domingo, 19 de julho de 2015

Os gigantes vão ao longe

"Se cheguei até aqui foi porque me apoiei nos ombros dos gigantes".

Em minhas pesquisas, encontrei variações desta frase como:  “Se eu vi mais longe, foi por estar de pé sobre ombros de gigantes” e "Se vi ao longe é porque estava nos ombros dos gigantes”. São creditadas ora a Isaac Newton, ora a Aristóteles. Como não encontrei um consenso, pedi licença para eles para utilizar a frase em meu texto. Eles concordaram desde que eu dividisse os créditos entre eles.

Enfim, tudo esclarecido, créditos dados. Penso que esta frase encerra reflexões atemporais e pode ser pensada sob vários aspectos. Escolhi falar sobre o poder que a alienação tem sobre nós, quando optamos por este caminho, ao mesmo tempo o poder que o conhecimento tem sobre nós, quando optamos por este caminho.

Alienação e Conhecimento. Caminhos inversos. Caminhos opostos. Caminhos que caminhamos. Caminhos que pertencem a nós. Caminhos que ajudamos a construir. Caminhos que só existem porque passamos por eles e deixamos as nossas marcas.

Muitas de nossas alienações vêm, obviamente, do desconhecimento, do não saber, daquele saber que nos foi ocultado, ou seja, mesmo que queiramos, não vamos saber. Pelo menos, não agora. Mas há aquele tipo de alienação que habita em nós e que alimentamos diariamente. É o tipo de alienação que nos corrói e mina a nossa capacidade de crescer como seres autônomos que deveríamos ser. Mas que ainda não somos, pelo menos não no nível que deveríamos.

Esta alienação que alimentamos colabora, e muito, para que esta autonomia se distancie de nós a cada dia. É uma alienação confortável, quentinha, preguiçosa, que nos protege e corrobora com a nossa máxima: “Sério? ” “Quando? ” “Ah, eu não sabia...” “Se eu soubesse...”.

No fundo no fundo, bem lá no fundo, a gente sabe que deveria saber, mas os desdobramentos do saber nem sempre são confortáveis e quentinhos. E o pior: depois que descobrimos que sabemos, não dá mais para dizermos “Sério? Quando? ”.

E a preguiça? Ah esta companheira de todas as horas...que acolhe a nossa cômoda ignorância..., mas você pode dar adeus a ela depois do saber, do caminho descoberto, do arregaçar de mangas.

A alienação, portanto, tem o seu valor: nos esconder de um mundo que terá cada vez menos respostas e que fará cada vez mais perguntas. Um mundo que terá cada vez menos muros e que te convidará a derrubá-los, se você tiver a ferramenta certa para isto. Para derrubar muros, a alienação não será necessária. Aliás ela é ótima para construí-los. Mas para derrubá-los, um bom martelo para descortinar o que estiver será muito bem-vindo.

Platão, filósofo grego, da antiguidade, mas que de antigo não tem absolutamente nada, escreveu um livro conhecido mundialmente: “A República”, e nele consta uma passagem muito estudada, chamada “O mito da caverna”, que talvez seja um dos textos filosóficos mais lidos e comentados, no mundo.

O mito diz que, numa caverna, viviam homens amarrados e acorrentados que não podiam mudar de posição. A única coisa que conseguiam fazer era olharem para a parede do fundo da caverna. A frente da caverna possuía uma pequena abertura e abrigava uma fogueira, mas os habitantes da caverna não podiam vê-la porque estavam de costas.  Em frente à entrada da caverna havia um muro de tamanho médio e, por trás dele, alguns homens se movimentavam carregando, sobre os ombros, estátuas trabalhadas que representavam várias figuras e imagens. Isto criava sombras no interior da caverna, projetadas pela luz da fogueira. Além disto, as vozes destes homens ecoavam e os habitantes podiam ouvi-las.

Como aqueles habitantes não conheciam o mundo externo e as únicas coisas que tinham eram as sombras projetadas e as vozes, começaram a acreditar que aquelas sombras eram a única e verdadeira realidade. E que o eco das vozes seria o som real das vozes emitidas pelas sombras.

O mito traz, ainda, uma suposição: de que se um dos habitantes conseguisse se soltar das correntes, ele buscaria esta luz, esta claridade que viria de fora e se habituaria a este novo mundo que se apresentava para ele. E de posse desta nova realidade, começaria a entender o que significavam aquelas sombras, aquelas imagens. Desta forma, ele voltaria à caverna para contar a novidade aos que ficaram ali e, assim, ajudá-los a se libertarem. Mas quando ele volta, é chamado de louco e é morto por seus companheiros.

Este texto é bastante utilizado e muito já se debateu sobre ele. Um dos pontos importantes de interpretação é que nós (representados pelos prisioneiros da caverna) acreditamos muito naquilo que nos é dito, acreditamos em imagens criadas que nem sempre refletem a realidade. E o mais crítico: replicamos modelos ineficientes que aprendemos e que nem sempre promovem o bem, o aprendizado, o desenvolvimento, a autonomia.

Todos daquela caverna tinham o mesmo comportamento: o de olharem para a parede e acreditarem naquilo que viam. Mas aquilo que viam (imagens distorcidas da realidade) não era o verdadeiro, o real. E mesmo depois, quando um dos habitantes libertos volta para trazer a luz para aquela caverna e para eles, este homem é morto. Morto porque trouxe a luz, quis levá-los para outro patamar de existência.

