Recentemente,
num noticiário de televisão, ouvi a seguinte expressão: “os fantasmas saindo
dos armários”, referindo-se às velhas notícias que vão e que voltam sem a
mínima cerimônia. Dia sim, dia não, as mesmas falas, os mesmos problemas,
inclusive com as mesmas pontuações, os mesmos desrespeitos, as mesmas
infrações, os mesmos retrocessos. Damos vinte passos, mas voltamos vinte e
três. E estes três passos de diferença dizem alguma coisa. A questão é ouvi-los
e saber identificar o que dizem.
imagem tirada da internet
Fantasmas
existem por toda parte. Integram a vida humana. Nossos medos são fantasmas.
Nossas inseguranças são fantasmas. Nossas incertezas são fantasmas. Nossas
insatisfações são fantasmas. Nós somos os nossos fantasmas, que nada mais são
do que as nossas representações passadas, aquilo que deixamos inacabado, e
futuras, aquilo que queremos fazer, por exemplo, mas que achamos que não vamos
conseguir. Estamos sempre num passado ou num futuro e raramente no presente.
Num
passado, com nossas obras inacabadas, os nossos fantasmas fantasiam-se de
culpa, remorsos. Um pedido de desculpas que ficou para depois se tornou tão
mais para depois que até os fantasmas não se ocupam mais dele. E quando nos damos
conta, mais uma obra inacabada. Para retomá-la, a relação das complicações e
dos entraves que precisa ser trabalhada para que a obra seja concluída fica
imensa. Mais fácil será, então, ceder ao pedido dos fantasmas e deixar nossas
obras inacabadas neste mesmo passado, servindo de alimento para eles. É preciso lembrar que somos seres que
complicamos as coisas.
Um
passado incompleto de obras iniciadas por nós. Um passado de fantasmas alimentados
por nós. Fantasmas que não precisariam existir se não fosse a nossa capacidade
de criá-los enquanto deixávamos de viver. Esta incompletude causada por nossas
obras inacabadas nos perturba. E como temos dificuldades de lidarmos com os
nossos vazios e incompletudes, criamos mais fantasmas. E assim, vão se procriando
e criando autonomia dentro da gente.
Num
futuro, com aquilo que queremos fazer mas que teimamos dizer que não
conseguimos. Os fantasmas também se acomodam aí. Sempre estamos à espera de um fato novo para começarmos, mas nunca
começamos. Os fantasmas adoram as nossas incertezas. Enquanto nos enrolamos nelas, eles crescem na
certeza de nos controlarem e de nos ditarem o caminho que deveria ser
construído por nós, somente por nós. Num futuro, com as chamadas “um dia eu
faço”. Os fantasmas adoram este tal de “um dia”, porque se trata de algo que
nunca chegará. Um dia será sempre o próximo, e nunca o hoje. É preciso lembrar
que a procrastinação é o ingrediente principal das atitudes dos fantasmas. Sem
ela, eles não existiriam. E assim, vão se fortalecendo e conquistando
territórios dentro da gente.
Nossos
passados e nossos futuros são nossas representações do que acreditamos, do que
pensamos e do que esperamos. Imprescindível incluir o presente nestas nossas
representações. Somente ele dará conta de esvaziar os armários cheios de
fantasmas e o principal: não deixará mais que eles se acomodem lá ou em
qualquer outro lugar. Os fantasmas sabem disto e podem traçar estratégias. Mas
é preciso ser mais fortes que eles.
Os
fantasmas não são ruins, mas nos atrapalham um bocado. Ensinam-nos muito, mas
às custas de sofrimento e de dores que poderiam ser evitadas se visitássemos
mais os nossos armários. Geralmente os fantasmas ocupam muito espaço. E nossos
armários estão cheios deles. São silenciosos. Por isso, a presença deles não
nos importa tanto. Vamos mantendo uma convivência pacífica. Sabemos que eles
estão lá porque de vez em quando dão o ar da graça e surgem se avolumando e
reclamando soluções. Mas em instantes, empurramos todos eles para dentro do
armário, novamente, e a rotina volta mansamente.
A rotina é uma excelente saída para
camuflar o que teima em surgir. Ela dá voz à ignorância. O ar de normalidade
que a rotina demonstra, camufla operários noturnos.
Sufocá-los
significa, muitas vezes, dizer que estão certos, só não queremos ouvi-los. Eles
são fortalecidos por meio de nossa conduta. Na maior parte das vezes, ficam
quietos dentro do armário. Mas, de tempos em tempos, ouvimos batidas. São eles
pedindo para saírem. E como não deixamos, eles abrem a porta independentemente
de nossa vontade. Afinal, instalamos uma fechadura pelo lado de dentro, mas
havíamos nos esquecido. E quando eles saem, o melhor que fazemos é ouvi-los,
acolhermos as reclamações deles e
buscarmos, juntos, a melhor solução
que deve ser, acredito, ir até lá embaixo, no fundo, aonde o fantasma adora se
esconder. E de lá, trazê-lo à superfície, mesmo sendo um lugar desconfortável
para ele. E nesse lugar, o fantasma, ainda assustado, se mostrará para nós,
sedento da luz que somente nós poderemos dar a ele.
Quando agimos isoladamente, somos
ineficientes. Quando agimos em conjunto, damos vazão à inteligência para que
nos tornemos seres verdadeiramente sustentáveis.
A
luz que somente nós possuímos será capaz de transformar o fantasma em vida. Uma doação nossa para ele. O reflexo de
quem somos mostrado pela face do fantasma. Uma
doação dele para nós. Eles existem para comprovarem a nossa incompletude,
para atestarem que os nossos bastidores são, muitas vezes, desconhecidos de nós
mesmos. Nossas curvas, esquinas e lombadas são testadas e mostradas por eles,
que sempre se escondem e dormem em nossos territórios inexplorados e pouco
investigados, por nossa própria decisão.
Ir
até o fundo de nós para resgatá-los é provar as nossas forças não usadas, mas
disponíveis. Forças não usadas são forças extintas. Forças usadas são forças
renovadas.
O
olhar atento daquele que passa percebe fantasmas em nosso ser. Percebemos os
fantasmas nos outros. Também o riso previamente preparado e direcionado esconde
fantasmas. A fala pronta esconde fantasmas. O choro revela fantasmas. O cansaço
provoca fantasmas. O medo cria fantasmas. A vaidade e o palco excessivos
escondem inúmeros fantasmas. A verdade é que eles não mentem e se mostram
através de nós. O que eles refletem, portanto, é o nosso próprio eco, nossa
própria voz. Nosso eu escondido e solitário.
Quero
encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Gilbert Keith, escritor inglês do século
XIX, que diz:
“A
razão porque os fantasmas abandonaram os velhos castelos da Escócia é porque as
pessoas deixaram de acreditar neles.”
Que
a gente faça as pazes com os nossos fantasmas e os liberte. Fazendo as pazes
com eles, os nossos armários estarão limpos e arejados guardando o que, de verdade, importa. E mesmo que
insistam em voltar, que seja apenas para um breve chá conosco, numa rápida
visita, para nos lembrar de nossas fortalezas que não podem ser esquecidas.
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