segunda-feira, 21 de agosto de 2017

O anonimato nominal

Vivemos de contradições, assim como o título deste texto. Elas nos situam, completam, explicam, condicionam, revelam, escondem. Situam-nos na nossa realidade, completam os nossos vazios e dúvidas, explicam o nosso agir, condicionam o nosso pensar, revelam aquilo que tentamos esconder e escondem aquilo que todos sabem.

Anônimos somos todos. Mas temos um nome, um rosto, uma identidade. Somos nomináveis, mas estamos no anonimato. Somos conhecidos, sabem o nosso nome e a nossa história, mas quem somos para nós mesmos?

Anônimo é o que não possui nome, literalmente, ou aquele cuja existência é inexpressiva e sem significados? Aquele que, por pequenez, se esconde na ausência?

Os covardes se comprazem no anonimato por desconhecerem o escrúpulo. Os fortes não compartilham do anonimato por conhecerem o caráter.  Covardes e fortes: mesma moeda para uma representação de todos nós, sem exceções.

Aquele que passa, qual história possui? Aquele que busca ajuda, o que ele quer contar?

Aquele que caminha, para onde vai? Aquele que chega, teria encontrado o que foi buscar?

Aquele que passa, caminha, leva a história para outro lugar. Quer contar, a quem interessar, que chegou e que encontrou o que foi buscar.

Saber a história, o nome e aonde o outro quer chegar não significam conhecê-lo. Significa, apenas, ter informações sobre. Apenas isto. Conhecê-lo significa participar da história dele, saber o que o nome dele representa para ele e, acima de tudo, ajudar o outro a chegar a este lugar que ele quer chegar. Sem perguntas, sem críticas, sem interferências.

Lá vai o anônimo pela estrada. Passa por todos, mas ninguém o vê. Ele passa. Mas ninguém o vê. O anônimo com nome, rosto, história, mas sem uma pessoa disposta a saber o nome dele, conhecer o rosto dele e, muito menos, saber a história deste anônimo que, no fundo, somos nós. Somos o anônimo que passa com muitas histórias iguais às do outro que também passa, e que é anônimo como a gente.

Quando entendermos que a história do outro ajuda a contar a nossa e que a história dele é sequência da nossa, o anonimato começará a perder voz e espaço. Buscar entender e conhecer todas as histórias e participar de todas seria impossível. O anonimato não se anulará por meio disto, mas sim por procurarmos na história do outro, o reflexo da nossa.

Quando a história do outro refletir as nossas atitudes e nos colocar diante um espelho, o anonimato deixará de ser um vantajoso negócio.

Não existe anonimato no sentido literal, mas no sentido proposital. Qual é o propósito da nossa escolha pelo anonimato? Todo anonimato é nominal. Somos todos nomináveis. Podemos ser desconhecidos, mas nunca anônimos. Mesmo na ausência da nossa assinatura, a atitude de não assinar nos torna nomináveis e reconhecíveis.

A ausência de assinatura é uma assinatura.

A ausência do nome é nominar algo. Esconder-se é mostrar-se. A contradição da vida é esta completa ausência de sentido, de lógica e de linearidade.

Aquele que passa ao nosso lado, quais dores carrega? Aquele que fala ao telefone, com quem fala e sobre o que fala? Aquele que passa e não vê, aonde ele está? Aquele que caminha com pressa, para onde iria se não tivesse tanta pressa?

No anonimato estamos protegidos de nos enfrentar. Não precisamos dar satisfações e nem enfrentarmos a discordância do outro. O anonimato nos defende de irmos além de nós mesmos. Ele mais mostra que esconde e mais revela aquilo que achamos que escondemos.

O anonimato está no se ausentar do outro e de tudo o que ele representa. Significa estar ao lado dele, mas não querer saber o que ele faz ali. O anonimato existe para aquele que acredita na ferramenta da exclusão como forma de cercear a vida. Para aquele que acredita que tem opções, menos o outro. O anonimato existe para aquele que não quer ouvir a história do outro porque não quer gastar tempo para ajudá-lo. Para aquele que quer passar despercebido porque acredita que todos pedirão a sua ajuda, mas ele não está disposto. E assim, não percebe que é ele quem mais precisa de ajuda.

O anonimato não existe. Somos todos nomináveis. Nossos rostos e identidades revelam nossos caminhos percorridos e nossas escolhas. O anonimato cria uma máscara e, desta forma, não reconhece a presença do outro que busca ajuda para que a história dele não morra.

Assumir o nosso nome, o nosso rosto, a nossa identidade e sair do nosso pseudoanonimato é reconhecermos traços do outro em nós, é estendermos a nossa mão sem medidas, sem fita métrica e sem hipocrisias. É permitir que o outro escolha o caminho dele no meio de tantas determinações feitas a ele por nós mesmos e por uma sociedade feita de gente, que no fundo somos nós, crentes do anonimato.

Sairmos desta ilusão não significa sairmos nas ruas e querermos saber tudo e de todos. Apenas significa emprestarmos, de vez em quando, os nossos ouvidos, silenciarmos a nossa voz, amenizarmos o nosso olhar de repúdio frente àquele que cheira mal. É sairmos desta ilusão da objetividade e acharmos que a assertividade resolverá todos os nossos problemas. Isto seria empobrecer demais a nossa capacidade do debate e do nosso repertório cultural.

É preciso reconhecermos nossas ausências, nossas transparências, nossos intervalos e nossos bastidores. Investigarmos as nossas questões é fundamental caso não queiramos avançar em nosso retrocesso progressivo. A construção é lenta, mas em algum momento ela foi iniciada. Não podemos desmerecê-la.

Reconhecermos a presença do outro nos levará à valorização dos valores reais, e não à desvalorização, infelizmente, do que foi arduamente construído por nós e por todos os que já, algum dia, estiveram aqui.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Fernando Pessoa, um dos poetas mais influentes do mundo, que diz:

“Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim, em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive. ”

Para que sejamos inteiros e todos, sem exageros, assumirmos o nosso nome e a nossa postura diante à vida será fundamental. Acreditarmos no anonimato seria como entregarmos um desenho inacabado por pura descrença e preguiça de concluí-lo. E pior: acharmos que o desenho seria este mesmo, sem acreditarmos em outras formas de construção. Deixarmos o anonimato envergonhado é como se acreditássemos em todas as possibilidades que a vida, sabiamente, nos oferece para que o avançar seja a nossa única opção.

Caso o anonimato realmente exista, que ele sirva apenas para esconder, ainda que por breve período, nossas boas ações que estejam contribuindo para que o outro saia do anonimato e da marginalidade.

Fernando Pessoa escreveu este poema nos anos 30. Mas a atualidade dele é inquestionável.

Que sejamos inteiros no mínimo que fazemos. Isto significa assumirmos as nossas assinaturas, sairmos do anonimato e ajudarmos a criar condições para que a nossa história e a do outro estejam no mesmo patamar de importância. Somente desta forma brilharemos de forma a não ofuscarmos aquele que vai no mesmo caminho que cada um de nós.

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