terça-feira, 21 de agosto de 2018

O encurtador de caminhos

A nossa história nos levou e nos trouxe para o lugar no qual estamos. Num breve e necessário passeio dentro de nós, porque sempre estamos sem tempo para isso, ficamos assistindo ao que acontece. Por ser este passeio dentro da gente, a inércia, a passividade e a imobilidade tomam conta e, assim, nos tornamos invisíveis. Quando conhecemos, de forma clara, o nosso próprio conteúdo, tornamo-nos. E quando passamos a utilizar este nosso conteúdo, ele passa a ter significado e a firmar compromissos com a vida. No entanto, toda esta trajetória precisa de trabalho, dedicação, renúncia e esforço.

Observar o que vai em nós, de um lugar privilegiado (de dentro de nós mesmos), num mundo cujo estágio e incompletude ajudamos a construir. Este é o mínimo que devemos para a vida.

De qualquer parte de dentro de nós, a distância e a visão serão as mesmas. Não adianta buscarmos o melhor lugar: não há distâncias e uma ‘melhor visão’ para aquele que iniciou o traçar de rotas. A escolha por criarmos, em nós, um mundo-organizado denunciará nossa insensatez e a nossa desfaçatez. Somos denunciantes de nós mesmos. Não precisamos do outro para nos denunciar.

Há diversos encurtadores de caminhos: os bons, como um livro, um conselho, um braço, um apoio, um sorriso, um perdão, e os maus, como o braço encolhido, a difamação, o passar na frente do outro por diversos motivos. Estes são apenas alguns. Mas há vários. Encurtadores de caminhos sempre encurtam os nossos caminhos: a questão é saber escolher o encurtador que queremos. E dependendo da nossa escolha, o que viveremos será posto a nós.

No domingo, dia 12 de agosto, a Bienal do Livro encerrou as suas atividades. Foram 663 mil visitantes. Muitos livros vendidos. Muitas editoras satisfeitas com as vendas. Como diz o Professor e Historiador Leandro Karnal, “há esperança quando ainda encontramos livrarias cheias”. E a Bienal foi um exemplo disto. No entanto, esta marca de quase 700 mil visitantes não significa que somos leitores, que lemos ou que permitimos ser impactados pelos livros.

Deixar-se ser impactado por um livro significa, entre tantas coisas, impactar a nossa própria vida, nosso próprio comportamento. Nossas atitudes refletem, ou não, o acesso às informações e ao conhecimento que tivemos na vida. Ler um livro significa uma possibilidade de nos tornarmos melhores.

Lotamos a Bienal: mas o que estávamos fazendo, de verdade, lá? Muitos para, de fato, lerem. Outros para aproveitarem esta oportunidade de contato com a cultura. Outros para apenas falarem aos outros que foram e passarem uma imagem de cultos. E outros para apenas passearem, sem compromisso com o livro, em si.

O Instituto Pro-Livro, em pesquisa realizada em 2017 com 5 mil pessoas, trouxe informações relevantes para a nossa reflexão. Apenas algumas:

- as pessoas que se consideram leitoras frequentes leram quatro livros nos últimos três meses. Porém, apenas dois livros do começo ao fim;

- 43% dos entrevistados disseram que não leram por falta de tempo; 28% por não gostarem de ler, e 13% por não possuírem paciência para a leitura (!);

E em outra pesquisa, agora pelo Banco Mundial, diz que o Brasil demorará 260 anos para atingir os níveis educacionais de países desenvolvidos em leitura. De verdade, uma marca inatingível.

E 30% dos brasileiros nunca compraram um livro, na vida. Triste realidade. Uma realidade que criamos e que nos pertence.

Estes números nos distanciam, e muito, do ideal. Por isso ainda nos demoraremos em atitudes que nos atrasam. Um atraso alienante e pernicioso que nos dificulta enxergarmos um dos nossos grandes encurtadores de vida: o livro. Isto nos explica muito.

Ao mesmo tempo que a pesquisa nos mostra a nossa realidade, imensas filas são formadas do lado de fora, próximas aos portões de acesso à Bienal. Uma confusão no trânsito, desrespeito às regras, tráfego pelo acostamento, ultrapassagem do sinal. Mas um comportamento, em especial, me chamou a atenção: muitos carros começaram a fazer uma conversão proibida. Assim, ‘furaram’ a imensa fila que havia se formado para acesso aos portões. Ao invés de estes carros irem até o fim da fila que se formava, como fizeram a conversão aonde não podia, ‘economizaram’ um enorme tempo e passaram na frente de muitos carros. Ironias à parte, obviamente não havia fiscalização. E ironias bem à parte, eles estavam indo para uma festa literária, para um local aonde se vende e conquista conhecimento.

Somos contraditórios por excelência. A caminho de uma festa com livros, acabamos por ser barrados na porta devido ao nosso analfabetismo moral.

Após ver aquela imensa fila de veículos que burlava o trânsito, o fato de não sermos leitores começa a fazer sentido. Ler não é apenas abrir um livro e decodificar e decifrar palavras. É, acima de tudo, ser cúmplice de um conhecimento que nos fará maiores. É assumir um compromisso com a escalada de degraus impostos pela vida. O que burla o sistema, desconhece este compromisso.

