quarta-feira, 5 de abril de 2017

Ouvidos de ouvir

Jesus sempre dizia, aos que acreditavam nele e em suas palavras, que quem tivesse olhos de ver que visse, e ouvidos de ouvir que ouvisse.

Independentemente de nossas crenças religiosas, se as temos ou não, a fala acima de Jesus é conhecida de todos nós. É uma provocação e um convite austero para repensarmos nossos modelos existentes de vida, de crenças, de hábitos, de costumes e, principalmente, de atitudes.

Os ouvidos são para ouvir, mas ouvir o quê?

Os olhos são para enxergar, mas enxergar o quê?

Ou seja, o óbvio que, mais uma vez, está distante de todos nós.

imagem tirada da internet

A preposição “de” em “Ouvidos de ouvir e olhos de ver” faz toda a diferença.  Uma das formas que podemos utilizar a preposição de é quando queremos indicar uso, função, propósito, destinação. Portanto, os ouvidos de ouvir e os olhos de ver indicam que estes mesmos olhos e ouvidos possuem um propósito e uma função. Não estão aqui por acaso. Acreditar que eles apenas ouvem e enxergam é aceitar o raso como um elemento-chave do nosso viver. E sabemos que podemos ir além, fazermos mais e darmos um passo adiante.

Aquele que tem ouvidos de ouvir e olhos de ver são os que vão à frente. Lá longe se distanciam dos demais. Entenderam o recado de forma mais assertiva que outros. São os que utilizam o tempo a seu favor e não contra. São aqueles que, mesmo avançados em sua caminhada, não se esquecem dos que, por escolha, optaram por reduzirem a velocidade de suas marchas. Afinal, as distrações do caminho são tantas, que dá muito trabalho ter ouvidos de ouvir e olhos de ver. Mais fácil será ter os ouvidos e olhos comuns, sem tantas preocupações.

Filtrar e excluir o desnecessário requer sabedoria e coragem. Um caminho ainda trilhado por poucos. Há espaço para mais pessoas. No entanto, é preciso aceitar o convite para este caminhar. É preciso coragem e abertura de sentidos para esta busca. Não se trata de uma tarefa simples. Mas alguém falou para nós que seria?

Ouvidos que apenas ouçam e olhos que apenas vejam: o caminho mais fácil. Curto. Logo ali. Rápido. Pouco tempo para chegar. Que bom, porque assim não perderemos a novela.

Ouvidos de ouvir e olhos de ver: o caminho mais árduo, duro, cansativo. E muitas vezes, solitário. Caminho que precisa de muitos passos para ser concluído. Muito tempo para chegar. Sustentável. Mas nele não há espaço para o acompanhar de cada capítulo da novela, comodamente do sofá da sala, sem envolvimento, sem preocupações. Talvez a única preocupação seja o desligar da televisão quando o capítulo, daquele dia, estiver terminado.

Nossos ouvidos e nossos olhos são, em sua maioria, seletivos. Ouvimos o que nos é cômodo e o que nos coloca, confortavelmente, naquele mesmo sofá para assistirmos à novela. Alguém nos colocou neste lugar de destaque, e é isto o que importa. Se o que ouvimos é falso ou não, pouco adianta. Afinal, a novela já vai começar e não temos muito tempo para buscarmos esta informação. E os nossos olhos também são seletivos. Enxergamos somente aquilo que continuará a alimentar e a sustentar nossa estada no sofá. Enquanto o nosso lugar estiver assegurado, vamos fazendo vistas grossas para o restante.

Faz muita diferença sabermos quem se beneficia com nossa estada no sofá. Com os nossos ouvidos e vista falhos. Mas quem está preocupado com isto? Os que estão, já podem ser vistos dobrando a esquina, lá, bem lá na frente.

Precisamos de confiança, coragem e audácia para rejeitarmos certas coisas na vida. Rejeitarmos ouvidos e vistas medíocres poderia ser o nosso primeiro passo. Mas quem começa?

