Sempre que queremos dar outra
aparência ou identidade a algo, disfarçamos. O artista que muda a voz e a
vestimenta para dar vida ao personagem; a fantasia de carnaval que canta na
avenida; a criança que se veste como o super-herói; a blusa mais larguinha para
disfarçar os excessos; a tinta nos cabelos para disfarçar os brancos; o sono
inexistente para não se levantar do banco do metrô. Disfarces. Disfarces.
Disfarces: uma poderosa ferramenta de condução da vida. Por meio dele, vamos
moldando as coisas e situações a nossa maneira e, principalmente, vamos
direcionando o objeto de nossos disfarces (coisas ou pessoas) para aquilo que
buscamos e queremos.
Acredito que há dois tipos de
disfarces: os inofensivos e os abusivos. Apesar de os dois carregarem uma
intenção, o primeiro tem, como base, a manutenção da boa relação, o evitar de
um conflito, o diálogo e a preocupação com o bem-estar do outro. São disfarces
cuja intenção está no não brigar, no contornar uma situação aflitiva e
problemática. Afinal, quem nunca disfarçou
uma contrariedade em nome de algo maior? Quem nunca disfarçou uma tristeza apenas para não precisar dar explicações?
Quem nunca disfarçou um “bom dia”, no trabalho, quando se quis ficar calado,
apenas para não passar uma imagem de mal-educado? São diversos os exemplos. O todo
e o sentir de todos fazem a diferença aqui.
O segundo tem, como base, a
manipulação, a arbitrariedade, a ausência do outro, o monólogo. São disfarces
cuja intenção é levar o outro para um caminho que foi desenhado apenas pelo
manipulador. Um caminho que serve apenas aos interesses dele, porque este é o
tipo de ferramenta que ele utiliza para viver. O interesse do outro não
importa. O individual e o exclusivo fazem
a diferença aqui.
O caráter de um homem se mostra nas escolhas e nos contornos que ele
faz. Contornos que disfarçam para que o bem prevaleça.
As manipulações se mostram nas entrelinhas dos disfarces. Elas também
evidenciam o caráter de um homem cuja intenção é a de camuflar a sua perniciosa
essência.
Todo disfarce carrega uma
intenção. Resta-nos saber qual e decidir se continuaremos a alimentá-la.
imagem tirada da internet
O choro preso disfarçado pelo
esboço de um sorriso.
A conversa tensa disfarçada pelo
desvio do tema.
A doença crítica disfarçada pela
teimosia da esperança.
A fome disfarçada pelo prato que
chega com comida.
A rudeza de um diálogo disfarçado
pela compreensão e pela tolerância.
A ignorância do ato disfarçado
pelo saber que ainda não se conquistou.
A solidão disfarçada pela
companhia de um bom livro.
A tristeza do palhaço disfarçada
pelo nariz engraçado e pelo chapéu desengonçado.
A dificuldade motora do outro
disfarçada pela convivência comum, sem alertas para isto.
A falta de habilidade de alguém
disfarçada por chamar a atenção para os talentos.
Disfarçamos para que a vida siga. Para que ela flua. Abrimos mão de
nossas posturas rígidas e inflexíveis para que o outro possa participar desta
conversa também. Os disfarces para o bem nos conduzem com leveza pela vida. Eles
não se escondem, apenas cedem o seu lugar àquele que, verdadeiramente, precisa.
O assédio moral que se esconde
num falso feedback assertivo.
A compra e a venda de pessoas que
se esconde na bonita fala “manobra política”.
A falta de vergonha que se disfarça
na falta de quórum.
O marketing pessoal que se disfarça num medíocre “voluntariado”.
A injustiça que se disfarça na
falsa meritocracia.
A gambiarra que está disfarçada
no ajuste técnico.
A inveja que se disfarça no
pequeno pensamento “não queria mesmo”.
A fila dupla que se disfarça no
ligar do pisca-alerta.
O avançar do sinal disfarçado no
famoso “está tranquilo, não há pessoas passando”.
Disfarçamos para que a vida siga
somente a nosso favor, para que a vida sirva aos nossos interesses. Eu posso. Você não pode. Nós talvez possamos
desde que os meus interesses prevaleçam. Estes disfarces se escondem porque
se envergonham de se mostrarem. São fracos demais para mostrarem as suas faces
marcadas. Mas a insistência da luz, cujo disfarce não é possível, evidenciará esses
bastidores.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um pensamento de Voltaire, escritor francês do século XVII,
que diz:
“A guerra é o maior dos crimes,
mas não existe agressor que não disfarce o seu crime com pretexto de justiça. ”
Que possamos ter pretextos mais
nobres, a cada dia mais. Que nossos disfarces continuem a existir, mas como
sinônimos de abertura de caminho para que o outro também possa fazer parte. E
quando o outro fizer parte, de verdade,
todas as formas de guerras terão ficado para trás. Teremos alcançado o real
significado da palavra Justiça, e sem disfarces.
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