Do galinheiro, continua Saramago
na sua fala, as pessoas se apertavam para conseguir enxergar o espetáculo. Por
mais que fizessem isto, não era possível ver o palco por inteiro. Quando os
atores se deslocavam em cena, dizia, era preciso aguardar voltá-los para a
antiga marcação, no palco. Somente assim se poderia vê-los novamente. No entanto, enquanto observava que
muitas coisas o impediam de ver o palco, os atores, a obra, percebeu que um
suntuoso objeto estava bem a sua frente: uma coroa real, dourada, símbolo que
sobrou das monarquias, reduzida a um adorno qualquer. Mas, como ele estava no galinheiro, somente conseguia ver a
parte de trás deste objeto, enquanto os pagantes e os que ocupavam os camarotes
e cadeiras requintadas, conseguiam enxergar a parte da frente deste objeto, com
toda a ostentação que uma coroa impõe.
Nas palavras de Saramago, o que
ele via era a ausência daquela coroa,
e não a coroa em si. O que havia, naquilo que um dia foi uma coroa, era muito pó
e teias de aranha, que também marcavam presença no objeto e naquele lugar. Mas
as pessoas dos camarotes não viam esta poeira e estas teias. Viam a parte nobre e bonita da coroa, o que
foge à realidade.
Neste momento, Saramago compreendeu que o ponto de vista observado do
galinheiro é indispensável se, realmente, quisermos conhecer a coroa.
A obra de Saramago segue com
muitos descortinares e com inúmeros convites para mudarmos o nosso olhar de
lugar. Convites que nos fazem repensar o nosso estar e o nosso tamanho, no
mundo.
Na perspectiva de um simples
espectador que tenta assistir a uma peça de teatro num lugar sujo, empoeirado,
mau cheiroso e apertado pode parecer uma aventura e uma angústia. Um sofrimento
e um castigo, digamos assim, por não fazer parte do grupo seleto dos que podem.
Como ele não pode, se submete. Um simples espectador talvez pense desta forma.
Vê a peça, da forma que dá, e,
amassado, busca um espaço entre os que vão a sua frente, espremidos. Nesse estado de ausência que vive, não
consegue ir além. Acredito que temos um pouco deste espectador dentro de cada
um de nós.
Porém, na perspectiva de um
espectador como Saramago, estar no galinheiro
do teatro é uma excelente oportunidade para dar uma rasteira na vida, no
sentido figurado. Ao invés de raiva, nojo e frustração, olhar, foco e
discernimento. Quando assim agimos, o que não é das tarefas mais simples, estar
num galinheiro começa a fazer sentido. A vida, com frequência, gosta da ironia
e se diverte nos colocando em alguns galinheiros. Mas se soubermos aceitar que
estamos num deles, sairemos rapidamente. A vida não tem interesse em nos deixar
em lugares cujo aprendizado não se dará. Se lá nos colocou, é porque alguma
pendência temos com os galinheiros da vida.
Do galinheiro, podemos enxergar o
lado da coroa que ninguém quer ver, assim como disse Saramago. Permite-nos ver
o lado que todos tentam esconder. E pior: além de esconder, o fingir que ele
não existe. O galinheiro, apesar de seu aspecto feio, ruim e barulhento, é um
lugar privilegiado, cuja percepção se dará apenas aqueles que vão a frente.
Somente aquele que já entendeu o sentido
de dar toda a volta, compreende o valor de se passar, pelo menos uma vez na
vida, pelo galinheiro.
O galinheiro é um lugar que
existe dentro de cada um de nós. Assim como o camarote, também. Galinheiros
cheiram mal, mas nos dão a visão do todo. Somente nos enxergamos se tivermos a
generosidade de aceitarmos o convite da vida para darmos uma passadinha lá.
Camarotes existem para contemplarmos a arte. No camarote, enxergamos o
resultado de um belo trabalho. Mas para valorizá-lo, somente passando pelo
galinheiro.
Galinheiro é o convite para dar
toda a volta em nós. É a reflexão para a existência de nossas teias e as de
aranhas, também. A poeira e pó que insistem em nos lembrar que há tempos
estamos devendo uma visita para nós mesmos. Que denunciam a nossa ausência, a
nossa falta de interesse para vermos e conhecermos os nossos bastidores. Que reafirmam
que não estamos interessados em subirmos os degraus da nossa construção. As
teias das aranhas que nos provocam dizendo que até elas dedicam tempo para construírem
suas casas. E nós? Como construir as nossas casas sem passarmos ao redor de nós
mesmos? Sem querermos conhecer o galinheiro que habita em nós e que nos dará a
visão do todo? Para quê, mesmo, ver o todo, se apenas parte dele será mostrado?
Para conhecermos as coisas é preciso dar a volta. Dar a volta toda. E
muitas voltas.
