terça-feira, 14 de março de 2017

Nossa velha conhecida

Um corvo, com um belo pedaço de queijo no bico, pousou em uma árvore. Estava sossegado. Mas como todo o sossego dura pouco, uma raposa se aproxima dali atraída pelo cheiro do pedaço de queijo. Com muita vontade de comê-lo, mas sem condições de subir na árvore para pegá-lo, pensou em outra estratégia...

- Bom dia, amigo Corvo! - disse ela.

O corvo a observou e fez uma saudação balançando a cabeça.

- Ouvi falar que o rouxinol tem o canto mais belo de toda a floresta. Mas eu aposto que você, meu amigo, se cantasse, o faria melhor que qualquer outro animal.

Sentindo-se desafiado e querendo provar o seu valor, o corvo abriu o bico para cantar. E imediatamente o pedaço de queijo caiu e foi direto para o chão.

A raposa apanhou o queijo e, irônica, ainda disse: Obrigada, amigo, pelo pedaço de queijo. Mas da próxima vez, desconfie das bajulações...

Moral da história: os bajuladores estão sempre de plantão aguardando a sua queda.

imagem tirada da internet

Lendo esta ingênua fábula, que de ingênua não tem nada, ficou fácil descobrir que o corvo perderia o pedaço de queijo. Assim como estavam claras, para nós, as más intenções da raposa.

Olhando e observando do lado de fora, tudo fica mais fácil e mais claro. Mas quando somos nós os protagonistas da história sendo contada, aonde vai parar aquela nossa facilidade?

O corvo e a raposa são representações do humano que há em nós. Somos um. Somos o outro. Somos os dois. Representado, aqui, por meio de uma fábula, este texto é um convite para descortinarmos algumas janelas que existem em nós. De tempos em tempos, é importante afastarmos as cortinas para podermos enxergar o que a paisagem tem a nos dizer.

O desejo a qualquer custo de ser o melhor, de ser reconhecido e de ser um destaque é o que nos leva ao declínio. Buscar nosso aperfeiçoamento é genuíno e necessário. Deve ser um desejo nosso. Sem isto, pararíamos e perderíamos a chance de irmos além. Um desperdício, portanto. Mas ultrapassarmos a linha do equilíbrio e querermos ser mais do que somos é buscarmos companhia e aconchego na arrogância, na prepotência e na alienação. Sabemos que não são boas companhias. Por que insistimos nisto, então?

Quantos pedaços de queijo ainda perderemos?

Os excessos nos completam, mas não deveriam. Os equilíbrios nos desequilibram. Buscamos a corda bamba. Buscamos o perigo desnecessário. Buscamos a alienação. Buscamos o problema.

Rejeitamos o acerto. Andamos pelo caminho mais difícil. Complicamos o que a vida tenta, a todo custo, descomplicar. Se não há problemas, desconfiamos, e criamos um. Habituamo-nos à falta, à escassez, e não à abundância e à simplicidade.

E quando a solução se apresenta, não a reconhecemos.

O corvo representa a vaidade, nossa velha e conhecida amiga. Somos tão frágeis, que uma bajulação foi confundida com elogio. E como somos ávidos e carentes de elogios, caímos na armadilha da raposa.

imagem tirada da internet

Como são caçadoras oportunistas e ardilosas, usam a inteligência apenas para benefício próprio, e assim, conseguem apanhar as suas presas facilmente. Sabem que o nosso ponto fraco é o desejo do confete a qualquer custo, é a vontade de estarmos sempre no palco, sendo aplaudidos e reconhecidos como os melhores. Qualquer coisa exceto ser o melhor não nos interessa.

Somos o corvo: buscamos o constante elogio. Somos incapazes de distinguimos um elogio sincero de uma bajulação. A falsidade explícita que há nisso cega os nossos olhos.

Queremos tanto o palco, que ele mesmo será o motivo da nossa queda. Queremos tanto as luzes, que elas mesmas nos cegarão. Queremos tanto o brilho, que ele próprio nos ofuscará.

Ironia, não? Mas temos opções. Temos outras escolhas. As raposas de plantão sabem que temos escolhas. Mas elas também sabem que temos dificuldades de compreender estas escolhas. Muito providencial, para elas, a nossa alienação. Que, no fundo, só as alimenta.

É preciso saber receber elogios, sinceros, claro. Um elogio nos fortalece para seguirmos. Um elogio é um eco do outro reconhecendo o nosso valor. É uma voz que contribui para o nosso caminhar. Quando nos elogiamos, quando somos elogiados, de verdade, compreendemos o sentido e o que fazemos aqui. É um norte. Uma direção que, verdadeiramente, nos guia.

No entanto, é preciso saber diferenciar um elogio da bajulação. O elogio foi construído na verdade; a bajulação, na mentira. O elogio é discreto, sem sobreposições, sem excessos. A bajulação é sempre excessiva, desconfortante, constrangedora. O elogio não é tendencioso. A bajulação é pegajosa e desonesta. Só serve para alimentar as nossas misérias que tentamos esconder de nós mesmos.

O papel do elogio é alimentar aquilo que constrói. O papel da bajulação é destruir tudo e todos que atrapalham o caminho daquele que acredita que deve ser servido, daquele que acredita que o palco é o mínimo que a vida deve a ele. Daquele que acredita que o outro é mero equívoco da natureza.

Aquele que elogia é livre e feliz porque não está preso a convenções. Possui poucas necessidades porque seu caminho é reto, transparente. Tem foco e direção.

Aquele que bajula está preso em suas próprias teias e, dificilmente, conseguirá sair delas. Será refém de sua própria trama. Deve possuir uma excelente memória para poder se lembrar de todas as mentiras contadas. Sua vida é triste porque desconhece o caminho da liberdade. Desconhece formas de vida eficazes e sustentáveis.

Os corvos que há em nós não nos deixam dúvidas sobre a arrogância e sobre a vaidade que nos alimentam. Enquanto dermos vozes às nossas vaidades desmedidas, as raposas serão sempre muito bem alimentadas. E as raposas que há em nós também não nos deixam dúvidas sobre a certeza de, muitas vezes, utilizarmos a nossa inteligência para aquilo que nos aprisiona e não para aquilo que nos liberta. Enquanto dermos vozes às raposas que há em nós, a base do mundo ainda será a felicidade com a infelicidade do outro. A satisfação porque o outro perdeu o seu pedaço de queijo.

Os corvos que há em nós são tristes porque desconhecem a possibilidade do elogio verdadeiro. Não há a necessidade de bajulações.

As raposas que há em nós são tristes porque desconhecem que o vencer se dá quando o valor e o direito do outro também são reconhecidos.

Quando as mesquinharias deixarem de existir, as raposas entrarão em extinção.

Quando acreditarmos no potencial que habita em nós, sem vaidades, os corvos baterão suas asas em direção oposta a nós.

Não podemos exigir muito discernimento de um corvo e de uma raposa, na realidade. São animais movidos pelo instinto de sobrevivência. Mas de nós, o que já podemos exigir?

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma bela provocação de François La Rochefoucauld, pensador do século XVI, que diz:

“A bajulação é a moeda falsa que só circula por causa da vaidade humana.”

Portanto, se ela existe é porque a alimentamos, seja como corvos, seja como raposas.

Que o nosso próximo pedaço de queijo, se caído de nossas bocas, tenha sido derrubado para alimento do próximo, e não para alimento de nossa vaidade e alienação. Desta forma, as bajulações feitas pelas raposas que aparecerem em nossos caminhos perderão, completamente, o sentido.

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