A provocação de Jesus é atemporal. Cabe muito, portanto, para uma atualidade que insiste em perpetuar alguns modelos falidos e insustentáveis. Uma provocação atual para um mundo que, infelizmente, caminha a passos lentos por escolha própria. A velocidade não tem sido nossa melhor companheira. Pelos menos, não para isto.

Precificamos o que não podemos. Não insistimos na busca por sermos melhores.

É preciso acreditar na nossa insistência. Na nossa insistência de querermos ser bons. Esta insistência existe. Mas está perdida no meio de tantos comerciais que passam durante a novela. Por não temos olhos de ver a outros canais?

Vamos nos desdobrando em diversos, muitas vezes, sem sentido. Um diverso que não constrói, que demora, que insiste no retroceder, no nosso marasmo. Um retrocesso parado na fila dupla que atrapalha o outro, mas que resolve o seu problema.

Vamos nos descobrindo no fazer. Mas é preciso começar. Se não, como descobri-lo?

O desdobramento que descobre o fazer: pensemos neste arco como uma ferramenta para alcançarmos aquele que vai dobrando a esquina. Este nosso arco nos levará até ele.

É rever os nossos padrões de certezas para que possamos ter ouvidos de ouvir o que precisa, não o que queremos, apenas. Escolher ter ouvidos de ouvir e olhos de ver nos trará vazios, mas que nos servirão para nos reconstituir.

A nossa vaidade se alimenta dos olhos e dos ouvidos rasos. O nosso orgulho também. Beneficiamo-nos com os nossos olhos e ouvidos medianos. O pensar custa e dá trabalho. Trabalhar nossos ouvidos e aguçar a nossa visão nos afastarão dos confetes que nos são jogados por pessoas que estão à espreita da nossa queda, do nosso escorregar nas pequenas cascas de bananas. São invisíveis, mas estão lá. Prontas.

Os confetes não passarão por crise de vendas e de abastecimento num mundo que valoriza o supérfluo, a aparência, a vaidade e o eu exacerbado em detrimento do outro. Avançamos, sim. O nosso passado nos confirma isto. Mas acho que temos problemas na velocidade.

Quando teimamos em ter ouvidos e olhos rasos, são as vagas certezas que temos, que utilizamos. Por que não fazemos melhores escolhas? Esta velocidade lenta é uma opção. Para quê tantas marchas se mal sabemos utilizar a primeira?

Ansiamos pelo tratamento imediato e não pelo entendimento, pela compreensão e pela aceitação da dor. Tomar um comprimido é mais fácil e muito mais rápido.

Conhecer-se é um processo árduo e sofrido. E somente com ouvidos de ouvir e olhos de ver conseguiremos dar os passos necessários. Sem diagnósticos apressados de coisas inexistentes e de coisas inventadas.

Aquele que tem ouvidos de ouvir e olhos de ver é o desprovido de disfarces sociais e internos, consciente da sua imaturidade, desapegado da necessidade neurótica do poder, do estatus e do controle.

Quando os nossos ouvidos ouvem, de verdade, entramos em contato com as nossas fragilidades e com a nossa imaturidade. E para tanto, será necessário questionar os nossos graus de certezas. Caso contrário, não conseguiremos ouvi-las.

Penso que somente teremos ouvidos de ouvir e olhos de ver, de verdade, quando passarmos, várias vezes, pelo mesmo lugar. E passar várias vezes pelo mesmo lugar significa caminhar por dentro da gente por diversas vezes. Um caminhar até então desconhecido e pouquíssimo explorado por muitos de nós. Infelizmente.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma frase de Jean de la Bruyere, ensaísta francês do século XVII, que diz:

“A demasiada atenção que se emprega em observar os defeitos dos outros, faz que se morra sem ter tido tempo de conhecer os próprios. ”

Que sejamos amigos do tempo para que ele nos ensine como utilizá-lo com sabedoria. E, assim, possamos nos conhecer. Nossos ouvidos e nossos olhos, certamente, mudarão de patamar. E nossas esquinas serão mais frequentes em nossas vidas.

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