Vivemos de contradições, assim
como o título deste texto. Elas nos situam, completam, explicam, condicionam,
revelam, escondem. Situam-nos na nossa realidade, completam os nossos vazios e
dúvidas, explicam o nosso agir, condicionam o nosso pensar, revelam aquilo que
tentamos esconder e escondem aquilo que todos sabem.
Anônimos somos todos. Mas temos
um nome, um rosto, uma identidade. Somos nomináveis, mas estamos no anonimato.
Somos conhecidos, sabem o nosso nome e a nossa história, mas quem somos para
nós mesmos?
Anônimo é o que não possui nome,
literalmente, ou aquele cuja existência é inexpressiva e sem significados?
Aquele que, por pequenez, se esconde na ausência?
Os covardes se comprazem no
anonimato por desconhecerem o escrúpulo. Os fortes não compartilham do
anonimato por conhecerem o caráter.
Covardes e fortes: mesma moeda para uma representação de todos nós, sem
exceções.
Aquele que passa, qual história possui? Aquele que busca ajuda, o que
ele quer contar?
Aquele que caminha, para onde vai? Aquele que chega, teria encontrado o
que foi buscar?
Aquele que passa, caminha, leva a história para outro lugar. Quer
contar, a quem interessar, que chegou e que encontrou o que foi buscar.
Saber a história, o nome e aonde
o outro quer chegar não significam conhecê-lo. Significa, apenas, ter
informações sobre. Apenas isto. Conhecê-lo significa participar da história dele, saber o que o nome dele representa para ele e, acima de tudo, ajudar o
outro a chegar a este lugar que ele quer chegar. Sem perguntas, sem críticas,
sem interferências.
Lá vai o anônimo pela estrada.
Passa por todos, mas ninguém o vê. Ele passa. Mas ninguém o vê. O anônimo com
nome, rosto, história, mas sem uma pessoa disposta a saber o nome dele,
conhecer o rosto dele e, muito menos, saber a história deste anônimo que, no
fundo, somos nós. Somos o anônimo que passa com muitas histórias iguais às do
outro que também passa, e que é anônimo como a gente.
Quando entendermos que a história
do outro ajuda a contar a nossa e que a história dele é sequência da nossa, o
anonimato começará a perder voz e espaço. Buscar entender e conhecer todas as
histórias e participar de todas seria impossível. O anonimato não se anulará
por meio disto, mas sim por procurarmos na história do outro, o reflexo da
nossa.
Quando a história do outro refletir
as nossas atitudes e nos colocar diante um espelho, o anonimato deixará de ser
um vantajoso negócio.
Não existe anonimato no sentido
literal, mas no sentido proposital. Qual é o propósito da nossa escolha pelo
anonimato? Todo anonimato é nominal. Somos todos nomináveis. Podemos ser
desconhecidos, mas nunca anônimos. Mesmo na ausência da nossa assinatura, a
atitude de não assinar nos torna nomináveis e reconhecíveis.
A ausência de assinatura é uma assinatura.
A ausência do nome é nominar algo. Esconder-se é mostrar-se. A
contradição da vida é esta completa ausência de sentido, de lógica e de linearidade.
Aquele que passa ao nosso lado,
quais dores carrega? Aquele que fala ao telefone, com quem fala e sobre o que
fala? Aquele que passa e não vê, aonde ele está? Aquele que caminha com pressa,
para onde iria se não tivesse tanta pressa?
No anonimato estamos protegidos
de nos enfrentar. Não precisamos dar satisfações e nem enfrentarmos a
discordância do outro. O anonimato nos defende de irmos além de nós mesmos. Ele
mais mostra que esconde e mais revela aquilo que achamos que escondemos.
O anonimato está no se ausentar
do outro e de tudo o que ele representa. Significa estar ao lado dele, mas não
querer saber o que ele faz ali. O anonimato existe para aquele que acredita na
ferramenta da exclusão como forma de cercear a vida. Para aquele que acredita
que tem opções, menos o outro. O anonimato existe para aquele que não quer
ouvir a história do outro porque não quer gastar
tempo para ajudá-lo. Para aquele que quer passar despercebido porque
acredita que todos pedirão a sua ajuda, mas ele não está disposto. E assim, não
percebe que é ele quem mais precisa de ajuda.
O anonimato não existe. Somos
todos nomináveis. Nossos rostos e identidades revelam nossos caminhos
percorridos e nossas escolhas. O anonimato cria uma máscara e, desta forma, não
reconhece a presença do outro que busca ajuda para que a história dele não
morra.
Assumir o nosso nome, o nosso
rosto, a nossa identidade e sair do nosso pseudoanonimato é reconhecermos
traços do outro em nós, é estendermos a nossa mão sem medidas, sem fita métrica
e sem hipocrisias. É permitir que o outro escolha o caminho dele no meio de
tantas determinações feitas a ele por nós mesmos e por uma sociedade feita de
gente, que no fundo somos nós, crentes do anonimato.
Sairmos desta ilusão não
significa sairmos nas ruas e querermos saber tudo e de todos. Apenas significa
emprestarmos, de vez em quando, os nossos
ouvidos, silenciarmos a nossa voz, amenizarmos o nosso olhar de repúdio frente
àquele que cheira mal. É sairmos desta ilusão da objetividade e acharmos que a
assertividade resolverá todos os nossos problemas. Isto seria empobrecer demais
a nossa capacidade do debate e do nosso repertório cultural.
É preciso reconhecermos nossas
ausências, nossas transparências, nossos intervalos e nossos bastidores.
Investigarmos as nossas questões é fundamental caso não queiramos avançar em
nosso retrocesso progressivo. A construção é lenta, mas em algum momento ela
foi iniciada. Não podemos desmerecê-la.
Reconhecermos a presença do outro
nos levará à valorização dos valores reais, e não à desvalorização,
infelizmente, do que foi arduamente construído por nós e por todos os que já,
algum dia, estiveram aqui.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com uma provocação de Fernando Pessoa, um dos poetas mais
influentes do mundo, que diz:
“Para ser grande, sê inteiro:
nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que
fazes. Assim, em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive. ”
Para que sejamos inteiros e
todos, sem exageros, assumirmos o nosso nome e a nossa postura diante à vida
será fundamental. Acreditarmos no anonimato seria como entregarmos um desenho
inacabado por pura descrença e preguiça de concluí-lo. E pior: acharmos que o
desenho seria este mesmo, sem acreditarmos em outras formas de construção.
Deixarmos o anonimato envergonhado é como se acreditássemos em todas as
possibilidades que a vida, sabiamente, nos oferece para que o avançar seja a
nossa única opção.
Caso o anonimato realmente exista,
que ele sirva apenas para esconder, ainda que por breve período, nossas boas
ações que estejam contribuindo para que o outro saia do anonimato e da
marginalidade.
Fernando Pessoa escreveu este
poema nos anos 30. Mas a atualidade dele é inquestionável.
Que sejamos inteiros no mínimo
que fazemos. Isto significa assumirmos as nossas assinaturas, sairmos do
anonimato e ajudarmos a criar condições para que a nossa história e a do outro
estejam no mesmo patamar de importância. Somente desta forma brilharemos de
forma a não ofuscarmos aquele que vai no mesmo caminho que cada um de nós.
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