segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Nossas doentes narrativas

Mesmo sem percebermos, narramos. A narrativa é algo que faz parte da vida humana. Seja por meio de símbolos, palavras, gestos, expressões, o fato é que narramos. O ato de narrar nos compõe como seres numa sociedade cada vez mais distante das próprias narrativas, da própria história. Narramos para nos compreender melhor, para nos questionar e para, com um pouco de esforço e dedicação, entender a nossa história. Portanto, a narrativa somos nós.

A nossa narrativa de vida resulta na nossa história. Somos frutos disto. E para que haja uma história de vida, a nossa por exemplo, é preciso ter o que contar e, principalmente, ter quem contar. Dependendo de quem conta, a história muda completamente.

Uma narrativa bem construída é composta por enredo (sequência dos fatos relacionados entre si), personagens (quem vivenciou os fatos) e o lugar onde tudo acontece. Enredo é o que nos acontece e que compõe o nosso repertório. As personagens representam a gente mesmo ou as pessoas com as quais convivemos e trocamos experiências, mesmo que mínimas. O lugar representa o cenário aonde tudo acontece. E o conflito e o desfecho que não podem faltar numa boa narrativa. Apesar de sabermos disto (afinal, quem nunca teve uma aula sobre redação na qual nos pediram um texto com o famoso “começo, meio e fim”?), nossas narrativas adoeceram.

Vivemos uma fragmentação de sentidos, de pensamentos e de ações. Começamos muitas coisas e nada ou pouco finalizamos. E quando finalizamos, às custas de sacrifícios e procrastinações. Queremos rapidez e urgência. Corremos nas escadas rolantes e o metrô é lento para nós. Se alguém começa a falar, interrompemos e completamos o raciocínio dele. Tiramos deste alguém a oportunidade de expressão. Lemos somente as manchetes e nos achamos atualizados. Intitulamo-nos generalistas sobre temas cujo conhecimento não passa de algumas horas...Nossa fala é ansiosa como reflexo das nossas narrativas interrompidas. Sabemos um pouco sobre o pouco. Deveríamos aprender mais sobre poucas coisas, mas as necessárias.

Desrespeitamos em nome da pressa. Corrompemos pensamentos e sonhos. Orgulhamo-nos de nossos seguidores e amigos que são, na maioria, virtuais. Pouco conhecemos sobre eles. E eles nada sabem sobre nós. A sintonia é grande, então. Para quem você pode ligar às duas horas da madrugada, sem constrangimento e intimidação, pedir ajuda e ter a certeza de recebê-la? Este é o seu amigo de verdade. Desconfio, seriamente, de pessoas que dizem ter mais de dez amigos. No máximo, temos conhecidos, colegas, pessoas próximas etc. Por que nos orgulhamos de termos seguidores no twitter? Para alimentar a inveja alheia com as nossas conquistas ou para nos tornarmos alvo de vendedores que estão à espreita da nossa imagem?

Nada contra. Mas por que esta tem sido a nossa principal opção? Uma das possíveis respostas é a que dá título a este texto: nossas narrativas adoeceram. Nossas histórias estão fragmentadas, espaçadas, curtas. Temos dificuldades de investigarmos as nossas questões. Queremos as respostas prontas. As nossas fragmentações nos limitam, evitam a nossa expansão. Quanto mais fragmentados estamos, menos foco e atenção damos às coisas. E quanto menos foco e atenção, mais manipuláveis somos. E a manipulação precisa de ambientes hostis, frágeis e insalubres para sobreviver. Desta forma, não teremos tempo para contestações.

O amanhã é sempre um lugar mais confortável para nós. Como ele nunca chega, porque o futuro é somente o presente pensado a longo prazo, nossas realizações vão se acomodando também neste espaço criado por nós e que tanto nos conforta e nos aquece. Somos frágeis iniciadores com dificuldades de enxergar a linha de chegada. Ficamos enroscados no meio do caminho e nos confundimos com as saídas. Por isso, demoramos a chegar.

Realizamos muitas coisas, obviamente. Mas poderíamos fazer mais se não fosse esta fragmentação do pensar que nos toma como propriedade e que dificulta, e muito, o nosso caminhar e o nosso agir. Ler um texto grande, hoje, é um martírio para muitos. “Lê e me fala depois sobre o que se trata. Estou sem tempo agora. ” Esta fragmentação dificulta e até impossibilita a construção de nossas narrativas.

Como construir nossas narrativas sem tempo? Como criar o desfecho, se não temos paciência e disposição para tratar dos conflitos da trama? Como narrar o enredo, se não temos o compromisso com os fatos? Como entender a dinâmica dos personagens, se a coragem para nos conhecer e compreender a nossa própria história não participa desta conversa?

A fragmentação do pensar e do agir sempre estiveram presentes em nossas vidas. Porém, a tecnologia deu um empurrãozinho nisto, acentuando este distanciamento que há entre a narrativa solidamente construída versus a narrativa interrompida e fragmentada. A solidamente construída se utiliza do tempo, da paciência, do pensar e do querer. A interrompida e fragmentada se utiliza da urgência, da falta de tempo criada pelo Homem, da pressa e da completa ausência de interesse pela história, seja ela contada ou ouvida.

