segunda-feira, 5 de outubro de 2015

O que nos representa?

Muitas coisas. Nem sempre as coisas que me representam são as mesmas que te representam. Somos representados por coisas afins e distintas; semelhantes e opostas. O dinamismo da vida se dá nisto: nesta singularidade de diferenças de representações; nesta similaridade de forças.

A singularidade de diferenças de nossas representações será vivida e descoberta ao longo de nossa existência, de nossa relação e convivência com o outro. É isto o que também nos constrói e que vamos conhecendo no decorrer da vida. Não há um mapa a respeito, apenas trilhando o caminho é que se conhecerá esta singularidade de diferenças de nossas representações.

Ao passo que a similaridade de forças, que nos constrói da mesma forma, pode ser mais facilmente percebida por meio do comportamento do outro. E a angústia é um exemplo muito forte. Reconhecemos a angústia no outro porque também é facilmente percebida em nós. Percebemos quando o outro está angustiado pelo fato de isto nos ser familiar. Infelizmente ou felizmente, a angústia faz parte da vida, da nossa vida, e é uma velha companheira.

Digo infelizmente porque a sensação da angústia não é agradável. Mas se fizermos as pazes com ela, colheremos bons frutos, uma vez que ela é uma das nossas forças poderosas capazes de nos fazer conversar com as nossas sombras.

Há um poema maravilhoso, de Álvaro de Campos, que retrata bem este tema. Chama-se Esta Velha Angústia.

Esta velha angústia, esta angústia que trago há séculos em mim,

Transbordou da vasilha, em lágrimas, em grandes imaginações,

Em sonhos, em estilo de pesadelo sem terror, em grandes emoções súbitas

sem sentido nenhum.

Transbordou.

Mal sei como conduzir-me na vida, com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!

Se ao menos endoidecesse deveras!

Mas não: é este estar entre, este quase, este poder ser que..., Isto.

Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,

Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.

Estou doido a frio, estou lúcido e louco, estou alheio a tudo e igual a todos:

Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura

Porque não são sonhos. Estou assim... Pobre velha casa da minha infância perdida!

Quem te diria que eu me desacolhesse tanto! Que é do teu menino? Está maluco.

Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano? Está maluco.

Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou. Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer! Por exemplo, por aquele manipanso que havia em casa, lá nessa, trazido de África.

Era feiíssimo, era grotesco, mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.

Se eu pudesse crer num manipanso qualquer: Júpiter, Jeová, a Humanidade.

Qualquer serviria,

Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!

(Álvaro de Campos, Obra: Poemas. Heterônimo de Fernando Pessoa).

Fernando Pessoa costumava dizer que era impossível ser um só. Daí a criação de vários heterônimos. E Álvaro de Campos é um dos mais conhecidos. Fernando Pessoa foi um poeta e escritor português do século XIX. Criou heterônimos como extensões dele próprio, que funcionavam como representantes de seus outros “eus”. Apesar de os heterônimos serem autores fictícios, tinham sua personalidade e sua biografia. Heterônimos criados por Fernando Pessoa que, de forma brilhante, fizeram de sua obra uma referência na literatura mundial.

imagem tirada da internet

Encontramos nossos “eus” neste poema. Quem nunca se sentiu angustiado? Impossível.

Alguns filósofos defendem a tese de que a angústia é um sentimento moderno. Mas não sei se concordo. Talvez, no passado, não tínhamos este nome, angústia, mas acredito que ela sempre existiu, obviamente com as características de cada época.

A passagem que diz: “...Se ao menos endoidecesse deveras! Mas não: é este estar entre. Este quase, este poder ser que...”.

Estar entre. Este quase. Este poder ser que.

A angústia nos faz sofrer e fazemos sofrer o outro também. Ela é uma das marcas da nossa condição humana.

Somos complexos porque é muito difícil sermos simples. Vivemos numa inconstância e numa incerteza porque não sabemos quais são as nossas certezas. O que é certo?

A convivência nos é imposta, muitas vezes, por causa da conveniência de uma época. Mas não porque aquilo dá som a nossa voz. As conveniências impostas impedem a nossa expansão.

Eu só não faço o mal porque não tive oportunidade. Mas a intenção estava lá. É angustiante constatar isto. Mas somente quando constato, a oportunidade de mudança se apresenta para mim. É um convite à renovação, à mudança para melhor, porém por caminhos árduos.

A angústia do ser e do se tentar ser alguém.

Vivemos sonhos porque temos dificuldades de construir realidades ou de viver nelas. A imaginação e o sonho ganham forças frente às incertezas e os medos reais.

