, formam, nos fazem melhores. Influências que nos imprimem em folhas tortas, amassadas, velhas. Podemos escolher as nossas influências? Apenas as conscientes, as visíveis, as fáceis de serem percebidas. Se viver e acertar fosse fácil, qual seria a nossa razão?

A convivência nos faz adotar hábitos dos outros. A anuência nos ajuda a consentir aquela fala emprestada. Por puro cansaço, a busca do sentido perde o sentido. Por puro quase, o “deixar pra lá” passa a ser um lugar bastante frequentado por nós. Por pura dúvida, deixamos de perguntar e, assim, proliferamos dúvidas que nos deformam de tal modo que não nos reconhecemos mais. Por pura naturalização, o tom de fala de uma freira não nos incomoda mais, gostamos, e os nossos ouvidos passam a confundi-lo com a nossa voz. Por puro não perceber, passamos a caminhar de forma bem parecida com aquele que nos influenciou. Por puro perceber, fazemos de conta que está certo e que os absurdos são construções arbitrárias da nossa mente acostumada ao pranto. Por puro ceder, fortalecemos a banalização das nossas lutas e erguemos estátuas ocas. Por pura opressão, falar passa a ser uma arma contra nós. Por puro gosto do igual, os conventos vão ficando habitados, lotados e acessíveis.

Inabitados, vazios e isolados seguem aqueles que insistem no equilíbrio, lutadores de uma luta insolente e ingrata. Inabitados porque emprestam as próprias possibilidades àquele que vai.

Somos conventos habitados porque não nos frequentamos. Não construímos intimidade conosco, por isso não há como percebermos os nossos detalhes. Não há convivência. Falamos o mesmo tom da fala de uma freira porque conviver conosco é exaustivo, dolorido e difícil. O pouco tempo que temos conosco dedicamos ao externo.

Somos um ir-e-vir, somos um e o outro. Influências que nos constroem e que nos destroem. Que nos formam e que nos deformam. Somos um aglomerado de vivências, experiências e falas dos outros. Somos sequências de algo que foi começado por alguém, que não sabemos quem. Somos seres em construção, inacabados, como nos disse Paulo Freire. Somos andanças pelo mundo. A influência, portanto, é inerente à vida.

Da influência, em si, não há como escaparmos. Denota lacuna grave aquele que acha que pode contê-la, detê-la, impedi-la de exercer o seu poder. Não há como fazermos uma revisão de quem somos, e dividirmos a nossa individualidade em partes iguais de influência que sofremos versus construções puramente nossas.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensando de John Adams, o sexto presidente dos Estados Unidos, que diz:

“a influência de cada ser humano nos outros, na própria vida, é um tipo de imortalidade”.

Adotarmos o mesmo tom de fala de uma freira pode ser uma possibilidade. De uma possibilidade, nasce uma realidade. De uma realidade, nasce uma vivência. De uma vivência, nasce uma experiência. De uma experiência, nasce um valor. E um valor encerra, em si, uma certa imortalidade. Somos todos imortais, uns nos outros, por tudo o que fazemos, não fazemos, influenciamos.

E como sabermos se as influências têm sido boas ou não, em nossas vidas? Vários devem ser os caminhos e as respostas. Mas penso que uma possível resposta a esta pergunta seja começarmos a perceber se estas influências têm nos levado de volta para o nosso verdadeiro lar, que é o espaço que há dentro de cada um de nós. Não um convento. Não uma feira. Não um local externo. Mas dentro de nós. Se estivermos fazendo este caminho de volta, as influências terão valido a pena.

Uma influência boa nos leva de volta para casa, nos ajuda a renunciarmos ao nosso próprio ego e nos faz, sem interrupções, um convite para a paz que trabalha e para uma esperança que não espera. Uma influência ruim nos coloca num estado de emergência, nos proporciona conexões falhas, supérfluas e doentias, e nos dá poderosas ferramentas para explorarmos o lado esgarçado e cansado.

É preciso abdicarmos das influências que nos diminuem. Mas fazer isto cansa e dá trabalho.

Que os conventos, verdadeiros, sigam operantes, assim como as freiras e as próprias vozes. Mas que estes lugares comecem a dar sinais de esvaziamento, de desocupação porque muitos de nós estarão voltando para as suas casas, para os seus interiores, para os seus lugares. E, agora, nas nossas casas, como gratidão pela nossa volta, elas começarão a nos devolver os ecos de nossas vozes esquecidas que, há tempos, não ouvíamos porque ficamos muito tempo imitando o tom das falas das freiras. Nossas casas começarão a nos devolver os sons de nossas vozes, marcados em nossas paredes que, a partir de agora, e já não sem tempo, precisarão ser reinterpretados, reescritos e recordados.

E o som da fala de uma freira? Este será apenas uma recordação de uma viagem que fizemos, um dia, para um lugar chamado: convento, agora, inabitado.

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