quinta-feira, 15 de junho de 2017

Afiando os dentes

Era uma vez uma serpente venenosa que vivia, isoladamente, na Índia. Como não era sociável e nem gostava de conversa, ninguém se aventurava a passar por lá, aonde ela vivia, com medo de ser atacado. Vivia quieta e isolada.

Até que um bom homem, a serviço de Deus, foi até lá. A serpente, então, mais que depressa, o atacou. Após dominá-la, com o olhar sereno, o homem disse a ela:

- Minha irmã, por que você ataca e faz mal aos outros?

As palavras do bom homem eram de uma doçura comovente e, ao mesmo tempo, firmes e justas, fazendo que a serpente se sentisse envergonhada pelo que havia feito. Recolheu-se e não mais se ouviu falar de ataques da serpente naquela região.

O bom homem continuou o caminho e por onde passava, distribuía olhares serenos e amor. Após algum tempo, e após muito refletir, a serpente saiu da sua toca e, decidida a mudar, tomou uma decisão: procurar todos aqueles a quem havia prejudicado para reparar os seus crimes. A cada um que encontrava, se mostrava pacífica e pedia perdão. No entanto, a serpente não foi bem recebida por alguns que, inclusive, começaram a abusar da boa vontade dela e passaram a humilhá-la. Devido à submissão absoluta da serpente, todos passaram a apedrejá-la. Triste, a cobra se recolheu e não mais foi vista em público.

imagem tirada da internet

Algum tempo depois, o bom homem foi visitá-la. Ao encontrá-la num estado deplorável, perguntou a ela o que havia acontecido. Ela relatou, então, toda a história. Disse que desejava ser boa, se transformar e refazer o caminho de transgressões e de males que havia causado, mas que não estava conseguindo em função de perseguições e de apedrejamentos.

Após ouvi-la, o sábio respondeu:

- Mas, minha irmã, houve engano de tua parte. O conselho que te dei foi para que não mordesse mais ninguém e nem machucasse as pessoas, ao passarem aqui. Aconselhei, também, que não perseguisse o seu semelhante e que não matasse as pessoas como você estava fazendo. Porém, em momento algum disse para que você evitasse assustar os maus. Disse para você parar de atacar seus irmãos do caminho, mas não parar de dar a sua contribuição ao mundo. E o mais importante que te disse:

“- Não morda e nem fira o seu semelhante, mas o mantenha a distância mostrando os seus dentes e emitindo os seus silvos. ”

Em tempos conturbados, confusos e reveladores como estes nossos, é natural querermos fazer justiça com as nossas mãos, falarmos o que, verdadeiramente, pensamos, agirmos de acordo com o que achamos correto. Identificamo-nos com esta serpente, muitas vezes. Ela age rápido e resolve, em poucos minutos, o que a incomoda. Ela age de acordo com o instinto e com a percepção que faz do mundo e de tudo que a cerca.

Porém, em nosso caso, a racionalidade deve ser levada em consideração, e seguir nossos instintos e vontades, nem sempre será possível e nem sempre será o certo a ser feito. Mesmo que nossos instintos e vontades estejam certos e justos, a adequação precisa ser ouvida e praticada. Portanto, é preciso saber lidar com estas ambiguidades:

o querer fazer e poder
o querer fazer e não poder
o querer fazer e não dever
o não querer e ter de fazer
o fazer e não poder fazer
o não fazer e poder fazer

e saber que nem sempre, o justo prevalecerá, infelizmente. Nem sempre a nossa natureza poderá ser exercida. Quem já aprendeu a lidar com essas inconsistências e incongruências está mais adiante e consegue vislumbrar outros horizontes.

Ambiguidades e contradições que nos movem, nos completam, nos constroem e, o mais importante, nos mostram quem somos, de verdade. Elas nos ensinam o caminho certo ou nos reconduzem à rota, sinalizando que perdemos a mão em algum momento da estrada.

As ambiguidades e contradições são indissociáveis, por isto dão certo juntas. Somos estas duas coisas. Somos o resultado destas duas atuações dentro de nós.

A serpente que morde e mata porque faz parte da natureza dela.

A serpente que se arrepende, mas é incompreendida e apedrejada por pessoas que sofrem do mesmo problema dela: ambiguidades e contradições.

