Ironicamente, sexta-feira passada
foi o dia internacional da gentileza. Mas o que é isto mesmo? Acho que
esquecemos.
Mesmo se buscarmos o significado
desta palavra no dicionário para avivarmos a nossa memória, de nada adiantará.
Não vamos usá-la, não é mesmo? Então por que perdermos tempo em recorrermos ao
dicionário? Deixa a palavra lá, guardada no papel, quieta.
Enquanto a inflexibilidade e a
dureza de nossos corações ditarem as regras do nosso viver, a gentileza não
terá vez. A gentileza é incompatível com a inflexibilidade. E como a
inflexibilidade tem sido muito bem alimentada por nós, por todos nós, isto explica o motivo de tanto sucesso.
A palavra gentileza deriva do
Latim gentilis, que significa, entre outras coisas, bem tratar os
outros. E tratar bem os outros foi algo que não vimos na sexta-feira passada.
O que aconteceu com o povo
francês foi mais uma das barbaridades que evidencia, há tempos, a nossa mediocridade, o colapso no qual vivemos, a nossa
pequenez. Desculpe a franqueza: mas somos medíocres. Se assim não fôssemos, não
aceitaríamos este lugar pequeno que nos colocamos. Este lugar no qual a
elevação moral não cabe, mas nos faz falta. Este lugar cuja vaidade, poder e
estatus têm lugar de destaque. Este lugar cuja elevação moral, amor e perdão
perdem força e são ridicularizados à medida que o poder ganha mais um holofote.
O dia mundial da gentileza existe
para nos mostrar a importância deste sentimento. Quem não é gentil, quem sofre
por não carregar gentileza dentro de si também sofre de inflexibilidade, de intolerância
e de intransigência. E o que somos? E o que foi isto que aconteceu?
A França somos todos nós. O que
aconteceu lá poderia ter acontecido em qualquer País, com qualquer povo.
Pouco ou quase nenhum uso fazemos
da gentileza. Raríssimas são as exceções. Enferrujou por falta de utilização ou
enferrujou porque não estamos encontrando um sentido para utilizá-la?
Recentemente, assistindo a um
programa de televisão sobre reciclagem do lixo, uma destas pessoas que fazem a
reciclagem ouviu certa vez de uma outra pessoa:
- “Que chato, você é uma catadora
de lixo...”... E ela respondeu:
- “Não, não sou uma catadora de lixo...Sou uma recicladora do lixo que você produziu...”
Acho que uma das causas da guerra
e, consequentemente, da falta de gentileza, é esta: não nos apropriamos do
problema. O lixeiro passa na rua para recolher o nosso lixo, mas a gente buzina
para ele ou para o carro ao lado. Queremos ultrapassar. Agimos como se o nosso tempo
fosse mais importante. Mas afinal: por que é, mesmo, que o lixeiro está lá? Ah, sim, lembrei: para recolher o
lixo que nós produzimos.
Não temos paciência para aguardar
o lixeiro passar, não somos gentis e respeitosos com quem carrega e retira o
nosso lixo, como exigir tolerância frente à diferença de religiões, diferentes
ideias? A inflexibilidade e a dureza dos nossos corações criam uma casca em
nós. Estamos endurecidos. Estamos doentes. E há tempos.
Ainda temos a mentalidade de
garantir o nosso. E o outro? O outro que se vire. Nosso mundo adoeceu. E faz
tempo. E talvez estejamos tão ocupados fazendo coisas desnecessárias, que não
percebemos isso. A doença se instalou e o remédio para isto está sendo bem
amargo.
A nossa mediocridade está por
toda parte. E acho que este é o problema, pelo menos um deles. A dificuldade do
nosso semelhante ainda não é vista como a nossa dificuldade, também. Quando não
enxergamos a dificuldade do outro como nossa é como se vivêssemos em mundos
diferentes.
Lindas foram e têm sido as homenagens
feitas às pessoas da França, mas infelizmente isto não as trarão de volta, nem
tampouco mudarão os planos das mentes doentes que criaram esta triste situação.
A guerra está instalada. E há
tempos. Ela está por toda parte, no mundo todo. E é preciso acabar com ela.
Enquanto o mundo estiver em guerra, nós estaremos em guerra. Ontem foi a França.
E amanhã, quem será?
A guerra está na dor dos
imigrantes que fogem em busca de uma vida digna e decente. Os imigrantes não
querem participar desta guerra. Por isso, foram obrigados a deixarem suas casas
e tudo o que construíram em busca de uma possível sobrevivência. Alguns países
construíram cercas elétricas em suas fronteiras para evitarem a passagem de
mais imigrantes. A guerra é isto. Quando damos as costas para quem nos pede
ajuda e socorro, se instala a guerra. E se nós fôssemos os estrangeiros? Será
que tentaríamos pular a cerca?
A guerra está no rompimento das
barragens, na cidade de Mariana, que causou um dos maiores desastres ambientais
do mundo. O desastre ecológico não tem precedente. Muitas espécies de peixes
estão sujeitas à extinção devido à falta de oxigênio da água. Uma comunidade
inteira foi destruída e todos os que sobreviveram foram obrigados a deixarem
tudo para trás. E agora aguardam reparos (se é que são possíveis) para danos
irreparáveis como a dor emocional de olhar para a sua terra e vê-la
completamente destruída. Isto é a guerra. O Ministério Público, na época, não
deu aval para este contrato, e ainda recomendou à Empresa que fizesse um laudo
porque via problemas e irregularidades no local. Além de o Ministério Público
não ter sido ouvido, foi ainda chamado de burocrático, conservador e contrário
à evolução. E o que é isto senão a guerra?
