terça-feira, 29 de setembro de 2015

Tirando satisfações com La Fontaine

Era uma vez...

...uma formiga e uma cigarra muito amigas. Durante o outono, a formiga trabalhou sem parar, armazenando comida para o inverno. Não aproveitou o sol, a brisa suave do fim da tarde e nem o papo com os amigos.

Enquanto isto, a cigarra só queria saber de cantar nas rodas de amigos e nos bares da cidade. Cantou durante todo o outono, dançou, aproveitou o sol e curtiu para valer, mesmo sabendo da proximidade do inverno.

Alguns dias se passaram, e o tempo começou a esfriar. Era o inverno começando.

A formiga, exausta, entrou para a sua singela e aconchegante toca, repleta de comida.

Mas alguém a chamava do lado de fora da toca.

Quando abriu a porta para ver quem era, ficou surpresa com o que viu. Sua amiga cigarra estava dentro de uma Ferrari com um aconchegante casaco de vison. E disse para a formiga:

- Olá, amiga, vou passar o inverno em Paris. Será que você poderia cuidar da minha toca? E a formiga respondeu:

- Claro, sem problemas! Mas o que aconteceu? Como você conseguiu dinheiro para ir a Paris, ter este carro e estas roupas?

E a cigarra respondeu:

-Imagine você que eu estava cantando em um bar na semana passada, e um produtor gostou da minha voz. Fechei um contrato de seis meses para fazer show em Paris. Foi isto o que aconteceu. A propósito: você quer alguma coisa de lá?

- Sim, claro, quero sim, respondeu a formiga. Caso você encontrar o La Fontaine por lá, manda ele ir para...!

Após o momento “riso”, sabemos que esta não é a história original escrita por La Fontaine, um famoso poeta e fabulista francês que viveu no século XVII. Na história original, quando o inverno chega, a cigarra, sem abrigo e sem alimento, pede ajuda à formiga que, ao contrário dela, tudo fez para se preparar. Por isto ela tinha abrigo e alimento. E o ensinamento é este: a de que precisamos nos preparar para os invernos da vida. Concordamos com isto. E apesar de sabermos que o ensinamento da fábula está correto (preparar-se, ter foco e planejamento), é muito importante que a gente não se esqueça de que não vivemos num mundo perfeito, ou seja, em muitos momentos vamos nos preparar, vamos nos planejar, e simplesmente alguém mudará as regras. E aí? O que faremos com todo o nosso planejamento? E se o inverno não chegar? O que faremos com todo o estoque da nossa comida? Se a dividirmos com alguém será um bom começo...

Ao lermos esta divertida versão moderna da fábula, muitas reflexões podem ser feitas. Eu diria até que esta nova versão foi bastante irônica, muito além de divertida.

A formiga se preparou demais, lutou, estabeleceu metas, abriu mão do descanso, da diversão, teve foco e planejamento. Ao chegar o inverno, foi recompensada: tinha abrigo quente e armários cheios de alimentos. Por que, então, ela se revoltou, se ela fez tudo certinho e, ao chegar o inverno, estava com tudo pronto? Ela não deveria estar feliz por ter dado certo o seu planejamento, cuidadosamente dividido em etapas?

Ela se revoltou porque, apesar de todo o seu esforço, cansaço e trabalho terem permitido que ela construísse uma base sólida para o seu inverno, a cigarra fez absolutamente tudo ao contrário, e simplesmente tirou a “sorte grande”, na visão da formiga. No fundo, lá no fundinho, a formiga acreditou que estava fazendo o que era certo. Ela esperava que a cigarra se desse mal por não ter se preparado o tanto que ela se preparou. Portanto, criou a falsa expectativa de que se sairia melhor do que a cigarra por ter seguido as regras, a ordem, o planejamento. Afinal não é o correto? Pode até ser, mas não foi o que aconteceu.

Fiquei pensando na palavra expectativa: espera. Expectativa é esperar por algo. Mas este “algo” pode não ocorrer. Acho que foi isto o que fez a formiga se revoltar. Se ela tivesse feito todo o seu trabalho com convicção e acreditando ser este o melhor, e não somente por obrigação, como foi o caso, talvez ela tivesse se revoltado menos. Inúmeras serão as vezes as quais nos sacrificaremos por algo, e simplesmente alguém irá nos dizer: “ah, te agradeço, mas não será mais preciso...”.

