domingo, 1 de julho de 2018

Um velho conhecido

A lenda diz que Gandhi, quando fez o curso de Direito na University College, de Londres, teve muitos problemas com um professor cujo sobrenome era Peters. Uma pessoa arrogante, irônica, que não perdia oportunidades de agredir Gandhi, nos encontros frequentes que tinham.

Num destes momentos, enquanto o Sr. Peters almoçava no refeitório da Universidade, Gandhi sentou-se ao lado do professor que, irritado, disse:

- Sr. Gandhi, o senhor não entende. Um porco e um pássaro não se sentam juntos para comer. Gandhi responde a ele:

- Tranquilize-se, professor. Estou indo embora...voando. E mudou-se para outra mesa.

Sr.Peters, enfurecido, quis devolver a ironia a Gandhi. E no dia seguinte, ao aplicar uma prova, o professor pergunta a ele:

- Sr. Gandhi, imagine que o senhor está caminhando e encontra um pacote de muita sabedoria e um outro pacote com muito dinheiro. Qual dos dois o senhor escolheria?

Gandhi responde ao professor:

- Eu ficaria com o dinheiro, professor. E o professor, sorrindo, certo de que desmascararia Gandhi, diz:

- Ora, senhor Gandhi, em função da sua fala e do comportamento que o senhor prega, pensei que escolheria a sabedoria. Mas vejo que me enganei. O senhor, me parece, é um tanto materialista, o contrário do que diz. Eu, ao contrário do senhor, obviamente escolheria a sabedoria. O senhor não acha que este seria o correto?

- Compreendo, disse Gandhi, ao professor. Cada um escolhe o que não tem, não é mesmo?

O professor, ainda mais irritado, escreve a palavra “Idiota”, no canto da prova de Gandhi. O jovem pacifista recebeu a folha e a leu atentamente. Depois de alguns minutos, caminha até o professor e diz:

- Sr.Peters, reparo que o senhor assinou a minha folha. Mas, e a minha nota? E assim termina a lenda...

Independentemente de ter sido Gandhi ou não, o protagonista desta história, o que me chama a atenção é que este tal Sr.Peters é um velho conhecido nosso. Ora somos vítimas dele; ora somos ele em pessoa. E por quê? Porque quando optamos pelo caminho certo, quando decidimos pelo bem, quando escolhemos a claridade e agimos para o avanço, incomodamos. Atrapalhamos o caminho daquele que partilha da mesma estrada que a gente, porém por atalhos diferentes e trajetórias opostas. E o contrário também é verdadeiro, apesar da dificuldade de aceitarmos isto. Não é tão simples para nós, quando somos os que vão nestas trajetórias opostas, aceitarmos o caminho correto que o outro desenha a nossa frente. Geralmente, antes de aceitarmos isto, os nossos cegos discursos recheados de falácias costumam tomar a frente. E só mais adiante, quando a vida resolve nos recobrar a memória sobre algumas lições esquecidas, envergonhados voltamos para os nossos lugares. Mas o outro já vai lá na frente.

Inveja, que é o nome que se dá à simbologia do Senhor Peters, nosso velho conhecido, é um pequeno veneno que vai dentro de cada um de nós. Sem exceções. O que nos diferencia, talvez, seja a quantidade e a intensidade da nossa dose. Apenas isso. Mas ele está em nós, bravamente buscando sobreviver às custas das nossas superficialidades e artificialidades. Escondido ou à mostra, ele vai ali, nos acompanhando e torcendo para que a gente o alimente. Este veneno depende de nós e parece que gostamos de alimentá-lo. Se assim não fosse, por que, então, ele caminha forte e consistente?

Fazer de conta que assim não somos ou que a inveja não faz parte da gente é uma grande tolice. Quanto mais queremos esconder um buraco, mais ele se envidencia e se aprofunda. É da lei. Quando baixamos as armas e assumimos nosso trajeto invejoso, a inveja perde a força. E sem forças, para onde ela vai senão se revisitar no espelho?

O raso, em nós, sustenta o que nos destrói. O que nos recupera está submerso, invadido por pequenezas que supervalorizamos e damos a elas tamanhos que jamais deveriam ter.

Atrasamo-nos quando não nos reconhecemos ou quando não reconhecemos o que vai em nós. Perdemo-nos em estradas retas quando deixamos de aceitar o convite da vida para dobrarmos as nossas esquinas, e assim, enxergarmos os nossos contornos. Nossos bastidores precisam ser conhecidos e redesenhados sob alicerces sustentáveis.

O Senhor Peters que vai em nós ou que surge em nosso caminho somente evidencia que somos imperfeitos. E como tal,  há muito caminho a ser percorrido. Muito trabalho a ser feito. Já havia escrito um texto sobre a inveja, mas parece que é um tema cujo conteúdo não se esgota.

A inveja, seja ela nossa ou do nosso vizinho, é sempre um pedido de socorro do ego ferido. É uma cegueira para o bem que vai em nós. Sentimos imensa dificuldade de descortinarmos os nossos imensos valores, por isso o valor do outro nos cega e nos incomoda tanto. O brilho do outro nos ofusca porque, no fundo, queremos aquele brilho para nós. E como não conseguimos, lutamos para destruir o brilho que vai nele.

