terça-feira, 21 de março de 2017

A fôrma que nos forma

Um pai, em companhia do filho, arrumava o peixe, sem a cabeça, na fôrma. O assado sairia num instante. O filho, observando o pai, perguntou:

- Pai, por que o senhor cortou a cabeça do peixe? Por que não podemos assar todo o peixe?

- Não sei, exatamente, meu filho. Por que a pergunta? Sempre fizemos desta forma. Além disto, esta é uma receita antiga. Aprendi com o seu avô.

O menino inquieto e insatisfeito, continuou:

- Mas por que, então, o vovô também corta a cabeça do peixe?

- Não sei, meu filho. Vamos até ele perguntar. E assim foram os dois até o avô do menino.

- Vovô, por que o senhor corta a cabeça do peixe? Por que não o assamos inteiro?

- Eu não sei, meu neto. Esta receita é tão antiga. Aprendi com o meu pai. Só sei que sempre fiz assim.

- Mas o senhor nunca perguntou o motivo? disse o neto.

- Não, nunca perguntei. Sempre foi feito assim. Mas se quiser, podemos ir até o seu bisavô perguntar. E assim foram. Chegando lá, o menino perguntou:

- Biso, por que o senhor corta a cabeça do peixe para assá-lo? Por que não podemos assá-lo inteiro? O bisavô olhou para o menino, um tanto indiferente, e disse:

- Não sei, meu filho. Isto é tão antigo. Nem me lembro mais do motivo, para ser sincero. Só sei que aprendi com meu pai, seu trisavô. Vamos até ele perguntar? E assim foram.

Quando chegaram lá, encontraram um senhor de aparência serena e tranquila. O menino se aproximou dele e perguntou:

- O senhor poderia me dizer o motivo de cortarem a cabeça do peixe, antes de assá-lo? Por que precisamos fazer isto e não o assar inteiro?

O trisavô, no auge da sua sabedoria, respondeu:

- Ah, sim, claro, realmente quando fiz este peixe pela primeira vez cortei a cabeça dele, sim. Mas foi só a primeira vez. Nas demais, eu o fiz inteiro, com a cabeça.

O menino, intrigado, diz ao trisavô:

- Ué, mas o meu bisavô, o meu vô e o meu pai cortam a cabeça do peixe todas as vezes que fazem este prato. Por que, então, o senhor não falou para eles que poderiam assar o peixe também com a cabeça?

O trisavô respondeu:

- Simplesmente porque eles não me perguntaram. E eu nem sabia que eles estavam fazendo este peixe desta forma. Eu só cortei a cabeça do peixe uma vez porque a minha fôrma era pequena, e a cabeça do peixe não cabia. Se eu tivesse, naquele momento, uma fôrma maior, certamente eu assaria o peixe com a cabeça...

A fôrma que nos forma. Estamos todos em uma. Mas será que ela cabe em nós?

Quando estamos numa fôrma, a medida deve ser justa e certa. Nem mais nem menos. O que sobrar desta fôrma deverá ficar do lado de fora. E como não temos a coragem de nos desinformar, muitas vezes, vamos sobrepondo camadas sobre a nossa essência e assim, perdemos grandes oportunidades de nos conhecer e de saber por qual motivo estamos dentro de fôrmas sendo formatados.

A fôrma que nos forma a seguirmos modelos existentes, mesmo que não façam sentido para nós. E por comodidade, orgulho, medo, negligência, ausência e falsa presença não perguntamos o motivo pelo qual assamos o peixe sem a cabeça.

As perguntas precisam ser feitas, mesmo que tenhamos medo das respostas. Mesmo que não seja compreensível, ainda, a nós, as perguntas precisam ser feitas. Mas quem ousa fazê-las? Cortar a cabeça do peixe parece ser tão mais fácil...

Perguntas bem-feitas nos colocam num outro patamar. Não num patamar arrogante, do inalcançável, daquele que acha que sabe, mas num patamar que pertence àquele que não teme, que enfrenta, que luta e que constrói. O “sempre foi feito assim” é um espaço pequeno e apertado para aquele que não tem medo de assar o peixe com a cabeça.

Não o fazer pelo fazer. Mas o fazer para o fazer.

Não a pergunta pela pergunta. Mas a pergunta para o sentido da pergunta.

