Um pai, em companhia do filho,
arrumava o peixe, sem a cabeça, na
fôrma. O assado sairia num instante. O filho, observando o pai, perguntou:
- Pai, por que o senhor cortou a
cabeça do peixe? Por que não podemos assar todo o peixe?
- Não sei, exatamente, meu filho.
Por que a pergunta? Sempre fizemos desta forma. Além disto, esta é uma receita
antiga. Aprendi com o seu avô.
O menino inquieto e insatisfeito,
continuou:
- Mas por que, então, o vovô
também corta a cabeça do peixe?
- Não sei, meu filho. Vamos até
ele perguntar. E assim foram os dois até o avô do menino.
- Vovô, por que o senhor corta a
cabeça do peixe? Por que não o assamos inteiro?
- Eu não sei, meu neto. Esta
receita é tão antiga. Aprendi com o meu pai. Só sei que sempre fiz assim.
- Mas o senhor nunca perguntou o
motivo? disse o neto.
- Não, nunca perguntei. Sempre
foi feito assim. Mas se quiser, podemos ir até o seu bisavô perguntar. E assim
foram. Chegando lá, o menino perguntou:
- Biso, por que o senhor corta a
cabeça do peixe para assá-lo? Por que não podemos assá-lo inteiro? O bisavô
olhou para o menino, um tanto indiferente, e disse:
- Não sei, meu filho. Isto é tão
antigo. Nem me lembro mais do motivo, para ser sincero. Só sei que aprendi com
meu pai, seu trisavô. Vamos até ele perguntar? E assim foram.
Quando chegaram lá, encontraram
um senhor de aparência serena e tranquila. O menino se aproximou dele e
perguntou:
- O senhor poderia me dizer o
motivo de cortarem a cabeça do peixe, antes de assá-lo? Por que precisamos
fazer isto e não o assar inteiro?
O trisavô, no auge da sua
sabedoria, respondeu:
- Ah, sim, claro, realmente
quando fiz este peixe pela primeira vez cortei a cabeça dele, sim. Mas foi só a
primeira vez. Nas demais, eu o fiz inteiro, com a cabeça.
O menino, intrigado, diz ao
trisavô:
- Ué, mas o meu bisavô, o meu vô
e o meu pai cortam a cabeça do peixe todas as vezes que fazem este prato. Por
que, então, o senhor não falou para eles que poderiam assar o peixe também com
a cabeça?
O trisavô respondeu:
- Simplesmente porque eles não me
perguntaram. E eu nem sabia que eles estavam fazendo este peixe desta forma. Eu
só cortei a cabeça do peixe uma vez porque a minha fôrma era pequena, e a
cabeça do peixe não cabia. Se eu tivesse, naquele momento, uma fôrma maior,
certamente eu assaria o peixe com a
cabeça...
A fôrma que nos forma. Estamos
todos em uma. Mas será que ela cabe em nós?
Quando estamos numa fôrma, a
medida deve ser justa e certa. Nem mais nem menos. O que sobrar desta fôrma
deverá ficar do lado de fora. E como não temos a coragem de nos desinformar,
muitas vezes, vamos sobrepondo camadas sobre a nossa essência e assim, perdemos
grandes oportunidades de nos conhecer e de saber por qual motivo estamos dentro
de fôrmas sendo formatados.
A fôrma que nos forma a seguirmos
modelos existentes, mesmo que não façam sentido para nós. E por comodidade, orgulho,
medo, negligência, ausência e falsa presença não perguntamos o motivo pelo qual
assamos o peixe sem a cabeça.
As perguntas precisam ser feitas, mesmo que tenhamos medo das respostas.
Mesmo que não seja compreensível, ainda, a nós, as perguntas precisam ser
feitas. Mas quem ousa fazê-las? Cortar a cabeça do peixe parece ser tão mais
fácil...
Perguntas bem-feitas nos colocam
num outro patamar. Não num patamar arrogante, do inalcançável, daquele que acha
que sabe, mas num patamar que pertence àquele que não teme, que enfrenta, que
luta e que constrói. O “sempre foi feito assim” é um espaço pequeno e apertado
para aquele que não tem medo de assar o peixe com a cabeça.
Não o fazer pelo fazer. Mas o fazer para
o fazer.
Não a pergunta pela pergunta. Mas
a pergunta para o sentido da pergunta.
Perguntar significa abrir portas
mesmo que não tenhamos sido convidados para a festa. A inércia, o orgulho e a preguiça
do “sempre foi feito assim” nos aprisionam em nossas próprias inferioridades.