As redes sociais provocam e acentuam esta fragmentação. Não apenas elas, mas fortemente favorecem o raciocínio curto, pontual, superficial e amador. O que menos nos proporcionam, enquanto navegamos nas redes sociais, é tempo. O que fazemos, e muito, é perdê-lo. Mas não podemos responsabilizá-las pelo poder que, indevidamente, damos a elas.

O twitter, por exemplo, é um local de escrita breve. Cento e quarenta caracteres. Ponto. Nada mais. Como entender qualquer narrativa em 140 caracteres? Não é a utilização do twitter ou de outra ferramenta que nos induz à fragmentação, mas sim sobre a escolha somente por este tipo de comunicação e de ferramentas que só nos levam à marginalidade da vida e às margens da nossa própria história. FIKDIC

A fragmentação de raciocínio provocada pela falta de construção de narrativas nos torna ineficientes e morosos. Somos cobrados pelo resultado, mas não queremos mais construí-lo. Somos cobrados pela performance, mas não valorizamos o tempo que se leva para alcançá-la. A nossa intolerância, impaciência e incompreensão nascem da desvalorização das narrativas. Do empobrecimento do nosso discurso. Não queremos mais saber a natureza do problema. Por isso, muitos deles não são resolvidos. Queremos respostas para perguntas que não aprendemos a fazer. E se aprendemos em algum momento, estamos desaprendendo. Por isto, nossas narrativas adoeceram.

Construir narrativas dá trabalho. Fazer amigos dá trabalho. Aprofundar relacionamentos dá trabalho. Conhecer-se dá trabalho. Aprimorar-se dá trabalho.

Ser é da dimensão da narrativa. Estar é da dimensão do rascunho e do esboço. Se quisermos passar por esta vida numa pintura real será necessário escrever a nossa narrativa. E escrevê-la dá trabalho.

As nossas fragmentações não nos permitem irmos além. E fragmentados, ficamos no raso, nas conversas vazias, na incompletude, na intolerância, nos começos, nos retalhos e nas sobras. As nossas fragmentações interferem no nosso poder de escolha. Elas nos interrompem a todo o momento exatamente para não nos fazerem pensar.

Elas nos encaminham para uma solidão coletiva, aonde todos caminham em direções opostas. E nem sabem para onde vão. Somos seduzidos pelo fácil, pelo rápido, pelo descanso injusto. Somos facilmente levados pelas curtidas de pessoas que mal leram as primeiras linhas dos nossos textos. Ou se leram, fizeram uma leitura dinâmica e foram nos pontos principais. Os que leem e dedicam tempo à construção e reflexão, independentemente da plataforma utilizada, entenderam o valor e a importância de uma narrativa. O tempo é o que fazemos dele e o que nele construímos, dizia o poeta.

O excesso de curtidas pode esvaziar o sentido. A quantidade não é indicador de qualidade. Nem sempre a melhor música será a mais ouvida. Nem sempre o melhor filme será o premiado. Nem sempre o melhor texto será o lido.

A qualidade requer tempo para ser apreciada e construída. E o tempo é um ingrediente básico das narrativas de qualidade. No contraponto, a quantidade não demanda tempo. Ela é imediata e rápida. E o imediatismo e a rapidez estão diretamente associados à comercialização, à fragmentação e ao supérfluo.

Falamos muito em desconstrução: desconstrução de modelos, de ideias, de conceitos. Mas, mais difícil que desconstruir, é construir. E as narrativas passam pela construção. Não há outro caminho. O início, o desenvolvimento e a conclusão são etapas fundamentais e essenciais para o viver. Não caminhar por estas etapas e não viver o que elas podem nos proporcionar é abrir mão da vida. É delegar o indelegável. É estar à margem de uma vida que poderia ser vivida.

Início, desenvolvimento e conclusão representam a nossa história, mas a verdadeira, e não a contada em poucos caracteres. A nossa história contada e criada por meio da nossa narrativa. Uma narrativa criada sem pressa porque os detalhes farão a diferença. Detalhes desprezados por escolhas que nós mesmos fizemos. Ainda há tempo para os detalhes, para reconstruí-los e fazermos de nossas narrativas, narrativas felizes e saudáveis.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Mário Quintana, poeta brasileiro de todos os tempos, que diz:

“Não faças da tua vida um rascunho. Poderás não ter tempo de passá-la a limpo. ”

Que saibamos construir a nossa narrativa em papéis verdadeiros, em telas reais e sem pressa de passarmos por todas as linhas da nossa história. Que saibamos iniciar, desenvolver e concluir nossa narrativa de vida com dignidade e com orgulho e, acima de tudo, com disposição para não pularmos linhas e nem buscarmos atalhos desmedidos. Pois se assim o fizermos, nossa narrativa terá adoecido, e não será mais possível ouvi-la como o som da nossa própria história: a história da nossa vida.

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