Pedem criatividade, mas punem os que erram. Só que não existe criação sem erro.

As novas gerações estão sendo reverenciadas como revolucionárias e com a missão de “consertarem” o mundo, mas quem começou a revolução, com todo o respeito, não foram eles. Aliás, foram pessoas que nem aqui estão mais. Dar sequência em algo criado e pensado não pode ser considerado revolucionário. É como caminhar por caminhos trilhados. Mastigar e engolir o pão é completamente diferente de fazer o pão.

É a angústia de assinar uma obra que não foi você quem fez. Aprenda a admirá-la primeiramente, depois certamente você terá seus créditos. Mas numa obra sua.

Exigimos protagonismo do outro, mas o que é ser protagonista? Não é ser o centro das atenções e ter o papel principal. Isto só funciona nas novelas e nos filmes. Ser protagonista é ter maturidade e responsabilidade na vida. Encarar as subidas, as descidas e os atolamentos dos pneus com a mesma disposição.

E ser coadjuvante? É saber a hora de se calar quando o outro precisar falar; é saber ceder o seu lugar para quem mais precisar sentar; é saber pedir desculpas a alguém. É saber abrir mão do seu desejo em prol do que é melhor para o grupo. É entender o seu papel no mundo e ter, na humildade, uma aliada e não uma propaganda para sua vaidade.

O que importa é a construção da obra que se dá por meio das duas forças: protagonista e coadjuvante. Portanto, as duas são necessárias.

Somos cobrados por coisas que não estamos preparados para dar. Mas não querem, muitas vezes, receber o que estamos preparados para dar. Por isto somos angustiados. Nossa sociedade é uma sociedade angustiada, vivendo em meio ao caos, à mistura de sensações. Vivemos tentando nos adequar em meio as nossas inadequações. Somos maiores do que os espaços que, muitas vezes, nos dão. E nos apertamos nos espaços. Isto é angustiante.

Passos iguais e passos adversos. Ora na igualdade; ora na adversidade. Reconhecemo-nos nas nossas representatividades de alegrias e de dores.  Nas diferenças e nas igualdades, somos únicos no nosso sentir, somos únicos no expressar aquilo que nos representa.

A angústia é uma força, porém precisamos enxergá-la como tal. Querer ganhar é saudável, mas querer ganhar sempre é doentio. Esta busca pelo inacessível (ganhar sempre) é o que nos angustia. Somos cobrados por vencer e ganhar troféus concretos. Mas não somos incentivados a vencermos e a ganharmos troféus intangíveis. Isto não cabe na nossa sociedade. Não há muito espaço para esta conversa.

É preciso usar a angústia como uma ferramenta de busca por nós mesmos. Valorizar o intangível. Aquilo que não se mede. O controle é importante, mas em excesso angustia. Querer ter todas as respostas angustia.

Usamos a angústia contra nós, e não a favor. E isto não é um sinal de inteligência. Estamos tão avançados no que se copia, como as commodities, e tão imersos no primitivismo daquilo que nos forma, como a ética, os valores, a relação com o outro. Temos uma relação de submissão com muitas coisas. Porém é preciso construir uma relação de troca, e sairmos desta submissão. Construir esta migração angustia porque não se aprende isto nos livros, só na vida.

Quando usamos a angústia a nosso favor e a favor do outro, construímos. Quando usamos a angústia contra nós e contra o próximo, destruímos. Aquilo que nos constrói nos destrói. E isto parte do sentimento de angústia, de nos sentir ameaçados, de não sabermos o caminho a seguir. É preciso criar mecanismos que nos façam enxergar o diferente apenas como diferente e não como inimigo, para que a gente não queira destruí-lo.

A angústia se dá porque não há fronteiras, não há métodos. Para muitas coisas não há regulação. Precisamos saber lidar com as nossas inquietudes, com as nossas sombras, com as nossas dualidades. Isto é a vida. E isto angustia.

É preciso valorizar a caminhada e não só a chegada. Querer ser o campeão é louvável, saudável e mais que isto: é uma busca plausível daqueles que querem se superar. Mas saber que a vida também é feita de vice-campeonatos e saber aplaudir, de verdade, quem chegar em primeiro lugar, é nobre. E somente aquele que aceita a força da angústia como ferramenta de autodescobrimento e de autodesenvolvimento conseguirá fazer isto.

Encerro o texto com uma frase de Fernando Pessoa, que diz:

“É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos. ”

E uma das nossas companheiras no tempo da travessia será, certamente, a angústia. Se soubermos respeitá-la e acolhê-la, ela nos mostrará belas paisagens quando chegarmos.

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