Perguntar significa abrir portas mesmo que não tenhamos sido convidados para a festa. A inércia, o orgulho e a preguiça do “sempre foi feito assim” nos aprisionam em nossas próprias inferioridades.

Nossas assadeiras serão do tamanho de nossas perguntas.

Enfrentar e perguntar é amedrontador, mas libertador. E liberdade é o caminho para a felicidade. Uma felicidade verdadeira, livre, de poucas necessidades.

Acatar a passividade da ausência de perguntas traz retrocesso e submissão. Uma servidão voluntária, como provocou Etienne la Boétie, filósofo francês.

Por que obedecemos? Por que abrimos mão da nossa capacidade de decidir? Por que seguimos o que não tem sentido? Por que não questionamos?

Questionar implica construir caminhos.  E construção é sempre trabalhosa e cansativa.

Seguir respostas dadas e caminhos percorridos é acessível a todos. A construção foi feita por outros que não eu. O trabalho foi do outro. Eu só preciso seguir. É mais fácil e menos doloroso.

Quando perguntamos nos expomos ao mundo. Todos vão saber o que pensamos. E se ficarmos sozinhos no caminho após saberem o que pensamos? Após ouvirem as nossas perguntas?

Um monte de conversa só com um fiozinho de ação: nosso habitual.

Falas mais espaçadas com enormes caminhos de ação: o convite da vida. Alguém já o aceitou?

Temos uma altíssima disposição para a adaptabilidade. Somos excessivamente adaptados. E por quê? Porque também cortamos a cabeça do peixe para assá-lo, sem perguntarmos o motivo.

Se cortar a cabeça do peixe fizer sentido e coerência, devemos seguir. Afinal, comer uma cabeça de peixe não deve ser algo agradável. Mas se não fizer sentido cortá-la, por que o fazemos, então? Para seguirmos os passos que o outro já deu antes.

Seguimos o conhecido para não nos perdermos no caminho. Mas será que já não estamos perdidos no caminho trilhado? Afinal, ele foi trilhado pelo outro e não por nós.

Não precisamos seguir rotas que nos foram ensinadas.

Não precisamos concordar, se discordamos.

Não precisamos querer o que o outro quer que a gente queira.

Não precisamos seguir necessidades impostas por pessoas que nos desconhecem.

Questionar o motivo de cortar a cabeça do peixe é dedicar tempo para a vivência, para a experiência, para o que está por vir. Para uma vida com sentido.

Quando não questionamos o motivo de cortarmos a cabeça do peixe começamos a perder a nossa conexão com a vida e com nós mesmos. O questionar constrói. O seguir sem sentido destrói. Aquele que questiona justifica sua estada aqui. Aquele que somente segue e serve a ignorância precisará sempre se explicar. Sua estada aqui parece ser um favor.

A fôrma que nos forma deve ser posta em xeque. Qual é a fôrma que nos forma? Como entramos nessa fôrma? Queremos estar lá?

Mais do que estar e entrar em fôrmas, é saber sairmos delas, mesmo que ao desinformarmos a massa, ela quebre e esfarele um pouco. Quebrar um pedacinho da massa, no momento de desinformar, é o que trará conhecimento para os próximos desinformes.

A ousadia do disforme. A passividade da forma. Duas formas que lutam e vivem juntas.

Aquele que pergunta segue. Aquele que somente segue não valoriza o tamanho de suas pernas e o quanto elas poderiam contribuir para o avanço. O que pergunta, caminha. O que segue, aguarda uma carona de um desconhecido para levá-lo a um lugar qualquer.

Aquele que pergunta é desprovido de disfarces. Aquele que segue o que não faz sentido e não pergunta porque tem medo e preguiça é o que mais precisa disfarçar.

Coragem, ousadia e conhecimento são ingredientes que colaboram para o desinformar e para a rejeição de fôrmas sem sentido e medíocres. Orgulho, preguiça, comodismo e medo são ingredientes que colaboram, e muito, para nos moldarmos perfeitamente às fôrmas que colocam em nossos caminhos ou, até mesmo, em fôrmas que nós próprios criamos.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Winston Churchill, que diz: “O orgulhoso prefere perder-se a perguntar qual é o seu caminho. ”

Que a gente não se perca em fôrmas pré-concebidas pelo simples orgulho de não querermos perguntar ou pelo medo de colocarmos uma questão sobre a mesa. E que, se formos assar um peixe, sejamos nós os autores da nossa própria receita, com ou sem a cabeça.

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