terça-feira, 28 de março de 2017

O caminho escolhido nos revela

Quem vê aquele senhor, parado próximo à guia, verificando o celular, não diz que há poucos minutos ele descia de um carro que estava em fila dupla. A fila dupla que duplica o que não precisa: os entraves do caminho escolhido por aquele que faz errado e por aquele que acata o que o outro faz de errado.

Os pés descalços daquele que não tem o que entrar pela boca, muito menos o que vestir nos pés. Os pés descalços daquele que sente a terra para acordar os seus sentidos. O descalçar para estabelecer uma conexão sem intermediários: os sapatos que escondem as marcas daquele que anda, que busca, com ou sem calçado.

A mãe que veste um agasalho no filho mais novo porque começou a esfriar. O mais velho puxa a planta do jardim de um prédio e ainda pisa na grama. Mas o filho mais novo está agasalhado, mesmo que às custas de gramas e plantas machucadas.

O homem que passa, e que buzina, e que xinga, e que gesticula, e que fala alto. Mas ele acabou de sair da missa e de comungar. É possível, ainda, verificar o pequeno terço que vai no espelho do retrovisor do carro dele.

O menino que passa verificando uma mensagem no celular. Tropeça na pessoa que vem na direção contrária. Mas que não levanta a cabeça porque está verificando a mensagem.

A moça passa gravando um áudio, também, no celular. Caminha contornando os obstáculos, no caso, pessoas, e se apressa para chegar a um lugar que talvez nem saiba onde fica. Mas a pressa a fará chegar mais depressa ao lugar desconhecido.

A mãe que passa de mãos dadas com a criança. Mas a velocidade do caminhar não é a da criança, mas sim a da mãe, que, no caso, é a que menos precisa.

O caminho que escolhemos nos revela.

As especializações que dificultam o aprendizado. A simplicidade que constrói, porém não é valorizada por ser simples demais.

O mau gestor que rouba a energia de quem está perto. A incompetência disfarçada é pior que a incompetência declarada. Habilidades e competências não fazem parte de seu atuar. Querem ser servidos. Mas fingem que servem. As necessidades reais sendo sobrepostas por necessidades criadas sob o comando da arrogância e da vaidade. Doentes morais. Ele não deveria estar lá. Mas quem o colocou lá? Aquele que compartilha disto.

O bom líder que não tem muitas chances por não compartilhar da ausência de ética de muitos.

O bêbado que está sóbrio. O lúcido que vê coisas.

A criança que grita para chamar a atenção. E que consegue. Se ela gritar com a vida, será que ela para, também? Pode ser que sim, se ela estiver de bom humor...

Os acordes desafinados tocados pelo mestre. A afinação é coisa do passado. Quem perceberá o desafinar, no espetáculo, se as luzes do palco concorrem com as luzes dos celulares e dos computadores?

O analfabetismo necessário para a manipulação que se deseja. Manipular aquele que não sabe é covardia. Mas manipulação me parece que tem sido sinônimo de uma espécie de “cidadania”. O manipular cria uma situação de necessidade, para o mais fraco. Assim, aquele que manipula terá espaço para despejar suas sombras no outro.

Os trechos ditos pelo padre, durante a missa. Minutos depois, este mesmo padre dormiu enquanto os demais rituais eram seguidos e presenciados por pessoas que não estavam lá. Mas que estavam comodamente sentadas nos bancos.

A fala repetida não porque faz sentido, mas pela simples rotina da repetição.

Mais uma pessoa passa verificando seus e-mails. Conectados cada vez mais com algo que nos desconecta de nós mesmos. A conexão com a máquina facilita o distanciamento nosso de cada dia, e estamos longe de encontrarmos o pão, como diz a oração. Ele está próximo de nós, talvez por isto não o encontramos.

Para encontrarmos o pão, será necessário dividi-lo. E para dividi-lo, será necessário sentar-se ao lado do outro, para ficarmos do mesmo tamanho dele. Ainda não encontramos este pão. Nem em aplicativos, porque foram criados por quem evita massas e glúten.

O cachorro puxa firme a coleira. Quer andar mais rápido para poder aproveitar bem o passeio. Não sabe quando sairá de novo.

O correr é um sinalizador de ausência.

O sofrer é um sinalizador do conhecer.

Aquele que passa falando muito, porque as vozes da sua mente são insuportáveis. Aquele que é calado porque já fez as pazes com a sua consciência.

O choro misturado ao riso. Uma mistura chamada vida.

O grito misturado ao silêncio. Um exercício de inclusão em nós mesmos.

Reconhecemo-nos inclusivos, desde que a gente não precise fazer parte disto. A inclusão está no discurso e a exclusão na nossa prática. Somente incluímos aquilo que traz inclusões para nós. Do contrário, a exclusão é a regra. Se assim não fosse, por que ainda discutimos as velhas e mesmas coisas?

Discurso e prática: a melhor forma de conhecer alguém. O caminho escolhido nos revela.

Somos reconhecidos pelas nossas escolhas, discursos, ações e reações.

Aquele mesmo senhor que vai, novamente, à missa, reza a oração junto ao padre. Todos se levantam como sinal de respeito. Logo adiante, o sinal do semáforo não é respeitado pelos mesmos integrantes da missa. Seriam situações distintas?

A comunhão é a simbologia da divisão, do partilhar. Mas ainda temos dificuldades de partilharmos o que vai em nossos excessos.

A mesma fila dupla. Agora outra pessoa. Vários carros passam e buzinam. Pedem licença para passarem. O homem assiste a tudo passivamente. Como se não fosse com ele. Mas é. E ironicamente, um adesivo no carro deste mesmo homem que faz da fila dupla uma extensão da sua existência, diz: “que Deus te acompanhe”.

A ironia que nos sustenta, mas que não somos capazes de compreendê-la. As contradições que nos formam, mas que juramos que não somos assim, tão contraditórios. Os paradoxos que escondem nossos valores e que, ao serem revelados, nos dão espelhos de presente.

Criamos espetáculos porque acreditamos na ilusão. Mas o que, muitas vezes, não percebemos, é que a plateia que nos assiste está sedenta por nossa queda. E imediatamente a nossa queda, aquele que nos ajuda é o que não está na plateia, e sim, nos bastidores nos aguardando. Porque lá é o lugar aonde tudo é construído e sustentado.

O palco é um lugar de ilusões e de representações. A vida, de verdade, se faz antes dele.

O dia em que ampliarmos a nossa compreensão sobre quem, verdadeiramente, somos, e não sobre quem queremos aparentar ser, as ironias, os paradoxos e as contradições serão remotas lembranças. Os recados já terão sido todos dados.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com a imagem abaixo:

imagem tirada da internet

Que nós sejamos o pássaro da imagem que, com o seu atrevimento de pousar em um lugar proibido, pelo menos para ele, ousa questionar as regras e mais, transgredi-las com argumento sólido. Que sejamos nós, este pássaro, fazendo reflexões sobre nossas contradições e limitações para que possamos ser mais, muito mais.

Nossos caminhos escolhidos nos revelam quem somos.

Que estejamos em paz com os nossos caminhos escolhidos e com a revelação que eles fizerem. Mas se não estivermos, que saibamos que ainda há tempo de tirarmos o nosso carro da fila dupla e de irmos à missa de verdade e por vontade. E mais: que o terço em nosso retrovisor seja, de verdade, um reflexo da nossa crença e escolha de vida. E não um objeto que decora um espelho no qual não reconhecemos a imagem nele refletida.

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