segunda-feira, 13 de julho de 2015

Ei, McBarker...



Quem está aqui há algum tempo, certamente se lembra do Mr. Magoo: um velhinho simpático, “quase” cego e que vivia em confusão por conta disto. Sempre acompanhado de seu cão McBarker que ficava aflito quando via seu dono dirigindo na contramão. Uma das frases mais famosas do Mr. Magoo era: “Ei, McBarker...” e lá ia ele se meter em encrencas!

Como estou aqui há algum tempo, me lembrei com saudades deste desenho. E como era bom assisti-lo apenas como um desenho! Porque era isto o que ele representava para mim: apenas um desenho. Não era preciso pensar e nem refletir sobre coisa alguma.

A infância traz isto de bom: o riso frouxo, a inocência que nos isenta e nos protege do saber, e o descompromisso com a obrigatoriedade de olhar além, algo que a maturidade nos exige.

Esta inocência da infância, que nos convida apenas para viver e brincar, vai ficando distante na medida em que vamos amadurecendo e percebendo a complexidade das coisas, da vida e sobre esta necessidade de olhar além, enxergar o imperceptível, o óbvio. Olhar além é imprescindível se não quisermos ser atropelados pelos míopes de plantão.

A miopia só é engraçada na pele do Mr. Magoo, e ainda assim, apenas quando somos crianças.

Hoje, com a infância tendo se despedido de mim há algum tempo, descobri que o Mr. Magoo não era tão cego assim. Era uma estratégia dele para passar pela vida sem se aprofundar sobre as grandes questões. Sem responsabilidades. Ele era míope, claro, mas não cego como eu acreditava na minha infância. E mesmo esta miopia que ele tinha era discutível: em ocasiões que o interessavam, bem que ele enxergava. Mas como ele queria que os outros acreditassem que era cego ou, no mínimo, míope, assim ele fazia.

Quantos recados Mr. Magoo já nos dava naquela época. Mas não era possível percebê-los.

Um episódio clássico que me lembro é aquela cena de um grande fluxo de carros e ele, claro, dirigindo na contramão. Muitos carros bateram por causa disto, mas ele, que foi quem causou todo o transtorno, saiu ileso.

Rimos por causa do absurdo. Como alguém, dirigindo na contramão, pode se sair bem? Mr. Magoo conseguia. Mas na vida real, sabemos que não é bem assim.

Ele tinha sorte? Pode ser. Mas não era só isto. Existia uma crítica por trás daquele comportamento: a de não enxergar o que importava, a de delegar aquilo que não era possível, a de ser irresponsável, a de ser inconsequente. Coisas que a infância não nos permitiria enxergar, certamente.

Passada a infância, percebemos que o Mr. Magoo continua ativo, dentro e fora de nós.

Somos míopes em enxergar as nossas questões, mas enxergamos muitíssimo bem quando o assunto é apontar o dedo para o outro. Somos especialistas no assunto. Este é o Mr. Magoo de hoje. E acho que ele sempre existiu.

Quando apontam o dedo para nós nos sentimos injustiçados. Mas quando apontamos o dedo para o outro temos uma listinha de razões. Caso ele não concordar com o primeiro item da nossa lista, teremos o segundo, o terceiro...

A miopia nos faz orgulhosos, vaidosos, arrogantes. “Eu sei”. “Eu faço”. “Eu ganhei”. São tantos os “eus” que nem sei como não tropeçamos em nós próprios.

Somos míopes para o que realmente importa. Dá trabalho enxergar, dizer que viu. Quando dizemos que vimos, precisamos nos posicionar, opinar, descer do muro. Só que ficar sobre o muro é bem mais confortável que descer dele. Quando descemos, precisamos tomar partido, escolher um lado, o que, obviamente, implica abrir mão do outro. Isto, muitas vezes, pode se traduzir em desavenças, desentendimentos. Então é mais fácil dizer que não vimos. Pronto. Vamos nos escondendo na nossa miopia criada de forma tão conveniente. Criamos conveniências para atender a nossa vaidade. É este o nosso mundo.

Temos, claro, os que enxergam, e enxergam longe. Mas o mundo não é tão gentil com os que enxergam.

“Quem você pensa que é”? “Sabe com quem você está falando”? São perguntas clássicas dos míopes. E os que enxergam precisam, o tempo todo, respondê-las. Cansativas e exaustivas, mas precisam ser respondidas.