Replicar modelos ineficientes, como o de acreditar em falsas imagens projetadas na parede, é sinônimo de alienação, como escrito anteriormente. Alienação é uma forma de acreditar em falsas imagens, em falsas sombras. Obviamente que não se podia exigir que aqueles habitantes tivessem alcance para desconfiarem daquelas sombras e, desta forma, questionarem.

Portanto, até aquele momento, a alienação deles estava explicada. Porém, a partir do momento que o outro habitante quis trazer a luz, por que recusá-la?

Assim fazemos. Tudo por conta da alienação, do medo de sair da caverna, desta falsa proteção que achamos que temos. É preciso desconstruir a forma como nos ensinaram a pensar. Pensar? Não sei se nos ensinaram a pensar ou se nos ensinaram a replicar modelos e regras. Assim fica mais fácil controlar e saber quem errou e, desta forma, puni-lo.

Fomos criados no sistema punição x recompensa. Já disse isto em algum outro texto.

Acertamos, somos recompensados. Erramos, somos punidos. Trata-se de um sistema que cria seguidores e não desbravadores. Trata-se de um sistema que faz o ser humano andar por caminhos já trilhados e construídos, e não a criar o seu caminho, a trilhar o seu andar. E a alienação está no caminho da punição x recompensa. Como fomos educados neste sistema, ali estamos alimentando a alienação. E quando nos desvinculamos, nos chamam de loucos.

E não foi o que fizeram com aquele habitante que conseguiu se desamarrar das correntes?

Seguir no caminho da alienação é perpetuar estereótipos ineficientes.  E o pior é que muitos deles estão se perpetuando e se renovando.  E por que isto?

Porque o comportamento é algo construído socialmente. Portanto, o lado bom disto é que muitas coisas boas serão exemplificadas e replicadas. Porém, os estereótipos ultrapassados também serão renovados por meio do nosso comportamento. E numa sociedade complexa como a nossa, a mudança de patamar é um desafio diário.

Penso que os tais gigantes sobre os quais Isaac Newton e Aristóteles se apoiaram tenham sido estas pessoas que ousaram sair da caverna. Estes desbravadores enxergaram longe e se desacorrentaram em busca da luz. O caminho deve ter sido árduo. Mas o que pode ser mais árduo que ficar condenado a olhar somente para uma parede, com imagens e sombras sendo projetadas o tempo todo? E o pior: acreditar nisto.

Quantas tradições, hábitos e crenças acabaram criando desavenças e guerras no mundo? As tais sombras nas paredes...

Nossa visão está ofuscada. E este ofuscamento é porque não queremos enxergar a luz. Temos dificuldades de assimilar outras posições, assumir que erramos, nos abrir a outros conhecimentos. Quando nos colocamos na posição de aprendizes, que é o que somos e o que sempre seremos, precisamos dizer uma frase mágica: “Eu não sei. Por favor, me ajude”. E como é difícil dizer “eu não sei” no mundo dos que acham que sabem, no mundo que não dá espaço para o “não saber”. Como é ilusório dizer que sabemos!

Para aqueles moradores da caverna tudo estava no lugar, tudo estava certo, tinham as respostas. Para que ir lá para fora? Bobagem...

As imagens projetadas na parede da caverna não poderiam ser sobrepostas ao que era verdadeiro. Mas foram e são assim ainda hoje. E convivemos com isto.

Estamos subindo cada vez mais os nossos muros, além das cercas elétricas. Isto só reforça a nossa alienação. O outro que não tem sequer a casa para ter muros, que dirá uma cerca elétrica, embrutecido, agride o dono da casa que tem muros.

Com estes muros tão altos, como vamos nos apoiar nos ombros dos gigantes?

Os gigantes vão lá na frente..., mas os muros altos nos impedem de vê-los.

Os meninos pobres e sem muros em suas casas, vulgarmente chamados de menores, brincam de carrinho de rolimã na rua porque querem, podem e também porque não têm acesso ao tablet e nem aos livros.

Os meninos ricos e com muros em suas casas, educadamente chamados de crianças, brincam nos seus tablets porque querem, podem e também porque não conhecem o carrinho de rolimã. Ah, mas eles têm livros...

A falência de nossos valores, a crença desmedida naquilo que não faz sentido. O ir com o fluxo sem perguntar para onde se vai. Isto é alienação. Isto é construir e fazer a sua morada numa caverna.

Meus avós dormiam de janelas e de portas abertas. Por que hoje uma tranca só não é suficiente? Nem a nossa impressão digital mais dá conta da segurança. A ordem agora é mapear a nossa corrente sanguínea. Aí sim ninguém poderá se passar por nós. Socorro!

É preciso saber quando a alienação passou dos limites. O limite é necessário para nos libertarmos das nossas cavernas.

Temos medo de mudar porque isto nos desequilibra. Mudar é desequilibrar. Andar para frente requer desequilíbrio momentâneo. Mas quem quer se desequilibrar no mundo em que o equilíbrio é uma constante para os vaidosos?

Atitude transformadora é para quem quer sair da caverna. Mas precisa ter coragem de enfrentar o que estiver lá fora. Caverna é para muitos. Sair da caverna é para poucos e para os gigantes que tiverem a coragem de crescer.

Por isto penso que sair da caverna é uma escolha. Difícil, mas certamente recompensadora. A escolha é nossa. Ninguém poderá fazê-la por nós. Mas penso que se ousarmos sair dela, voltar lá será obrigatório para resgatar ou, pelo menos, tentar resgatar quem ficou lá dentro.

Mas só conseguiremos fazer isto se nos apoiarmos sobre ombros de gigantes, como disse Isaac Newton ou Aristóteles, que viram isto tudo antes da gente porque ousaram sair, bem cedo, de suas cavernas.

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