segunda-feira, 21 de maio de 2018

A visão do galinheiro

No livro, Cadernos de Lanzarote II, de José Saramago, o autor diz que quando era adolescente, costumava ir à ópera. Sem pagar. O lugar era o Teatro Nacional de São Carlos. O porteiro o deixava entrar quando faltavam poucos minutos para a sessão começar. Nesse momento, os “pagantes”, dizia Saramago, já haviam ocupado os seus lugares. O porteiro, então, o conduzia pelas escadas até o último andar, o lugar destinado aos pouco abonados, como ele. Lá, não havia acesso aos camarotes e nem aos lugares pagos. Eram os chamados galinheiros que, na fala de Saramago, dispensa explicações para o termo. Como ele não havia pago pela entrada e, muito menos tinha o dinheiro para tal, seu lugar era no galinheiro. E mesmo sendo um lugar nada convidativo, ainda havia o risco de não ter lugar para se sentar.

Do galinheiro, continua Saramago na sua fala, as pessoas se apertavam para conseguir enxergar o espetáculo. Por mais que fizessem isto, não era possível ver o palco por inteiro. Quando os atores se deslocavam em cena, dizia, era preciso aguardar voltá-los para a antiga marcação, no palco. Somente assim se poderia vê-los novamente. No entanto, enquanto observava que muitas coisas o impediam de ver o palco, os atores, a obra, percebeu que um suntuoso objeto estava bem a sua frente: uma coroa real, dourada, símbolo que sobrou das monarquias, reduzida a um adorno qualquer. Mas, como ele estava no galinheiro, somente conseguia ver a parte de trás deste objeto, enquanto os pagantes e os que ocupavam os camarotes e cadeiras requintadas, conseguiam enxergar a parte da frente deste objeto, com toda a ostentação que uma coroa impõe.

Nas palavras de Saramago, o que ele via era a ausência daquela coroa, e não a coroa em si. O que havia, naquilo que um dia foi uma coroa, era muito pó e teias de aranha, que também marcavam presença no objeto e naquele lugar. Mas as pessoas dos camarotes não viam esta poeira e estas teias. Viam a parte nobre e bonita da coroa, o que foge à realidade.

Neste momento, Saramago compreendeu que o ponto de vista observado do galinheiro é indispensável se, realmente, quisermos conhecer a coroa.

A obra de Saramago segue com muitos descortinares e com inúmeros convites para mudarmos o nosso olhar de lugar. Convites que nos fazem repensar o nosso estar e o nosso tamanho, no mundo.

Na perspectiva de um simples espectador que tenta assistir a uma peça de teatro num lugar sujo, empoeirado, mau cheiroso e apertado pode parecer uma aventura e uma angústia. Um sofrimento e um castigo, digamos assim, por não fazer parte do grupo seleto dos que podem. Como ele não pode, se submete. Um simples espectador talvez pense desta forma. Vê a peça, da forma que dá, e, amassado, busca um espaço entre os que vão a sua frente, espremidos. Nesse estado de ausência que vive, não consegue ir além. Acredito que temos um pouco deste espectador dentro de cada um de nós.

Porém, na perspectiva de um espectador como Saramago, estar no galinheiro do teatro é uma excelente oportunidade para dar uma rasteira na vida, no sentido figurado. Ao invés de raiva, nojo e frustração, olhar, foco e discernimento. Quando assim agimos, o que não é das tarefas mais simples, estar num galinheiro começa a fazer sentido. A vida, com frequência, gosta da ironia e se diverte nos colocando em alguns galinheiros. Mas se soubermos aceitar que estamos num deles, sairemos rapidamente. A vida não tem interesse em nos deixar em lugares cujo aprendizado não se dará. Se lá nos colocou, é porque alguma pendência temos com os galinheiros da vida.

Do galinheiro, podemos enxergar o lado da coroa que ninguém quer ver, assim como disse Saramago. Permite-nos ver o lado que todos tentam esconder. E pior: além de esconder, o fingir que ele não existe. O galinheiro, apesar de seu aspecto feio, ruim e barulhento, é um lugar privilegiado, cuja percepção se dará apenas aqueles que vão a frente.

Somente aquele que já entendeu o sentido de dar toda a volta, compreende o valor de se passar, pelo menos uma vez na vida, pelo galinheiro.

O galinheiro é um lugar que existe dentro de cada um de nós. Assim como o camarote, também. Galinheiros cheiram mal, mas nos dão a visão do todo. Somente nos enxergamos se tivermos a generosidade de aceitarmos o convite da vida para darmos uma passadinha lá. Camarotes existem para contemplarmos a arte. No camarote, enxergamos o resultado de um belo trabalho. Mas para valorizá-lo, somente passando pelo galinheiro.

Galinheiro é o convite para dar toda a volta em nós. É a reflexão para a existência de nossas teias e as de aranhas, também. A poeira e pó que insistem em nos lembrar que há tempos estamos devendo uma visita para nós mesmos. Que denunciam a nossa ausência, a nossa falta de interesse para vermos e conhecermos os nossos bastidores. Que reafirmam que não estamos interessados em subirmos os degraus da nossa construção. As teias das aranhas que nos provocam dizendo que até elas dedicam tempo para construírem suas casas. E nós? Como construir as nossas casas sem passarmos ao redor de nós mesmos? Sem querermos conhecer o galinheiro que habita em nós e que nos dará a visão do todo? Para quê, mesmo, ver o todo, se apenas parte dele será mostrado?

