terça-feira, 17 de novembro de 2015

Muito mais que um minuto

Ironicamente, sexta-feira passada foi o dia internacional da gentileza. Mas o que é isto mesmo? Acho que esquecemos.

Mesmo se buscarmos o significado desta palavra no dicionário para avivarmos a nossa memória, de nada adiantará. Não vamos usá-la, não é mesmo? Então por que perdermos tempo em recorrermos ao dicionário? Deixa a palavra lá, guardada no papel, quieta.

Enquanto a inflexibilidade e a dureza de nossos corações ditarem as regras do nosso viver, a gentileza não terá vez. A gentileza é incompatível com a inflexibilidade. E como a inflexibilidade tem sido muito bem alimentada por nós, por todos nós, isto explica o motivo de tanto sucesso.

A palavra gentileza deriva do Latim gentilis, que significa, entre outras coisas, bem tratar os outros. E tratar bem os outros foi algo que não vimos na sexta-feira passada.

O que aconteceu com o povo francês foi mais uma das barbaridades que evidencia, há tempos, a nossa mediocridade, o colapso no qual vivemos, a nossa pequenez. Desculpe a franqueza: mas somos medíocres. Se assim não fôssemos, não aceitaríamos este lugar pequeno que nos colocamos. Este lugar no qual a elevação moral não cabe, mas nos faz falta. Este lugar cuja vaidade, poder e estatus têm lugar de destaque. Este lugar cuja elevação moral, amor e perdão perdem força e são ridicularizados à medida que o poder ganha mais um holofote.

O dia mundial da gentileza existe para nos mostrar a importância deste sentimento. Quem não é gentil, quem sofre por não carregar gentileza dentro de si também sofre de inflexibilidade, de intolerância e de intransigência. E o que somos? E o que foi isto que aconteceu?

A França somos todos nós. O que aconteceu lá poderia ter acontecido em qualquer País, com qualquer povo.

Pouco ou quase nenhum uso fazemos da gentileza. Raríssimas são as exceções. Enferrujou por falta de utilização ou enferrujou porque não estamos encontrando um sentido para utilizá-la?

Recentemente, assistindo a um programa de televisão sobre reciclagem do lixo, uma destas pessoas que fazem a reciclagem ouviu certa vez de uma outra pessoa:

- “Que chato, você é uma catadora de lixo...”... E ela respondeu:

- “Não, não sou uma catadora de lixo...Sou uma recicladora do lixo que você produziu...”

Acho que uma das causas da guerra e, consequentemente, da falta de gentileza, é esta: não nos apropriamos do problema. O lixeiro passa na rua para recolher o nosso lixo, mas a gente buzina para ele ou para o carro ao lado. Queremos ultrapassar. Agimos como se o nosso tempo fosse mais importante. Mas afinal: por que é, mesmo, que o lixeiro está lá? Ah, sim, lembrei: para recolher o lixo que nós produzimos.

Não temos paciência para aguardar o lixeiro passar, não somos gentis e respeitosos com quem carrega e retira o nosso lixo, como exigir tolerância frente à diferença de religiões, diferentes ideias? A inflexibilidade e a dureza dos nossos corações criam uma casca em nós. Estamos endurecidos. Estamos doentes. E há tempos.

Ainda temos a mentalidade de garantir o nosso. E o outro? O outro que se vire. Nosso mundo adoeceu. E faz tempo. E talvez estejamos tão ocupados fazendo coisas desnecessárias, que não percebemos isso. A doença se instalou e o remédio para isto está sendo bem amargo.

A nossa mediocridade está por toda parte. E acho que este é o problema, pelo menos um deles. A dificuldade do nosso semelhante ainda não é vista como a nossa dificuldade, também. Quando não enxergamos a dificuldade do outro como nossa é como se vivêssemos em mundos diferentes.

Lindas foram e têm sido as homenagens feitas às pessoas da França, mas infelizmente isto não as trarão de volta, nem tampouco mudarão os planos das mentes doentes que criaram esta triste situação.

A guerra está instalada. E há tempos. Ela está por toda parte, no mundo todo. E é preciso acabar com ela. Enquanto o mundo estiver em guerra, nós estaremos em guerra. Ontem foi a França. E amanhã, quem será?

A guerra está na dor dos imigrantes que fogem em busca de uma vida digna e decente. Os imigrantes não querem participar desta guerra. Por isso, foram obrigados a deixarem suas casas e tudo o que construíram em busca de uma possível sobrevivência. Alguns países construíram cercas elétricas em suas fronteiras para evitarem a passagem de mais imigrantes. A guerra é isto. Quando damos as costas para quem nos pede ajuda e socorro, se instala a guerra. E se nós fôssemos os estrangeiros? Será que tentaríamos pular a cerca?

A guerra está no rompimento das barragens, na cidade de Mariana, que causou um dos maiores desastres ambientais do mundo. O desastre ecológico não tem precedente. Muitas espécies de peixes estão sujeitas à extinção devido à falta de oxigênio da água. Uma comunidade inteira foi destruída e todos os que sobreviveram foram obrigados a deixarem tudo para trás. E agora aguardam reparos (se é que são possíveis) para danos irreparáveis como a dor emocional de olhar para a sua terra e vê-la completamente destruída. Isto é a guerra. O Ministério Público, na época, não deu aval para este contrato, e ainda recomendou à Empresa que fizesse um laudo porque via problemas e irregularidades no local. Além de o Ministério Público não ter sido ouvido, foi ainda chamado de burocrático, conservador e contrário à evolução. E o que é isto senão a guerra?

