quarta-feira, 13 de setembro de 2017

A visita dos fantasmas

Recentemente, num noticiário de televisão, ouvi a seguinte expressão: “os fantasmas saindo dos armários”, referindo-se às velhas notícias que vão e que voltam sem a mínima cerimônia. Dia sim, dia não, as mesmas falas, os mesmos problemas, inclusive com as mesmas pontuações, os mesmos desrespeitos, as mesmas infrações, os mesmos retrocessos. Damos vinte passos, mas voltamos vinte e três. E estes três passos de diferença dizem alguma coisa. A questão é ouvi-los e saber identificar o que dizem.

imagem tirada da internet

Fantasmas existem por toda parte. Integram a vida humana. Nossos medos são fantasmas. Nossas inseguranças são fantasmas. Nossas incertezas são fantasmas. Nossas insatisfações são fantasmas. Nós somos os nossos fantasmas, que nada mais são do que as nossas representações passadas, aquilo que deixamos inacabado, e futuras, aquilo que queremos fazer, por exemplo, mas que achamos que não vamos conseguir. Estamos sempre num passado ou num futuro e raramente no presente.

Num passado, com nossas obras inacabadas, os nossos fantasmas fantasiam-se de culpa, remorsos. Um pedido de desculpas que ficou para depois se tornou tão mais para depois que até os fantasmas não se ocupam mais dele. E quando nos damos conta, mais uma obra inacabada. Para retomá-la, a relação das complicações e dos entraves que precisa ser trabalhada para que a obra seja concluída fica imensa. Mais fácil será, então, ceder ao pedido dos fantasmas e deixar nossas obras inacabadas neste mesmo passado, servindo de alimento para eles. É preciso lembrar que somos seres que complicamos as coisas.

Um passado incompleto de obras iniciadas por nós. Um passado de fantasmas alimentados por nós. Fantasmas que não precisariam existir se não fosse a nossa capacidade de criá-los enquanto deixávamos de viver. Esta incompletude causada por nossas obras inacabadas nos perturba. E como temos dificuldades de lidarmos com os nossos vazios e incompletudes, criamos mais fantasmas. E assim, vão se procriando e criando autonomia dentro da gente.

Num futuro, com aquilo que queremos fazer mas que teimamos dizer que não conseguimos. Os fantasmas também se acomodam aí. Sempre estamos à espera de um fato novo para começarmos, mas nunca começamos. Os fantasmas adoram as nossas incertezas.  Enquanto nos enrolamos nelas, eles crescem na certeza de nos controlarem e de nos ditarem o caminho que deveria ser construído por nós, somente por nós. Num futuro, com as chamadas “um dia eu faço”. Os fantasmas adoram este tal de “um dia”, porque se trata de algo que nunca chegará. Um dia será sempre o próximo, e nunca o hoje. É preciso lembrar que a procrastinação é o ingrediente principal das atitudes dos fantasmas. Sem ela, eles não existiriam. E assim, vão se fortalecendo e conquistando territórios dentro da gente.

Nossos passados e nossos futuros são nossas representações do que acreditamos, do que pensamos e do que esperamos. Imprescindível incluir o presente nestas nossas representações. Somente ele dará conta de esvaziar os armários cheios de fantasmas e o principal: não deixará mais que eles se acomodem lá ou em qualquer outro lugar. Os fantasmas sabem disto e podem traçar estratégias. Mas é preciso ser mais fortes que eles.

Os fantasmas não são ruins, mas nos atrapalham um bocado. Ensinam-nos muito, mas às custas de sofrimento e de dores que poderiam ser evitadas se visitássemos mais os nossos armários. Geralmente os fantasmas ocupam muito espaço. E nossos armários estão cheios deles. São silenciosos. Por isso, a presença deles não nos importa tanto. Vamos mantendo uma convivência pacífica. Sabemos que eles estão lá porque de vez em quando dão o ar da graça e surgem se avolumando e reclamando soluções. Mas em instantes, empurramos todos eles para dentro do armário, novamente, e a rotina volta mansamente.

A rotina é uma excelente saída para camuflar o que teima em surgir. Ela dá voz à ignorância. O ar de normalidade que a rotina demonstra, camufla operários noturnos.

Sufocá-los significa, muitas vezes, dizer que estão certos, só não queremos ouvi-los. Eles são fortalecidos por meio de nossa conduta. Na maior parte das vezes, ficam quietos dentro do armário. Mas, de tempos em tempos, ouvimos batidas. São eles pedindo para saírem. E como não deixamos, eles abrem a porta independentemente de nossa vontade. Afinal, instalamos uma fechadura pelo lado de dentro, mas havíamos nos esquecido. E quando eles saem, o melhor que fazemos é ouvi-los, acolhermos as  reclamações deles e buscarmos, juntos, a melhor solução que deve ser, acredito, ir até lá embaixo, no fundo, aonde o fantasma adora se esconder. E de lá, trazê-lo à superfície, mesmo sendo um lugar desconfortável para ele. E nesse lugar, o fantasma, ainda assustado, se mostrará para nós, sedento da luz que somente nós poderemos dar a ele.

Quando agimos isoladamente, somos ineficientes. Quando agimos em conjunto, damos vazão à inteligência para que nos tornemos seres verdadeiramente sustentáveis.

A luz que somente nós possuímos será capaz de transformar o fantasma em vida. Uma doação nossa para ele. O reflexo de quem somos mostrado pela face do fantasma. Uma doação dele para nós. Eles existem para comprovarem a nossa incompletude, para atestarem que os nossos bastidores são, muitas vezes, desconhecidos de nós mesmos. Nossas curvas, esquinas e lombadas são testadas e mostradas por eles, que sempre se escondem e dormem em nossos territórios inexplorados e pouco investigados, por nossa própria decisão.

Ir até o fundo de nós para resgatá-los é provar as nossas forças não usadas, mas disponíveis. Forças não usadas são forças extintas. Forças usadas são forças renovadas.

O olhar atento daquele que passa percebe fantasmas em nosso ser. Percebemos os fantasmas nos outros. Também o riso previamente preparado e direcionado esconde fantasmas. A fala pronta esconde fantasmas. O choro revela fantasmas. O cansaço provoca fantasmas. O medo cria fantasmas. A vaidade e o palco excessivos escondem inúmeros fantasmas. A verdade é que eles não mentem e se mostram através de nós. O que eles refletem, portanto, é o nosso próprio eco, nossa própria voz. Nosso eu escondido e solitário.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Gilbert Keith, escritor inglês do século XIX, que diz:

“A razão porque os fantasmas abandonaram os velhos castelos da Escócia é porque as pessoas deixaram de acreditar neles.”

Que a gente faça as pazes com os nossos fantasmas e os liberte. Fazendo as pazes com eles, os nossos armários estarão limpos e arejados guardando o que, de verdade, importa. E mesmo que insistam em voltar, que seja apenas para um breve chá conosco, numa rápida visita, para nos lembrar de nossas fortalezas que não podem ser esquecidas.

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