Nossas assadeiras serão do tamanho de nossas perguntas.
Enfrentar e perguntar é
amedrontador, mas libertador. E liberdade é o caminho para a felicidade. Uma
felicidade verdadeira, livre, de poucas necessidades.
Acatar a passividade da ausência
de perguntas traz retrocesso e submissão. Uma servidão voluntária, como
provocou Etienne la Boétie, filósofo
francês.
Por que obedecemos? Por que
abrimos mão da nossa capacidade de decidir? Por que seguimos o que não tem
sentido? Por que não questionamos?
Questionar implica construir
caminhos. E construção é sempre
trabalhosa e cansativa.
Seguir respostas dadas e caminhos
percorridos é acessível a todos. A construção foi feita por outros que não eu.
O trabalho foi do outro. Eu só preciso seguir. É mais fácil e menos doloroso.
Quando perguntamos nos expomos ao
mundo. Todos vão saber o que pensamos. E se ficarmos sozinhos no caminho após
saberem o que pensamos? Após ouvirem as nossas perguntas?
Um monte de conversa só com um
fiozinho de ação: nosso habitual.
Falas mais espaçadas com enormes
caminhos de ação: o convite da vida.
Alguém já o aceitou?
Temos uma altíssima disposição
para a adaptabilidade. Somos excessivamente adaptados. E por quê? Porque também
cortamos a cabeça do peixe para assá-lo, sem perguntarmos o motivo.
Se cortar a cabeça do peixe fizer
sentido e coerência, devemos seguir. Afinal, comer uma cabeça de peixe não deve
ser algo agradável. Mas se não fizer sentido cortá-la, por que o fazemos,
então? Para seguirmos os passos que o outro já deu antes.
Seguimos o conhecido para não nos
perdermos no caminho. Mas será que já não estamos perdidos no caminho trilhado?
Afinal, ele foi trilhado pelo outro e não por nós.
Não precisamos seguir rotas que
nos foram ensinadas.
Não precisamos concordar, se discordamos.
Não precisamos querer o que o
outro quer que a gente queira.
Não precisamos seguir
necessidades impostas por pessoas que nos desconhecem.
Questionar o motivo de cortar a
cabeça do peixe é dedicar tempo para a vivência, para a experiência, para o que
está por vir. Para uma vida com sentido.
Quando não questionamos o motivo
de cortarmos a cabeça do peixe começamos a perder a nossa conexão com a vida e
com nós mesmos. O questionar constrói. O seguir sem sentido destrói. Aquele que
questiona justifica sua estada aqui. Aquele que somente segue e serve a
ignorância precisará sempre se explicar. Sua estada aqui parece ser um favor.
A fôrma que nos forma deve ser
posta em xeque. Qual é a fôrma que nos forma? Como entramos nessa fôrma? Queremos
estar lá?
Mais do que estar e entrar em
fôrmas, é saber sairmos delas, mesmo que ao desinformarmos a massa, ela quebre
e esfarele um pouco. Quebrar um pedacinho da massa, no momento de desinformar, é
o que trará conhecimento para os próximos desinformes.
A ousadia do disforme. A passividade da forma. Duas formas que lutam e
vivem juntas.
Aquele que pergunta segue. Aquele
que somente segue não valoriza o tamanho de suas pernas e o quanto elas
poderiam contribuir para o avanço. O que pergunta, caminha. O que segue,
aguarda uma carona de um desconhecido para levá-lo a um lugar qualquer.
Aquele que pergunta é desprovido
de disfarces. Aquele que segue o que não faz sentido e não pergunta porque tem
medo e preguiça é o que mais precisa disfarçar.
Coragem, ousadia e conhecimento
são ingredientes que colaboram para o desinformar e para a rejeição de fôrmas
sem sentido e medíocres. Orgulho, preguiça, comodismo e medo são ingredientes
que colaboram, e muito, para nos moldarmos perfeitamente às fôrmas que colocam
em nossos caminhos ou, até mesmo, em fôrmas que nós próprios criamos.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com uma provocação de Winston Churchill, que diz: “O orgulhoso
prefere perder-se a perguntar qual é o seu caminho. ”
Que a gente não se perca em
fôrmas pré-concebidas pelo simples orgulho de não querermos perguntar ou pelo
medo de colocarmos uma questão sobre a mesa. E que, se formos assar um peixe,
sejamos nós os autores da nossa própria receita, com ou sem a cabeça.
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