Um senhor de pouco mais de 60 anos e várias pessoas, além do Corpo de Bombeiros e do IBAMA estão tirando, da água do Rio Doce, da região de Mariana, espécies de peixes e os conservando em cativeiro para protegê-los de uma triste extinção. Mesmo arrasados com tudo o que aconteceu, ainda conseguiram unir forças para salvarem parte das espécies do Rio. Apelidaram o projeto de “Arca de Noé”.

E ainda temos de ouvir alguns poucos jovens arrogantes dizerem que vão salvar o mundo que as gerações atuais estão destruindo. Deveríamos ser todos um. É preciso lembrar que um dos principais terroristas tinha 27 anos, apenas! Mas foi o senhor de 60 que pensou na proteção dos peixes. Somos todos um: assim deveria ser. A idade e a geração? Pouco importam.

Guerras silenciosas. Guerras barulhentas. Guerras externas. Guerras internas. Não importa a natureza: são guerras. E a guerra não deveria existir.

A guerra sempre nos dá a sensação de termos chegado tarde. Bem tarde. Sempre tarde. As pequenas guerras anunciadas. Os conflitos preeminentes. Os recados dados e não ouvidos.

De quem é a culpa? De todos nós, de todos aqueles que acreditam na guerra. De todos aqueles que fazem a guerra. Seja aqui, seja na França, seja ao redor do mundo.

Precisamos de muito mais do que um minuto de silêncio. Muito mais. Muitos atletas dedicaram um minuto em prol da França. Fizemos reflexões e nos chocamos diante o que aconteceu. Mas passado o minuto de silêncio, a corrida de Fórmula 1 começou, o jogo de basquete teve início, a bola rolou no estádio de futebol e nós, simples mortais, voltamos para as nossas rotinas. Mas e depois do minuto de silêncio? O que mais podemos fazer?

Temos muito discurso e pouca ação. Este minuto de silêncio deveria servir, além da homenagem póstuma, como uma antecipação. O que está acontecendo no mundo que já deveríamos saber? Será que os avisos não tinham sido dados? Será que fomos avisados, mas não percebemos? É preciso saber e se antecipar aos explosivos colocados no nosso caminho. Sabemos que eles existem. Mas aonde eles estão?

Ontem a Presidente do nosso País disse que é preciso tomar cuidado com o terrorismo. Mas o que, efetivamente, isto quer dizer? Como tomar cuidado? Como prevenir-se? Discurso vazio é um convite para as guerras. Está aí um exemplo de um discurso vazio.

Alguém precisa erguer o braço e hastear a bandeira branca. Mas e a vergonha de pedir paz? Vivemos num mundo invertido, no qual pedir e promover a paz são sinais de fraqueza. Lutar e guerrear são sinônimos de força.

Penso que a força está justamente na paz que promovemos. A fraqueza está no tumulto e na guerra que criamos em prol de ideais doentes. Adoecemos. Medir forças com o inimigo é dar munição a ele. Não estamos lutando de igual para igual. Se pararmos de medir forças com ele e buscarmos a paz como caminho, o inimigo será desestabilizado. Mas quem começa?

A guerra traz como inimigo principal a gente mesmo. Criamos este mundo doente. E agora não adianta marcar uma consulta. Tarde demais. O que aconteceu na França é um exemplo deste chegar tarde demais.

A guerra está nas comunidades carentes que vivem acordando com disparos entre policiais e bandidos. E as crianças? Ficarão em casa, terão suas aulas interrompidas mais uma vez. Isto é uma guerra.

Precisamos nos antecipar. Perceber e ouvir os recados. Mas como chegar antes se ainda temos dificuldades de doarmos o que temos em excesso? O excesso nos representa e nos diferencia de quem vive na privação. O excesso cega. A privação adoece.

Drogas. Trabalho escravo infantil, prostituição, descaso, pessoas morrendo em corredores de hospitais por falta de assistência. Péssimo atendimento em diversos órgãos e em diversas instâncias. Convênios médicos falidos por corrupção. Ética fora da agenda. Isto é a guerra.

Guerras no trânsito. Veículos como armas em mãos dos desavisados.

O nosso mundo chora. Os animais estão morrendo. Muitos já morreram. A natureza dá sinais de fúria e de revolta. O Rio Doce agora chora também.

É preciso um sentimento de unidade, unicidade, pertencimento. Apropriar-se.

Poderíamos estar em festa se não fosse a nossa escolha pela guerra. Escolhemos este caminho. Só estamos colhendo os frutos de nossa própria plantação.

Ainda parece que não nos cansamos de sofrer. Se estivéssemos cansados, escolheríamos outros caminhos. Se ainda optamos pela guerra, é porque, infelizmente, o sofrimento ainda faz sentido. De forma insana e torta, mas ainda faz sentido.

Quero finalizar este texto, mas não a reflexão, com um verso da música Baianidade Nagô:

“...quem sabe um dia a paz vence a guerra, e viver será só festejar...”

Que a gente possa espanar o nosso dicionário e dar vida à gentileza. E quem sabe um dia a guerra se torne uma coisa remota, de um passado bem distante. Só depende da gente.

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