A serpente que deixa de ferir para ser ferida.

O homem que deixa de ser morto pela serpente para depois matá-la.

Escolhemos sempre as pontas: o equilíbrio ainda está muito distante da gente. E aqueles que já o encontraram, ou não estão mais aqui ou ainda são os incompreendidos do caminho.

Matar e apedrejar não são, definitivamente, as melhores escolhas, mesmo que isto vá ao encontro da nossa essência e da nossa natureza. Nem sempre a nossa essência e a nossa natureza devem ter asas. É preciso questioná-las. Muitas vezes elas precisarão ser transformadas e domadas. Mas o fato de não exercermos a nossa natureza integralmente não quer dizer que não podemos trazer parte desta natureza para ser exposta. E mostrar nossos dentes e nossos silvos é uma destas possibilidades.

O cerceamento de nossas ações é, por diversas vezes, realizado por nós. Precisamos saber ler as entrelinhas da nossa natureza para poder colocá-la em prática. Isto nos trará equilíbrio e conheceremos, de verdade, o valor do respeito.

Nem tudo pode ser dito, feito e falado. Mas sempre há o que ser dito, feito e falado.

Não se deve resolver as coisas por meio da brutalidade, da rispidez e da covardia. Mas também nada se resolve recolhendo-se para a toca e escondendo-se do mundo.

O que resolve o problema é a ação sobre ele precedido do conhecimento.

Mostrar nossos silvos e nossos dentes mostra que somos parte disto. E devemos ser. Não é possível delegar o indelegável. Ninguém pode mostrar os dentes e silvos por nós. Esta tarefa é nossa e acredito que estamos atrasados. Há tempos nossos dentes e silvos estão a nossa disposição. Mas por que não os usamos? Porque estão escondidos por trás da descrença que há em nós.

Quando são mostrados, evidenciam, também, as decisões que tomamos até aqui, as que poderíamos ter tomado e as que deixamos de tomar porque tivemos medo de mostrar os nossos dentes e fazer ouvir os nossos silvos. Muitas vezes mordemos e machucamos o outro por pura ignorância e inabilidade de lidarmos conosco mesmos. Mas também em muitas outras vezes, deixamos de participar da vida por puro desconhecimento de nossos dentes que, por nossa negligência, não estão devidamente afiados.

Nossas ambiguidades e nossas contradições: caminhos que conduzem ao mesmo lugar.

Que nos seja possível enxergar outros caminhos. E isto é o mais importante: enxergar estes outros caminhos. Que a imobilidade e a inatividade, no segundo momento da serpente, não seja a nossa escolha. E que o primeiro momento dela, a morte, também não seja a nossa escolha. Temos opções, mas é preciso saber identificá-las. Que diante do ataque, a nossa inteligência e o respeito por nós mesmos sejam os nossos mestres e os nossos condutores.

É preciso, portanto, que os nossos dentes estejam afiados para não sermos abordados de surpresa e de calças curtas.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento que diz:

“Uma alma sem respeito é uma morada em ruínas. Deve ser demolida para construir uma nova. ” (Código do Samurai)

O respeito por nós começa quando enxergamos janelas e portas abertas como solução para os nossos problemas. E fazer ouvir os nossos silvos e fazer ver os nossos dentes é o primeiro passo para que o respeito se estabeleça em nós. Que a nossa natureza seja questionada, se assim for necessário, como fez o bom homem para com a serpente. Por que matar se temos outras opções? Mas que, depois de questionada, consigamos transformá-la numa ação para o bem.

Morder e matar podem ser mais rápidos, mas de longe os métodos mais eficazes. Mostrar os nossos dentes e nossos silvos podem ser mais lentos, mas certamente os métodos mais sustentáveis e eficientes para que não haja ruínas dentro de nós. Com nossos dentes à mostra e nossos silvos sendo claramente ouvidos, não deixaremos dúvidas, para aqueles que tentam nos impedir a caminhada, sobre qual caminho escolhemos para as nossas vidas.

O caminho do respeito por nossa essência e por nossa natureza, mesmo que ela deva ser reeducada e transformada para quem sabe, um dia, ser capaz de equilibrar as nossas ambiguidades e nossas contradições. Sem ruínas, para que não sejamos forçados a fazermos nova construção.

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