Um corvo, com um belo pedaço de
queijo no bico, pousou em uma árvore. Estava sossegado. Mas como todo o sossego
dura pouco, uma raposa se aproxima dali atraída pelo cheiro do pedaço de
queijo. Com muita vontade de comê-lo, mas sem condições de subir na árvore para
pegá-lo, pensou em outra estratégia...
- Bom dia, amigo Corvo! - disse ela.
O corvo a observou e fez uma
saudação balançando a cabeça.
- Ouvi falar que o rouxinol tem o
canto mais belo de toda a floresta. Mas eu aposto que você, meu amigo, se cantasse, o faria melhor
que qualquer outro animal.
Sentindo-se desafiado e querendo provar o seu valor, o corvo abriu o bico
para cantar. E imediatamente o pedaço de queijo caiu e foi direto para o chão.
A raposa apanhou o queijo e,
irônica, ainda disse: Obrigada, amigo,
pelo pedaço de queijo. Mas da próxima vez, desconfie das bajulações...
Moral da história: os bajuladores estão sempre de plantão aguardando a
sua queda.
imagem tirada da internet
Lendo esta ingênua fábula, que de ingênua não tem nada, ficou fácil descobrir
que o corvo perderia o pedaço de queijo. Assim como estavam claras, para nós,
as más intenções da raposa.
Olhando e observando do lado de fora, tudo fica mais fácil e mais
claro. Mas quando somos nós os protagonistas da história sendo contada, aonde
vai parar aquela nossa facilidade?
O corvo e a raposa são
representações do humano que há em nós. Somos um. Somos o outro. Somos os dois.
Representado, aqui, por meio de uma fábula, este texto é um convite para
descortinarmos algumas janelas que existem em nós. De tempos em tempos, é
importante afastarmos as cortinas para podermos enxergar o que a paisagem tem a
nos dizer.
O desejo a qualquer custo de ser
o melhor, de ser reconhecido e de ser um destaque é o que nos leva ao declínio.
Buscar nosso aperfeiçoamento é genuíno e necessário. Deve ser um desejo nosso.
Sem isto, pararíamos e perderíamos a chance de irmos além. Um desperdício,
portanto. Mas ultrapassarmos a linha do equilíbrio e querermos ser mais do que
somos é buscarmos companhia e aconchego na arrogância, na prepotência e na
alienação. Sabemos que não são boas companhias. Por que insistimos nisto,
então?
Quantos pedaços de queijo ainda
perderemos?
Os excessos nos completam, mas
não deveriam. Os equilíbrios nos desequilibram. Buscamos a corda bamba.
Buscamos o perigo desnecessário. Buscamos a alienação. Buscamos o problema.
Rejeitamos o acerto. Andamos pelo
caminho mais difícil. Complicamos o que a vida tenta, a todo custo,
descomplicar. Se não há problemas, desconfiamos, e criamos um. Habituamo-nos à
falta, à escassez, e não à abundância e à simplicidade.
E quando a solução se apresenta,
não a reconhecemos.
O corvo representa a vaidade,
nossa velha e conhecida amiga. Somos tão frágeis, que uma bajulação foi
confundida com elogio. E como somos ávidos e carentes de elogios, caímos na
armadilha da raposa.
imagem tirada da internet
Como são caçadoras oportunistas e
ardilosas, usam a inteligência apenas para benefício próprio, e assim, conseguem
apanhar as suas presas facilmente. Sabem que o nosso ponto fraco é o desejo do
confete a qualquer custo, é a vontade de estarmos sempre no palco, sendo aplaudidos e reconhecidos como os melhores. Qualquer coisa exceto ser o melhor não nos interessa.
Somos o corvo: buscamos o
constante elogio. Somos incapazes de distinguimos um elogio sincero de uma
bajulação. A falsidade explícita que há nisso cega os nossos olhos.