O míope é um limitador da linguagem. Acha que sempre tem resposta para tudo. Mas não tem. E nunca vai ter. Aliás nunca teremos. Eles querem, mas entre o querer e o poder, há uma longa distância. O míope quer saber tudo, quer ter tudo à mão, quer que façam por ele e para ele. Pobres míopes. Não querem o trabalho da construção, do processo, do caminhar. Têm dificuldades de enxergar além porque o seu umbigo está muito próximo dele. Acham que possuem as informações da vida, sabem a verdade. Eu sou... é a máxima do dicionário deles.

Manoel de Barros, um maravilhoso escritor que nos deixou há pouco tempo, dizia que quem acumula muita informação perde a oportunidade de adivinhar. E dizia, também, que precisamos nos tornar pessoas de conhecimento e não pessoas com informações. Por isto Manoel de Barros é considerado um dos imortais de nossa Literatura. Sabe das coisas.

A capacidade de adivinhação nos permite enxergar além, aquilo que falei que a maturidade nos exige diariamente. Mas isto ficou para trás porque estamos muito preocupados com o ter, com a posição, com o estatus.

Adivinhar é coisa de gente fraca. Eu tenho as respostas.

Tem uma frase que diz: “quando decorei todas as respostas, a vida mudou as perguntas. ” Pois é, ironias da vida. Não podemos perder o nosso prazer pela adivinhação, pela descoberta da vida. Caso contrário, ela vai mudar as perguntas. Estejamos certos.  Ela ensina de forma amarga, muitas vezes, mas quem mandou desprezarmos o açúcar?

O míope é aquele que não quer saber do contexto, e tira conclusões baseado apenas no texto. O míope está sempre apressado. Acha que nunca tem tempo. Está sempre correndo.

Você já conversou com algum míope? Você começa a falar e ele, sem pensar, te interrompe e conclui o que você estava tentando dizer. E aí você diz: “mas não era isto o que eu ia falar. ”

Ao passo que aquele que vê, que enxerga, tem tempo, tem espaço para o outro. Tem tempo porque sabe usá-lo e não vai na contramão dirigindo como louco atrapalhando os outros. Respeito e moderação são atributos dos que enxergam. Arrogância e prepotência são características dos que acham que enxergam.

Respeito e moderação trazem liberdade. Arrogância e prepotência trazem alienação. Prezamos tanto a liberdade, mas quando a temos em mãos, não sabemos o que fazer com ela. A liberdade nasce a partir da criticidade, da autenticidade, da autonomia. Mas como ser autônomo dirigindo na contramão?

Trabalhei numa Empresa que dizia que ela era o próprio benchmarking. Dizia que não existiam outras empresas que poderiam servir de benchmarking para ela. Participando de uma reunião, disse, para nós, o Diretor: “para quê fazer benchmarking? Somos o maior e o melhor benchmarking do mercado. Eles é quem deveriam aprender conosco e não o contrário. ” Enfim, acho que a miopia do Mr. Magoo passou por lá.

Com esta miopia latente, é melhor nem falarmos sobre ética. Aliás, o que é isto mesmo? Num mundo aonde a miopia aumenta consideravelmente, quem vai sair desta contramão?

Mas a conta da miopia chega para todos. E não vai dar para parcelar o débito.

Em outra reunião, na mesma Empresa, ouvi a seguinte colocação: “errem dentro da política, mas não acertem fora dela. ” Socorro! Quanta miopia e arrogância!

As regras e as políticas são necessárias, porém desde que façam sentido.  Dizer para errar, porém dentro de uma regra, mas jamais acertar fora dela é assassinar qualquer poder de iniciativa que pudesse nascer ali. Se alguém, naquela reunião, tivesse alguma ideia para dar, certamente ficaria calado. E foi o que aconteceu. Enfim, Mr. Magoo fez escola...

A miopia é uma forma de nos colocar como vítima diante à vida. Somos vítimas de nossa própria falta de limites e de educação. Somos nossos próprios reféns.

Somos míopes para enxergar o que deveria ser visto. O míope tem dificuldade de enxergar de longe porque não sabe lidar nem com o que está próximo dele.

Temos uma relação difícil entre o desejo pelo poder e o não direito a este poder que achamos que temos.

Esta miopia está nos tirando a esperança de acharmos uma solução. E isto está nos tornando insensíveis e frios. A dor do outro não me dói mais. Não sei se um dia chegou a doer, mas o fato é que a miopia está aumentando.

Nossas emoções estão míopes porque só queremos as boas emoções. As más e as difíceis, medicalizamos. Deixa que o remédio dê conta disto.

Estamos, como o Mr. Magoo, andando na contramão de coisas importantes. Mas lá era só um desenho, aqui não. Lá era engraçado, aqui não.

A miopia é exatamente esta deficiência de se enxergar além, ir adiante, mais longe.

A conveniência de ser míope: “puxa, não vi, me desculpe”. A miopia te camufla, te protege.

Medir o outro pela sua régua é um grande sinal de cegueira, de miopia. Os míopes enxergam as diferenças como divergências. E isto é andar na contramão da vida. É atropelar o outro. É não deixar o outro falar.

A miopia se dá quando nos escondemos na submissão, quando não assumimos a nossa posição, quando temos medo de dar a nossa opinião.

A miopia se dá quando fazemos de conta que não sabemos, nos escondemos em medos que criamos só para nos fazer de fracos e alguém ficar com pena da gente.

Vi uma criança de não mais de 07 anos vender limão no farol. Isto acontece ao mesmo tempo que algum marmanjo ganha algum dos auxílios do governo. Isto me faz entender o porquê este menino precisa vender limão no farol.

Os auxílios financeiros são importantes desde que sejam pontuais, e não como uma forma de sustento fixo para quem pode e deve se sustentar.

Ajuda não pode ser confundida com assistencialismo. Uma coisa é ajudar; outra coisa é sustentar. Uma coisa é dar condições para. Outra coisa é fazer pelo outro. Agora entendo porque o menino de 07 anos vende limão no farol e mais de 140 milhões de adolescentes estão fora da escola, no mundo. A miopia do Mr. Magoo já sinalizava estas coisas, mas era preciso entendê-las. Os desenhos animados, de ingênuos, não têm nada.

Miopia é esta dissociação, este paradoxo do outro. O outro está sempre errado, o preconceito é sempre do outro. Queremos ser aceitos. Então fazemos de tudo para tal, mesmo que isto custe a nossa dignidade.

Precisamos sair de nós e olhar de um ponto de vista neutro para que possamos amadurecer. Mas quem se habilita?

O míope não quer ver o contexto, não quer saber do todo. Diz que não tem tempo.

Quem vê quer saber do contexto, quer saber do todo. Sempre tem tempo.

O míope enxerga a conveniência. O que vê enxerga a totalidade.

O míope enxerga o micro. O que vê enxerga o macro.

O míope quer a resposta. O que vê faz sempre perguntas.

Penso que os míopes tenham sido elogiados demais na infância. Muitos elogios nos fazem perder a medida das coisas, nos fazem perder o tamanho de quem realmente somos, nos tiram da realidade. Por isto nos tornamos míopes: queremos ser maiores do que verdadeiramente somos. O elogio em excesso nos faz olhar somente para nós e deixar de olhar para o outro. Quando olhamos para o outro e enxergamos nele habilidades diferentes das nossas, isto vai nos trazendo medidas para a vida. Mas com tantos elogios, como enxergar estas medidas e estas habilidades diferentes no outro, que nós não temos? Por isto somos míopes.

E o que pode nos tirar desta miopia?

Sabemos que não há receita, não estamos fazendo um bolo. Portanto não é simples. Mas acredito que um caminho que se desenha é trabalhar a nossa autoestima, construirmos e desenvolvermos a nossa autonomia como seres humanos. Desta forma, reduziríamos os nossos níveis de narcisismo uma vez que não estaríamos mais no pedestal da vida. É preciso conhecer as nossas medidas, conhecer as medidas da vida. Elas existem, apesar de insistirmos em não as conhecer. Aquele que quer tudo somente para si é um narcisista, e isto traz um distanciamento do que realmente importa. Se o narcisista não consegue toda a admiração de que precisa ele se torna agressivo quando criticado e rejeitado.

Quando olharmos para as necessidades do outro a nossa miopia começará a dar lugar à claridade, à lucidez.

Num mundo que valoriza a miopia em vários aspectos, realmente é difícil enxergar o que ninguém vê. Enxergar além. Vão tentar nos impedir a todo custo. “Tolo”, dirão para nós. Mas é fundamental, se quisermos dar um passo além.

Como disse Isaac Newton:

“Construímos muros demais e pontes de menos. ”

Talvez seja este o principal motivo de nossa miopia.

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