Um senhor de pouco mais de 60
anos e várias pessoas, além do Corpo de Bombeiros e do IBAMA estão tirando, da
água do Rio Doce, da região de Mariana, espécies de peixes e os conservando em
cativeiro para protegê-los de uma triste extinção. Mesmo arrasados com tudo o
que aconteceu, ainda conseguiram unir forças para salvarem parte das espécies
do Rio. Apelidaram o projeto de “Arca de Noé”.
E ainda temos de ouvir alguns
poucos jovens arrogantes dizerem que vão salvar o mundo que as gerações atuais
estão destruindo. Deveríamos ser todos um. É preciso lembrar que um dos
principais terroristas tinha 27 anos, apenas! Mas foi o senhor de 60 que pensou
na proteção dos peixes. Somos todos um: assim deveria ser. A idade e a geração?
Pouco importam.
Guerras silenciosas. Guerras
barulhentas. Guerras externas. Guerras internas. Não importa a natureza: são
guerras. E a guerra não deveria existir.
A guerra sempre nos dá a sensação
de termos chegado tarde. Bem tarde. Sempre tarde. As pequenas guerras
anunciadas. Os conflitos preeminentes. Os recados dados e não ouvidos.
De quem é a culpa? De todos nós,
de todos aqueles que acreditam na guerra. De todos aqueles que fazem a guerra.
Seja aqui, seja na França, seja ao redor do mundo.
Precisamos de muito mais do que um
minuto de silêncio. Muito mais. Muitos atletas dedicaram um minuto em prol da
França. Fizemos reflexões e nos chocamos diante o que aconteceu. Mas passado o
minuto de silêncio, a corrida de Fórmula 1 começou, o jogo de basquete teve
início, a bola rolou no estádio de futebol e nós, simples mortais, voltamos
para as nossas rotinas. Mas e depois do minuto de silêncio? O que mais podemos
fazer?
Temos muito discurso e pouca ação.
Este minuto de silêncio deveria servir, além da homenagem póstuma, como uma
antecipação. O que está acontecendo no mundo que já deveríamos saber? Será que
os avisos não tinham sido dados? Será que fomos avisados, mas não percebemos? É
preciso saber e se antecipar aos explosivos colocados no nosso caminho. Sabemos
que eles existem. Mas aonde eles estão?
Ontem a Presidente do nosso País
disse que é preciso tomar cuidado com o terrorismo. Mas o que, efetivamente,
isto quer dizer? Como tomar cuidado? Como
prevenir-se? Discurso vazio é um convite para as guerras. Está aí um exemplo de
um discurso vazio.
Alguém precisa erguer o braço e
hastear a bandeira branca. Mas e a vergonha de pedir paz? Vivemos num mundo
invertido, no qual pedir e promover a paz são sinais de fraqueza. Lutar e guerrear
são sinônimos de força.
Penso que a força está justamente
na paz que promovemos. A fraqueza está no tumulto e na guerra que criamos em
prol de ideais doentes. Adoecemos. Medir forças com o inimigo é dar munição a
ele. Não estamos lutando de igual para igual. Se pararmos de medir forças com
ele e buscarmos a paz como caminho, o inimigo será desestabilizado. Mas quem
começa?
A guerra traz como inimigo
principal a gente mesmo. Criamos este mundo doente. E agora não adianta marcar
uma consulta. Tarde demais. O que aconteceu na França é um exemplo deste chegar
tarde demais.
A guerra está nas comunidades
carentes que vivem acordando com disparos entre policiais e bandidos. E as
crianças? Ficarão em casa, terão suas aulas interrompidas mais uma vez. Isto é
uma guerra.
Precisamos nos antecipar.
Perceber e ouvir os recados. Mas como chegar antes se ainda temos dificuldades
de doarmos o que temos em excesso? O excesso nos representa e nos diferencia de
quem vive na privação. O excesso cega. A privação adoece.
Drogas. Trabalho escravo
infantil, prostituição, descaso, pessoas morrendo em corredores de hospitais
por falta de assistência. Péssimo atendimento em diversos órgãos e em diversas
instâncias. Convênios médicos falidos por corrupção. Ética fora da agenda. Isto
é a guerra.
Guerras no trânsito. Veículos como
armas em mãos dos desavisados.
O nosso mundo chora. Os animais
estão morrendo. Muitos já morreram. A natureza dá sinais de fúria e de revolta.
O Rio Doce agora chora também.
É preciso um sentimento de
unidade, unicidade, pertencimento. Apropriar-se.
Poderíamos estar em festa se não
fosse a nossa escolha pela guerra. Escolhemos este caminho. Só estamos colhendo
os frutos de nossa própria plantação.
Ainda parece que não nos cansamos
de sofrer. Se estivéssemos cansados, escolheríamos outros caminhos. Se ainda
optamos pela guerra, é porque, infelizmente, o sofrimento ainda faz sentido. De
forma insana e torta, mas ainda faz sentido.
Quero finalizar este texto, mas
não a reflexão, com um verso da música Baianidade Nagô:
“...quem sabe um dia a paz vence
a guerra, e viver será só festejar...”
Que a gente possa espanar o nosso
dicionário e dar vida à gentileza. E quem sabe um dia a guerra se torne uma
coisa remota, de um passado bem distante. Só depende da gente.
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