A cidadania sofre de ausência. Nossas contradições nos explicam e justificam a nossa posição. Se estamos em degraus inferiores é porque nos colocamos lá.

Monteiro Lobato dizia que “um País se faz com homens e livros”. Uma provocação incômoda. E vendo aquela imensa ausência de ética, me lembrei dele. Realmente um País se faz com homens e livros. Os livros estavam lá, na Bienal, a nossa espera. Mas e os homens? Aonde estão? Certamente Monteiro Lobato se referia a outros homens, e não àquele homem cuja consciência, há tempos, se retirou e dorme.

Uma leitura é sempre um transitar por ruas cuja trajetória nos atinge. É permitir ouvir histórias que, sozinhos, não seríamos capazes de construir. Ler é reconhecer-se num mundo que deveria ser melhor construído por nós. Um convite para ceder lugar para o conhecer. A ignorância, envergonhada, retira-se.

O livro é uma possibilidade. A ignorância é um fato. É preciso trabalho para ler um livro e se construir por meio dele. A ignorância nos é dada, gratuitamente, sem trabalho. Mas não enxergamos isto porque temos dificuldades para dobrarmos as nossas esquinas e passarmos a habitar em nós.

Somos vítimas das nossas próprias manobras. É preciso dispor de tempo para nos tornarmos aptos a habitarmos em nós mesmos. Nossas velhas e boas questões que vão nas nossas margens e as que vão no nosso centro. Como nos carimbamos?

A medida que as filas aumentavam, agravadas pelo burlar das regras, um esboço do que vai em nós e do que justifica as nossas distâncias se formava. Cenas tristes, mas que poucos viam.

O desrespeito nos emudece. Por isso, o mal avança.

Ler é transitar por mundos ausentes e presentes. Mas como fazer parte desta obra se não aprendemos a transitar dentro de nós mesmos? Como fazer uma reflexão, uma mudança real, até 120 caracteres? Mais que isso é cansativo, não temos tempo. Por isso, talvez, a conversão proibida seja tão convidativa.

Ler é uma prática e não um hábito. Hábito, um ato mecânico; prática, algo construído que nos exigiu passos.

A conversão proibida nos convida a reconhecer do que somos feitos, e a conhecer quais são os nossos recortes que passam, obrigatoriamente, pela educação como um instrumento de formação de cidadãos plenos. Ninguém aprende o que não tem significado. Quando interajo ajudo a construir. É preciso, portanto, construir o valor e o significado de não burlarmos as conversões proibidas. Uma pequena simbologia do tanto que ainda nos falta caminhar.

A leitura nos torna capazes de identificar nossas fraudes. Somos seres inacabados. Ler um livro é uma das formas de nos contornar, de nos dar um desfecho digno e honesto. A leitura nos faz melhores. Pelo menos, esta sempre foi a proposta. Inclusive da Bienal.

Quando fazemos as conversões proibidas, nos revelamos como os incompatíveis do caminho. Com este tipo de atitude, damos as mãos para as traças que vão em nós. E são muitas. Elas costumam se acomodar em lugares parados que há tempos não são visitados. Como não temos paciência para o desconhecido, no caso, nós mesmos, as traças vão se avolumando até o dia que tomam conta do espaço e já não o reconheceremos mais, e nem a nós mesmos.

Precisamos estudar as nossas imperfeições se quisermos combatê-las. Quem sabe, assim, passaremos a enxergar as placas de conversões proibidas? Vamos nos acumulando e perdemos a chance de nos visitar com frequência e assiduidade.

Acredito que passamos por tempos nos quais estamos vivendo, porém, não existindo. Não estamos sabendo existir. Para sabê-lo, é preciso enxergar a placa de conversão proibida. E, sem reclamar, pegar o final da fila e fazer toda a caminhada, passo a passo. É preciso saber que atalhos, com raríssimas exceções, atrasam os passos.

Atalhos são, muitas vezes, armadilhas à caça dos rebeldes e dos vaidosos que, orgulhosos, nem percebem que acabam de alongar, ainda mais, a sua lista de ajustes necessários a realizar. Tarefa intransferível e inadiável. Sem isso, nos tornamos reféns de nós mesmos.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação do Pequeno Príncipe, que diz:

“o deserto é belo porque, em algum lugar, ele esconde uma fonte”.

Reconhecer o deserto que vai em nós é uma arte, uma forte lição de humildade e de resignação. Não há como brigar com ele. Certamente não venceremos esta batalha. A melhor forma de lidarmos com os nossos desertos é irmos em busca de nossas fontes. Porque elas existem. E estão a nossa espera. Para encontrá-las, será necessário caminhar por toda a fila. Não há outro caminho, mesmo que estejamos indo somente para uma Bienal de Livros.

Apenas reconhecendo os nossos desertos e ouvindo o que eles têm a nos dizer, nossas fontes se tornarão visíveis para nós. E vendo as nossas fontes, caminhar por extensas filas, desde o início delas, não será mais problema para nós. Talvez neste dia, as filas não farão mais parte da nossa realidade porque teremos, finalmente, entendido, que elas tentavam, a todo momento, nos encaminhar para as fontes, nossos únicos e verdadeiros caminhos.

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