Invejar o outro é abrir mão de reconhecer o nosso valor. É acreditar nas nossas incapacidades. É sentir que a vida não se encaixa na gente. Um desconforto permanente. Um abrir de mãos constante do nosso eu. Um olhar sempre para fora e nunca para dentro. É se sentir desajeitado. Uma inadequação diante à vida. É como se fôssemos a uma festa sem termos sido convidados. E, sem graça, tentamos nos ambientar em alguma rodinha de gente que sentiu pena da gente. Mas o nosso brilho está lá, esfuziante, brilhante, vivo, apenas aguardando o nosso olhar, que cego, não o percebe. É uma pena.

Somos grandes. Somos muitas coisas boas. Talvez esta nossa grandeza esteja ofuscando o nosso brilho exatamente por não sabermos lidar com expressivo tamanho.

A inveja se caracteriza por esta perseguição gratuita ao outro. Perseguição ao que o outro faz de certo e de bem. Sentimo-nos provocados porque é como se o outro, indiretamente, nos obrigasse a sermos bons também, a fazermos melhores escolhas. O caminhar certo do outro nos pressiona e nos tira do conforto da hipocrisia. É mais fácil continuar do mesmo jeito do que lutar para crescer. Por isso a inveja nos acomoda em lugares confortáveis. Mas é por puro interesse dela.

Cada um com a sua particularidade. Cada um com a sua individualidade. Cada um com a sua imperfeição. E é na imperfeição que somos belos. Ela nos faz enxergar as nossas estruturas e do que somos feitos. A nossa inveja ajuda a construir a nossa imperfeição: uma imperfeição bela, feita dos nossos pormenores que somente se forem aceitos, acolhidos e compreendidos poderão se recolher para a sua ausência, um dia, dentro de cada um de nós.

É preciso, portanto, nos deixar ocupar pela nossa própria história. E para tanto, não há como pegarmos elevadores no meio da estrada. Somente caminhando por meio dos nossos pés.

Falarmos com os nossos silêncios, e assim, descobrirmos quais têm sido os nossos nós em avançar. Precisamos ser assíduos na nossa vida e com a nossa vida. Aumentarmos os intervalos entre os pensamentos. E será nestas brechas que a nossa sabedoria será reconectada conosco e nos tornaremos seres melhores.

Nossos lentos avanços mostram os nossos retrocessos. Precisamos despertar os nossos processos para sermos eficazes e rápidos. Um despertar que virá por meio dos nossos isolamentos. Nossos vazios e nossos silêncios nos alimentam e nos trazem outros cenários. Um mergulho solitário, silencioso, vazio, porém profundo. Crescemos por meio dos nossos isolamentos. Não há outro caminho e ninguém poderá fazê-lo por nós.

Quando valorizamos o nosso brilho, compreendemos a escuridão da inveja do outro. E quando o outro brilha, o cintilar do brilho dele poderá nos iluminar e nos resgatar, se assim quisermos.

Qual é o nosso lugar de fala? De onde falamos? Do lugar do invejoso ou do lugar do invejado? Ou os dois lugares nos representam? O nosso lugar de fala determina as nossas escolhas e os nossos procederes. Precisamos ter repertórios de vida para sustentarmos as nossas sugestões, os nossos conteúdos, as nossas vivências, as nossas medidas, os nossos vazios e as nossas profundidades para que possamos ter um viver esclarecido.

É preciso buscar o sólido e o solidário. Mas enquanto se busca, contentar-se com o pouco que já se tem. O pouco é fruto dos passos dados. E nossos pés já vão cansados.

Aquele que inveja pensa que tem o poder. Mas vive de enganos. O verdadeiro poder é daquele que une, que junta, que cria. É um andarilho sem brilho aparente. Que não vê aquilo que se passa na sua frente e no seu interior. Aqui nos reconhecemos.

Aquele que é invejado, que a missão do edificar, do construir, do reerguer não o canse. O caminho dele segue limpo e cintilante. Os passos dele são firmes porque sabe e reconhece seu caminhar. Sente-se dono da rua por onde anda. Por isso o caminhar dele é leve e desprovido de futilidades. Reconhece o próprio brilho, mas percebe que o outro ainda não reconhece o dele. E, portanto, apenas por precaução, o invejado é firme e consistente com quem o trata com desrespeito e com desprezo, no caso, o invejoso. Ser bom e justo é dar limites para os invasores. Aqui nos reconhecemos também.

Os invejosos provocam vendavais porque vivem neles. Os invejados não temem os vendavais. Resistem a eles porque sabem do poder que possuem.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Oscar Wilde, escritor irlândes, que diz:

“O número dos que nos invejam confirma as nossas capacidades.”

Que possamos reconhecer as nossas capacidades para humildemente iluminarmos o caminho daquele que vem, mas que também saibamos reconhecer a capacidade do outro para que as nossas possam existir. Somente existimos quando reconhecemos a existência do outro.

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