O nosso olhar, de verdade, faz a
diferença. Se passarmos a olhar para a
parte de trás de nossas coroas, vamos verdadeiramente conhecê-las. Brigamos por
coisas que nos enfraquecem, mas acreditamos que nos fortalecem justamente por
valorizarmos apenas os camarotes. Os galinheiros não nos interessam. Mas são
eles que nos formam. E mesmo assim, os deixamos esquecidos com entulhos,
poeiras e teias.
Escondemos nossos entulhos no
galinheiro e assim ele vai ficando inadentrável porque queremos dar conta de
tudo. Saber tudo. Ser tudo. E como isto é impossível, priorizamos os camarotes.
Afinal, como não querer estar lá? A visão é melhor, mesmo. Mas o que nos
esquecemos é que a visão é construída a
partir do galinheiro. Simples assim. E abrir mão dele é abrir mão da gente
mesmo.
Daí os extremos e barulhos. Os
desequilíbrios. Ainda é necessário fazer barulho para ser ouvido. Por isso os
galinheiros são tão barulhentos. Eles apenas querem ser ouvidos por nós.
É preciso ir contra a nossa própria
inércia para podermos acessar o nosso galinheiro. No começo, ele estará escuro,
sujo, feio e com ar de abandono. Mas nada que uma lâmpada nova não dê conta de
iniciar uma iluminação há tempos necessária. É preciso lutar por este espaço
esquecido que tanto tem a nos ensinar. Somente lá poderemos dar a volta em nós
mesmos e assim, saber quem somos. Lutar pelo espaço não é abrir mão dele. Os
galinheiros existem em nós, e se soubermos ouvi-los, a nossa cena ficará mais
bela e verdadeira.
Nossas singularidades nos
representam. Sermos quem somos somente nos fará fortes. Mas somente do alto dos
nossos galinheiros teremos esta visão. Minha singularidade está representada na
poeira que esqueci lá. A sua também. Enxergar esta poeira me fará mais forte
porque terei sobrevivido a ela. A poeira, as traças e as teias não querem medir
suas forças com a gente. Apenas querem dizer o que buscamos não ouvir durante
todo o tempo em que estamos ou estivemos nos camarotes.
Camarote é um lugar de refresco e
de descanso. Silêncio.
Galinheiro é um lugar de trabalho
e de movimento. Barulho.
O silêncio e o barulho são as
nossas melhores respostas. São os nossos mapas. Ouvi-los será como receber os
aplausos da vida nos cumprimentando.
Hoje temos uma só narrativa. Não
podemos ter uma só narrativa. O camarote não pode nos representar,
exclusivamente. Cresce-se, e muito, do alto de um galinheiro. Aliás, desconfio
fortemente, que apenas de lá se cresce. Por isso, Saramago é tão grande. Ele
soube, sempre, contemplar a sabedoria do galinheiro, nem que fosse de um
simples teatro.
Os camarotes são expostos. E
quanto mais exposto, mais banalizado porque todos querem estar lá. Um lugar de
poucos aprendizados e de muitas armadilhas. Se soubéssemos disto, talvez
mudássemos de opinião ao buscarmos apenas este lugar para estar. Podemos estar
em vários lugares. Isto não nos banaliza.
Os galinheiros são recuados.
Ninguém quer mostrá-lo em sua propriedade. E por não serem expostos, não são
banalizados. São únicos. Proporcionam-nos um conhecimento que, se aproveitado,
se transformará em sabedoria. Mas isto é para poucos. É preciso saber apreciar
a beleza de um galinheiro. Aprender a ver esta beleza que é nativa em nós. Mas
que insistimos em escondê-la. Beleza tem a ver com a forma como eu atuo no
mundo. E quando entendermos isto, teremos o poder a nosso favor, e os nossos
galinheiros serão lugares mais visitados, mesmo que os camarotes estejam a
nossa disposição.
Somos frágeis em nossas
singularidades. Somos sensíveis em nossas particularidades. Aceitar isto é
fazer as pazes com a vida. Nossas singularidades e nossas particularidades nos
constroem e destroem a cada dia. Somos a soma de todos os eus que vivemos. Queremos ter uma narrativa: os camarotes. E não
podemos ter uma só narrativa. Por isso, os galinheiros deveriam ser mais
visitados por nós.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com uma provocação de Nietzsche,
filósofo alemão, que diz:
“Torna-te aquilo que és”.
Ao aceitarmos a trajetória que a
vida nos convida a seguir, a do camarote e, principalmente, a do galinheiro,
nos tornaremos naquilo que somos. Fora deste caminho, apenas nos camarotes da
vida, no que quer que tenhamos nos tornado, será falso, raso e sem a visão do
todo. Algo completamente distinto do que trouxe Nietzsche, nos provocando ser e
exercer a nossa essência, e do que trouxe Saramago, nos convidando a dar a
volta em nós mesmos para que possamos, de verdade, nos conhecer. E isto somente
do galinheiro. Lugar algum da vida nos dará uma visão tão privilegiada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário