Quem está aqui há algum tempo,
certamente se lembra do Mr. Magoo: um
velhinho simpático, “quase” cego e que vivia em confusão por conta disto. Sempre
acompanhado de seu cão McBarker que
ficava aflito quando via seu dono dirigindo na contramão. Uma das frases mais
famosas do Mr. Magoo era: “Ei, McBarker...” e lá ia ele se meter em
encrencas!
Como estou aqui há algum tempo,
me lembrei com saudades deste desenho. E como era bom assisti-lo apenas como um
desenho! Porque era isto o que ele representava para mim: apenas um desenho. Não
era preciso pensar e nem refletir sobre coisa alguma.
A infância traz isto de bom: o
riso frouxo, a inocência que nos isenta e nos protege do saber, e o
descompromisso com a obrigatoriedade de olhar além, algo que a maturidade nos
exige.
Esta inocência da infância, que
nos convida apenas para viver e brincar, vai ficando distante na medida em que
vamos amadurecendo e percebendo a complexidade das coisas, da vida e sobre esta
necessidade de olhar além, enxergar o imperceptível, o óbvio. Olhar além é
imprescindível se não quisermos ser atropelados pelos míopes de plantão.
A miopia só é engraçada na pele
do Mr. Magoo, e ainda assim, apenas
quando somos crianças.
Hoje, com a infância tendo se despedido
de mim há algum tempo, descobri que o Mr.
Magoo não era tão cego assim. Era uma
estratégia dele para passar pela vida sem se aprofundar sobre as grandes
questões. Sem responsabilidades. Ele era míope, claro, mas não cego como eu
acreditava na minha infância. E mesmo esta miopia que ele tinha era discutível:
em ocasiões que o interessavam, bem que ele enxergava. Mas como ele queria que
os outros acreditassem que era cego ou, no mínimo, míope, assim ele fazia.
Quantos recados Mr. Magoo já nos dava naquela época. Mas
não era possível percebê-los.
Um episódio clássico que me
lembro é aquela cena de um grande fluxo de carros e ele, claro, dirigindo na
contramão. Muitos carros bateram por causa disto, mas ele, que foi quem causou
todo o transtorno, saiu ileso.
Rimos por causa do absurdo. Como
alguém, dirigindo na contramão, pode se sair bem? Mr. Magoo conseguia. Mas na
vida real, sabemos que não é bem assim.
Ele tinha sorte? Pode ser. Mas não
era só isto. Existia uma crítica por trás daquele comportamento: a de não
enxergar o que importava, a de delegar aquilo que não era possível, a de ser
irresponsável, a de ser inconsequente. Coisas que a infância não nos permitiria
enxergar, certamente.
Passada a infância, percebemos
que o Mr. Magoo continua ativo, dentro
e fora de nós.
Somos míopes em enxergar as
nossas questões, mas enxergamos muitíssimo bem quando o assunto é apontar o
dedo para o outro. Somos especialistas no assunto. Este é o Mr. Magoo de hoje. E acho que ele sempre
existiu.
Quando apontam o dedo para nós
nos sentimos injustiçados. Mas quando apontamos o dedo para o outro temos uma
listinha de razões. Caso ele não concordar com o primeiro item da nossa lista, teremos
o segundo, o terceiro...
A miopia nos faz orgulhosos,
vaidosos, arrogantes. “Eu sei”. “Eu faço”. “Eu ganhei”. São tantos os “eus” que
nem sei como não tropeçamos em nós próprios.
Somos míopes para o que realmente
importa. Dá trabalho enxergar, dizer que viu. Quando dizemos que vimos,
precisamos nos posicionar, opinar, descer do muro. Só que ficar sobre o muro é
bem mais confortável que descer dele. Quando descemos, precisamos tomar
partido, escolher um lado, o que, obviamente, implica abrir mão do outro. Isto,
muitas vezes, pode se traduzir em desavenças, desentendimentos. Então é mais
fácil dizer que não vimos. Pronto. Vamos nos escondendo na nossa miopia criada
de forma tão conveniente. Criamos conveniências para atender a nossa vaidade. É
este o nosso mundo.
Temos, claro, os que enxergam, e
enxergam longe. Mas o mundo não é tão gentil com os que enxergam.
“Quem você pensa que é”? “Sabe
com quem você está falando”? São perguntas clássicas dos míopes. E os que
enxergam precisam, o tempo todo, respondê-las. Cansativas e exaustivas, mas
precisam ser respondidas.
O míope é um limitador da
linguagem. Acha que sempre tem resposta para tudo. Mas não tem. E nunca vai
ter. Aliás nunca teremos. Eles querem, mas entre o querer e o poder, há uma
longa distância. O míope quer saber tudo, quer ter tudo à mão, quer que façam
por ele e para ele. Pobres míopes. Não querem o trabalho da construção, do
processo, do caminhar. Têm dificuldades de enxergar além porque o seu umbigo
está muito próximo dele. Acham que possuem as informações da vida, sabem a
verdade. Eu sou... é a máxima do dicionário deles.
Manoel de Barros, um maravilhoso
escritor que nos deixou há pouco tempo, dizia que quem acumula muita informação
perde a oportunidade de adivinhar. E dizia, também, que precisamos nos tornar
pessoas de conhecimento e não pessoas com informações. Por isto Manoel de
Barros é considerado um dos imortais de nossa Literatura. Sabe das coisas.
A capacidade de adivinhação nos
permite enxergar além, aquilo que falei que a maturidade nos exige diariamente.
Mas isto ficou para trás porque estamos muito preocupados com o ter, com a
posição, com o estatus.
Adivinhar é coisa de gente fraca.
Eu tenho as respostas.
Tem uma frase que diz: “quando
decorei todas as respostas, a vida mudou as perguntas. ” Pois é, ironias da
vida. Não podemos perder o nosso prazer pela adivinhação, pela descoberta da
vida. Caso contrário, ela vai mudar as perguntas. Estejamos certos. Ela ensina de forma amarga, muitas vezes, mas
quem mandou desprezarmos o açúcar?
O míope é aquele que não quer
saber do contexto, e tira conclusões baseado apenas no texto. O míope está
sempre apressado. Acha que nunca tem tempo. Está sempre correndo.
Você já conversou com algum
míope? Você começa a falar e ele, sem pensar, te interrompe e conclui o que
você estava tentando dizer. E aí você diz: “mas não era isto o que eu ia falar.
”
Ao passo que aquele que vê, que
enxerga, tem tempo, tem espaço para o outro. Tem tempo porque sabe usá-lo e não
vai na contramão dirigindo como louco atrapalhando os outros. Respeito e
moderação são atributos dos que enxergam. Arrogância e prepotência são
características dos que acham que enxergam.
Respeito e moderação trazem liberdade.
Arrogância e prepotência trazem alienação. Prezamos tanto a liberdade, mas
quando a temos em mãos, não sabemos o que fazer com ela. A liberdade nasce a
partir da criticidade, da autenticidade, da autonomia. Mas como ser autônomo
dirigindo na contramão?
Trabalhei numa Empresa que dizia
que ela era o próprio benchmarking.
Dizia que não existiam outras empresas que poderiam servir de benchmarking para ela. Participando de
uma reunião, disse, para nós, o Diretor: “para quê fazer benchmarking? Somos o maior e o melhor benchmarking do mercado. Eles é quem deveriam aprender conosco e
não o contrário. ” Enfim, acho que a miopia do Mr. Magoo passou por lá.
Com esta miopia latente, é melhor
nem falarmos sobre ética. Aliás, o que é isto mesmo? Num mundo aonde a miopia
aumenta consideravelmente, quem vai sair desta contramão?
Mas a conta da miopia chega para
todos. E não vai dar para parcelar o débito.
Em outra reunião, na mesma
Empresa, ouvi a seguinte colocação: “errem dentro da política, mas não acertem
fora dela. ” Socorro! Quanta miopia e arrogância!
As regras e as políticas são
necessárias, porém desde que façam sentido.
Dizer para errar, porém dentro de uma regra, mas jamais acertar fora
dela é assassinar qualquer poder de iniciativa que pudesse nascer ali. Se
alguém, naquela reunião, tivesse alguma ideia para dar, certamente ficaria calado.
E foi o que aconteceu. Enfim, Mr. Magoo
fez escola...
A miopia é uma forma de nos
colocar como vítima diante à vida. Somos vítimas de nossa própria falta de
limites e de educação. Somos nossos próprios reféns.
Somos míopes para enxergar o que
deveria ser visto. O míope tem dificuldade de enxergar de longe porque não sabe
lidar nem com o que está próximo dele.
Temos uma relação difícil entre o
desejo pelo poder e o não direito a este poder que achamos que temos.
Esta miopia está nos tirando a
esperança de acharmos uma solução. E isto está nos tornando insensíveis e
frios. A dor do outro não me dói mais. Não sei se um dia chegou a doer, mas o
fato é que a miopia está aumentando.
Nossas emoções estão míopes
porque só queremos as boas emoções. As más e as difíceis, medicalizamos. Deixa que o remédio dê conta disto.
Estamos, como o Mr. Magoo, andando na contramão de
coisas importantes. Mas lá era só um desenho, aqui não. Lá era engraçado, aqui
não.
A miopia é exatamente esta
deficiência de se enxergar além, ir adiante, mais longe.
A conveniência de ser míope: “puxa,
não vi, me desculpe”. A miopia te camufla, te protege.
Medir o outro pela sua régua é um
grande sinal de cegueira, de miopia. Os míopes enxergam as diferenças como
divergências. E isto é andar na contramão da vida. É atropelar o outro. É não
deixar o outro falar.
A miopia se dá quando nos
escondemos na submissão, quando não assumimos a nossa posição, quando temos
medo de dar a nossa opinião.
A miopia se dá quando fazemos de
conta que não sabemos, nos escondemos em medos que criamos só para nos fazer de
fracos e alguém ficar com pena da gente.
Vi uma criança de não mais de 07
anos vender limão no farol. Isto acontece ao mesmo tempo que algum marmanjo
ganha algum dos auxílios do governo. Isto me faz entender o porquê este menino
precisa vender limão no farol.
Os auxílios financeiros são
importantes desde que sejam pontuais, e não como uma forma de sustento fixo
para quem pode e deve se sustentar.
Ajuda não pode ser confundida com
assistencialismo. Uma coisa é ajudar; outra coisa é sustentar. Uma coisa é dar
condições para. Outra coisa é fazer pelo outro. Agora entendo porque o menino
de 07 anos vende limão no farol e mais de 140 milhões de adolescentes estão
fora da escola, no mundo. A miopia do Mr.
Magoo já sinalizava estas coisas, mas era preciso entendê-las. Os desenhos
animados, de ingênuos, não têm nada.
Miopia é esta dissociação, este
paradoxo do outro. O outro está sempre errado, o preconceito é sempre do outro.
Queremos ser aceitos. Então fazemos de tudo para tal, mesmo que isto custe a
nossa dignidade.
Precisamos sair de nós e olhar de
um ponto de vista neutro para que possamos amadurecer. Mas quem se habilita?
O míope não quer ver o contexto,
não quer saber do todo. Diz que não tem tempo.
Quem vê quer saber do contexto,
quer saber do todo. Sempre tem tempo.
O míope enxerga a conveniência. O
que vê enxerga a totalidade.
O míope enxerga o micro. O que vê
enxerga o macro.
O míope quer a resposta. O que vê
faz sempre perguntas.
Penso que os míopes tenham sido
elogiados demais na infância. Muitos elogios nos fazem perder a medida das
coisas, nos fazem perder o tamanho de quem realmente somos, nos tiram da realidade.
Por isto nos tornamos míopes: queremos ser maiores do que verdadeiramente
somos. O elogio em excesso nos faz olhar somente para nós e deixar de olhar
para o outro. Quando olhamos para o outro e enxergamos nele habilidades
diferentes das nossas, isto vai nos trazendo medidas para a vida. Mas com
tantos elogios, como enxergar estas medidas e estas habilidades diferentes no
outro, que nós não temos? Por isto somos míopes.
E o que pode nos tirar desta
miopia?
Sabemos que não há receita, não
estamos fazendo um bolo. Portanto não é simples. Mas acredito que um caminho
que se desenha é trabalhar a nossa autoestima, construirmos e desenvolvermos a
nossa autonomia como seres humanos. Desta forma, reduziríamos os nossos níveis
de narcisismo uma vez que não estaríamos mais no pedestal da vida. É preciso
conhecer as nossas medidas, conhecer as medidas da vida. Elas existem, apesar
de insistirmos em não as conhecer. Aquele que quer tudo somente para si é um
narcisista, e isto traz um distanciamento do que realmente importa. Se o
narcisista não consegue toda a admiração de que precisa ele se torna agressivo
quando criticado e rejeitado.
Quando olharmos para as
necessidades do outro a nossa miopia começará a dar lugar à claridade, à
lucidez.
Num mundo que valoriza a miopia
em vários aspectos, realmente é difícil enxergar o que ninguém vê. Enxergar
além. Vão tentar nos impedir a todo custo. “Tolo”, dirão para nós. Mas é
fundamental, se quisermos dar um passo além.
Como disse Isaac Newton:
“Construímos muros demais e pontes de menos. ”
Talvez seja este o principal motivo
de nossa miopia.
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