Queremos tanto o palco, que ele
mesmo será o motivo da nossa queda. Queremos tanto as luzes, que elas mesmas
nos cegarão. Queremos tanto o brilho, que ele próprio nos ofuscará.
Ironia, não? Mas temos opções.
Temos outras escolhas. As raposas de plantão sabem que temos escolhas. Mas elas
também sabem que temos dificuldades de compreender estas escolhas. Muito
providencial, para elas, a nossa alienação. Que, no fundo, só as alimenta.
É preciso saber receber elogios,
sinceros, claro. Um elogio nos fortalece para seguirmos. Um elogio é um eco do
outro reconhecendo o nosso valor. É uma voz que contribui para o nosso
caminhar. Quando nos elogiamos, quando somos elogiados, de verdade, compreendemos
o sentido e o que fazemos aqui. É um norte. Uma direção que, verdadeiramente, nos
guia.
No entanto, é preciso saber
diferenciar um elogio da bajulação. O elogio foi construído na verdade; a
bajulação, na mentira. O elogio é discreto, sem sobreposições, sem excessos. A
bajulação é sempre excessiva, desconfortante, constrangedora. O elogio não é
tendencioso. A bajulação é pegajosa e desonesta. Só serve para alimentar as
nossas misérias que tentamos esconder de nós mesmos.
O papel do elogio é alimentar
aquilo que constrói. O papel da bajulação é destruir tudo e todos que
atrapalham o caminho daquele que acredita que deve ser servido, daquele que
acredita que o palco é o mínimo que a vida deve a ele. Daquele que acredita que
o outro é mero equívoco da natureza.
Aquele que elogia é livre e feliz
porque não está preso a convenções. Possui poucas necessidades porque seu
caminho é reto, transparente. Tem foco e direção.
Aquele que bajula está preso em
suas próprias teias e, dificilmente, conseguirá sair delas. Será refém de sua
própria trama. Deve possuir uma excelente memória para poder se lembrar de
todas as mentiras contadas. Sua vida é triste porque desconhece o caminho da
liberdade. Desconhece formas de vida eficazes e sustentáveis.
Os corvos que há em nós não nos
deixam dúvidas sobre a arrogância e sobre a vaidade que nos alimentam. Enquanto
dermos vozes às nossas vaidades desmedidas, as raposas serão sempre muito bem
alimentadas. E as raposas que há em nós também não nos deixam dúvidas sobre a
certeza de, muitas vezes, utilizarmos a nossa inteligência para aquilo que nos
aprisiona e não para aquilo que nos liberta. Enquanto dermos vozes às raposas
que há em nós, a base do mundo ainda será a felicidade com a infelicidade do
outro. A satisfação porque o outro perdeu o seu pedaço de queijo.
Os corvos que há em nós são
tristes porque desconhecem a possibilidade do elogio verdadeiro. Não há a
necessidade de bajulações.
As raposas que há em nós são
tristes porque desconhecem que o vencer se dá quando o valor e o direito do
outro também são reconhecidos.
Quando as mesquinharias deixarem
de existir, as raposas entrarão em extinção.
Quando acreditarmos no potencial
que habita em nós, sem vaidades, os corvos baterão suas asas em direção oposta
a nós.
Não podemos exigir muito
discernimento de um corvo e de uma raposa, na realidade. São animais movidos
pelo instinto de sobrevivência. Mas de nós, o que já podemos exigir?
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com uma bela provocação de François La Rochefoucauld, pensador do
século XVI, que diz:
“A bajulação é a moeda falsa que
só circula por causa da vaidade humana.”
Portanto, se ela existe é porque
a alimentamos, seja como corvos, seja como raposas.
Que o nosso próximo pedaço de
queijo, se caído de nossas bocas, tenha sido derrubado para alimento do
próximo, e não para alimento de nossa vaidade e alienação. Desta forma, as
bajulações feitas pelas raposas que aparecerem em nossos caminhos perderão,
completamente, o sentido.
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