Para conhecermos as coisas é preciso dar a volta. Dar a volta toda. E muitas voltas.

O nosso olhar, de verdade, faz a diferença.  Se passarmos a olhar para a parte de trás de nossas coroas, vamos verdadeiramente conhecê-las. Brigamos por coisas que nos enfraquecem, mas acreditamos que nos fortalecem justamente por valorizarmos apenas os camarotes. Os galinheiros não nos interessam. Mas são eles que nos formam. E mesmo assim, os deixamos esquecidos com entulhos, poeiras e teias.

Escondemos nossos entulhos no galinheiro e assim ele vai ficando inadentrável porque queremos dar conta de tudo. Saber tudo. Ser tudo. E como isto é impossível, priorizamos os camarotes. Afinal, como não querer estar lá? A visão é melhor, mesmo. Mas o que nos esquecemos é que a visão é construída a partir do galinheiro. Simples assim. E abrir mão dele é abrir mão da gente mesmo.

Daí os extremos e barulhos. Os desequilíbrios. Ainda é necessário fazer barulho para ser ouvido. Por isso os galinheiros são tão barulhentos. Eles apenas querem ser ouvidos por nós.

É preciso ir contra a nossa própria inércia para podermos acessar o nosso galinheiro. No começo, ele estará escuro, sujo, feio e com ar de abandono. Mas nada que uma lâmpada nova não dê conta de iniciar uma iluminação há tempos necessária. É preciso lutar por este espaço esquecido que tanto tem a nos ensinar. Somente lá poderemos dar a volta em nós mesmos e assim, saber quem somos. Lutar pelo espaço não é abrir mão dele. Os galinheiros existem em nós, e se soubermos ouvi-los, a nossa cena ficará mais bela e verdadeira.

Nossas singularidades nos representam. Sermos quem somos somente nos fará fortes. Mas somente do alto dos nossos galinheiros teremos esta visão. Minha singularidade está representada na poeira que esqueci lá. A sua também. Enxergar esta poeira me fará mais forte porque terei sobrevivido a ela. A poeira, as traças e as teias não querem medir suas forças com a gente. Apenas querem dizer o que buscamos não ouvir durante todo o tempo em que estamos ou estivemos nos camarotes.

Camarote é um lugar de refresco e de descanso. Silêncio.

Galinheiro é um lugar de trabalho e de movimento. Barulho.

O silêncio e o barulho são as nossas melhores respostas. São os nossos mapas. Ouvi-los será como receber os aplausos da vida nos cumprimentando.

Hoje temos uma só narrativa. Não podemos ter uma só narrativa. O camarote não pode nos representar, exclusivamente. Cresce-se, e muito, do alto de um galinheiro. Aliás, desconfio fortemente, que apenas de lá se cresce. Por isso, Saramago é tão grande. Ele soube, sempre, contemplar a sabedoria do galinheiro, nem que fosse de um simples teatro.

Os camarotes são expostos. E quanto mais exposto, mais banalizado porque todos querem estar lá. Um lugar de poucos aprendizados e de muitas armadilhas. Se soubéssemos disto, talvez mudássemos de opinião ao buscarmos apenas este lugar para estar. Podemos estar em vários lugares. Isto não nos banaliza.

Os galinheiros são recuados. Ninguém quer mostrá-lo em sua propriedade. E por não serem expostos, não são banalizados. São únicos. Proporcionam-nos um conhecimento que, se aproveitado, se transformará em sabedoria. Mas isto é para poucos. É preciso saber apreciar a beleza de um galinheiro. Aprender a ver esta beleza que é nativa em nós. Mas que insistimos em escondê-la. Beleza tem a ver com a forma como eu atuo no mundo. E quando entendermos isto, teremos o poder a nosso favor, e os nossos galinheiros serão lugares mais visitados, mesmo que os camarotes estejam a nossa disposição.

Somos frágeis em nossas singularidades. Somos sensíveis em nossas particularidades. Aceitar isto é fazer as pazes com a vida. Nossas singularidades e nossas particularidades nos constroem e destroem a cada dia. Somos a soma de todos os eus que vivemos. Queremos ter uma narrativa: os camarotes. E não podemos ter uma só narrativa. Por isso, os galinheiros deveriam ser mais visitados por nós.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Nietzsche, filósofo alemão, que diz:

“Torna-te aquilo que és”.

Ao aceitarmos a trajetória que a vida nos convida a seguir, a do camarote e, principalmente, a do galinheiro, nos tornaremos naquilo que somos. Fora deste caminho, apenas nos camarotes da vida, no que quer que tenhamos nos tornado, será falso, raso e sem a visão do todo. Algo completamente distinto do que trouxe Nietzsche, nos provocando ser e exercer a nossa essência, e do que trouxe Saramago, nos convidando a dar a volta em nós mesmos para que possamos, de verdade, nos conhecer. E isto somente do galinheiro. Lugar algum da vida nos dará uma visão tão privilegiada.

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