Preparar-se é fundamental, e neste preparo, infelizmente, vamos precisar abrir mão de muitas coisas. Faz parte do processo. Porém, é preciso conscientizar-se de que abrir mão de coisas na vida em prol de outras é arriscar-se ao engano, ao erro, ao não dar certo. Nem sempre o fato de seguirmos as regras, seguirmos o planejado fará que nosso plano dê certo. Pode ser que sim, pode ser que não. Porém se tivermos esta consciência de que correr riscos é inerente a qualquer processo da vida, e nos preparar para minimizá-los, termos planos alternativos e saídas “de emergência”, certamente se alguém, repentinamente, mudar as regras do jogo, estaremos fortalecidos para seguirmos para o nosso próximo plano. E foi o que faltou à formiga. Ela não tinha um próximo plano. Ela acreditou, exclusivamente, numa execução de um plano que sempre vinha dando certo. E ver alguém se “dando bem” sem fazer muito esforço foi motivo de revolta. A formiga tinha razão nesta parte. Mas na vida nem tudo acontece com a justiça que esperamos. Portanto é preciso estar preparado.

Um outro ponto que também faltou à formiga foi ficar extremamente apegada ao processo, às regras. É muito importante ter uma visão do todo, delegar, acreditar no intangível, no mágico, naquele “milagre” que acontece nas nossas vidas, e que não sabemos explicá-lo. É preciso acreditar naquela mão que nos alcança, mas que não sabemos de onde ela veio. Dar um pouco de leveza à vida, que foi o que a cigarra fez.

A cigarra, apesar da sua irresponsabilidade de deixar tudo na mão do acaso, uma coisa fez de certo: acreditou nela (sabia cantar) e expôs o seu talento acreditando que alguém pudesse descobri-lo, que foi o que aconteceu. Isto é fundamental. Acreditar na gente, mesmo que todos digam o contrário e que tudo esteja contra nós. Nunca podemos deixar de acreditar em nós. A cigarra acreditou nela; a formiga acreditou no processo. Estes dois pontos são essenciais para que as coisas funcionem, e funcionem bem. Porém estes dois itens precisam caminhar juntos, e não apartados. Portanto, se a formiga tivesse acreditado nela e no seu talento, além de tudo já realizado, talvez não tivesse se revoltado.

A formiga e a cigarra somos nós. Sempre. Temos as duas dentro de nós. Ora uma, ora outra. O bem e o mal. A questão é: a quem alimentamos mais? Acredito que o mais importante seja a consciência sobre isto, para que possamos aproveitar o melhor que cada uma delas poderá nos proporcionar.

Reflexões sobre o texto:

- nem sempre, ao nos esforçar, seremos reconhecidos e recompensados;

- saber lidar com a frustração é uma sabedoria. O grau da nossa frustração está totalmente ligado ao tamanho da nossa expectativa. A nossa expectativa deve ser realista. Pense nisto;

- quanto mais realista for a nossa expectativa, o nosso objetivo, a nossa meta, o nosso plano, menor será a nossa frustração. O realista considera os riscos e as chances de aquilo não acontecer ou de não dar certo;

- lembre-se: risco não se evita, se administra. Seria importante as Empresas saberem disto também. Querem inovação e criatividade, porém sem erros, sem riscos, de preferência;

- buscar o equilíbrio: nem a escassez (formiga) e nem o excesso (cigarra);

- o texto faz uma sátira ao padrão existente: isto é certo; isto é errado. É preciso se lembrar do contexto que transforma o certo em errado e vice-versa;

- fundamental andar por caminhos não trilhados e aceitar que não podemos controlar tudo na vida. Acreditar nos “milagres” e principalmente em nós;

- a formiga, na sociedade, é vista como a mocinha, o modelo correto a se seguir; a cigarra como a vilã, a irresponsável, o modelo a não se seguir. Não há esta segmentação: mocinho e bandido. Somos esta dualidade. O mocinho, por si só, não consegue se sustentar; idem para o vilão. Trafegamos pela bondade e pela vilania, mesmo que disfarçadamente;

- é fundamental colocar o lúdico em nossas interações, na nossa vida. O humor dá cor e nos ajuda a pensar e a refletir sobre as nossas sombras. Se não tivéssemos lido esta sátira em forma de fábula, talvez não pensássemos em todas estas reflexões;

- precisamos mergulhar nas nossas sombras. E estes textos nos fazem conversar com elas;

- essencial dar mais leveza para as nossas relações conosco e com o nosso próximo;

- a formiga é silenciosa; a cigarra faz questão de que todos ouçam o seu canto. Silêncio e voz: duas forças que se misturam e que nos formam. É preciso pensar nisto, também;

- é preciso cuidar do caminho a ser percorrido, porém valorizar o tanto que já se andou.

Enfim, muitos foram os aprendizados, as reflexões e as lições. E é preciso enfrentá-los, nem sempre com facilidade, nem sempre com bússola, nem sempre com coragem. Mas, como diz um maravilhoso provérbio africano:

“Mares tranquilos não produzem bons marinheiros. ”

Que nos lembremos das nossas formigas e das nossas cigarras internas em nossas viagens pela vida, seja por terra ou por mar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário